Crimes contra a ordem tributária e a incidência da súmula vinculante 24 do STF (2025)
O artigo analisa a aplicação da Súmula Vinculante nº 24 do STF nos crimes contra a ordem tributária, seus efeitos na atuação do MP, na persecução penal após a constituição do crédito tributário e a relação com a lavagem de dinheiro e instrumentos investigativos.
Introdução
Os crimes contra a ordem tributária são condutas tipificadas pela Lei nº 8.137/1990 que visam proteger o sistema de arrecadação de tributos no Brasil, punindo atos como a omissão de informações, a falsificação de documentos fiscais e outras práticas fraudulentas destinadas a suprimir ou reduzir o pagamento de tributos.
Tais crimes representam não apenas um prejuízo ao erário público, mas também uma violação à justiça fiscal e ao equilíbrio econômico. Entretanto, a persecução penal dessas infrações deve respeitar os princípios constitucionais, especialmente o devido processo legal e o princípio da legalidade.
Nesse contexto, destaca-se a Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal (STF), que estabelece que: “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do crédito tributário”.
A súmula condiciona a atuação penal ao esgotamento da via administrativa de constituição do crédito, buscando evitar que o contribuinte seja processado criminalmente antes de ter oportunidade de se defender no âmbito fiscal.
Diante da estreita relação entre a esfera administrativa tributária e o direito penal, este trabalho tem como ponto de partida o seguinte problema de pesquisa: qual é a influência da Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal na persecução penal dos crimes contra a ordem tributária, e quais são os limites constitucionais e legais de sua aplicação?
As previsões legais dos crimes contra a ordem tributária previstos na Lei nº 8.137/90
A Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, foi criada com o objetivo de suprir lacunas existentes na repressão penal às condutas lesivas à ordem tributária, econômica e às relações de consumo no Brasil. Com foco especial na proteção da arrecadação tributária, seus dispositivos buscam coibir comportamentos que resultem na supressão ou redução indevida de tributos, contribuindo diretamente para a preservação do equilíbrio fiscal e da justiça distributiva no país.
No que se refere aos crimes contra a ordem tributária, os artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90 apresentam um rol de condutas consideradas penalmente relevantes, que abrangem desde a omissão ou falsificação de informações ao Fisco até a fraude na documentação contábil e fiscal:
Art. 1º da Lei nº 8.137/90 – Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II– fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III– falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo a operação tributável; IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigado, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.
O artigo 1º tipifica condutas dolosas mais gravosas, ou seja, ações com intenção clara de fraudar o Fisco. Trata-se de práticas que visam diretamente a supressão ou redução de tributos de forma fraudulenta, como prestar declaração falsa, omitir informações relevantes ou falsificar documentos fiscais. A pena mais severa reflete a gravidade desses atos, que atentam contra a arrecadação e a justiça fiscal.
Já o artigo 2º trata de condutas menos complexas, geralmente associadas à omissão no cumprimento de obrigações tributárias já definidas, como deixar de repassar tributos retidos de terceiros, por exemplo, a contribuição previdenciária descontada na fonte. Embora menos elaboradas do que as fraudes descritas no artigo 1º, essas práticas também prejudicam a arrecadação e configuram infrações penais, justificando a responsabilização do agente:
Art. 2º da Lei nº 8.137/90 – Constitui crime da mesma natureza: deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou contribuição social, cuja retenção tenha sido efetuada na fonte; exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela deduzida ou dedutível de imposto ou contribuição como incentivo fiscal; deixar de aplicar, ou aplicar indevidamente incentivo fiscal ou benefício de natureza tributária, concedido por lei; utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa da exigida pela legislação fiscal. Pena: detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
O fundamento legal desses crimes está ancorado no interesse público de garantir a regular arrecadação de receitas tributárias, sem as quais o Estado se torna incapaz de cumprir suas funções essenciais. Nesse contexto, a norma penal tributária atua de forma subsidiária, sendo acionada apenas quando os meios administrativos e civis não se mostram eficazes para coibir as condutas ilícitas.
Importante destacar que os crimes contra a ordem tributária previstos na Lei nº 8.137/90 são, em sua maioria, classificados como crimes materiais, ou seja, dependem da ocorrência de um resultado naturalístico para a sua configuração. No campo doutrinário, esse entendimento é reforçado por autores como Guilherme Nucci, que define o crime material como aquele “em que a lei exige, além da conduta, a ocorrência de um resultado naturalístico para que se configure a infração penal”.
De maneira similar, Cezar Bitencourt explica que o crime material, ou de resultado, exige uma alteração concreta no mundo exterior, provocada pela ação do agente, sendo esse resultado elemento constitutivo do tipo penal. No caso dos crimes tributários, essa modificação se traduz na efetiva supressão ou redução do tributo devido, o que só pode ser confirmado após a constituição definitiva do crédito tributário por meio do processo administrativo fiscal.
Essa exigência de resultado concreto tem implicações práticas relevantes, especialmente quanto à apuração do crime e à sua persecução penal. Muitas vezes, a materialidade do delito só pode ser constatada após o lançamento definitivo do crédito tributário pela autoridade administrativa, o que reforça o caráter subsidiário e complementar do Direito Penal em relação ao Direito Tributário.
Assim, a Lei nº 8.137/90 não apenas delimita as condutas ilícitas relacionadas à ordem tributária, mas também impõe requisitos objetivos para a persecução penal, vinculando a atuação do Ministério Público à conclusão da esfera administrativa. Essa característica confere à norma um equilíbrio entre o rigor repressivo e a observância dos direitos e garantias fundamentais dos contribuintes.
A constituição definitiva do crédito tributário na esfera administrativa
O lançamento tributário, para fins de configuração dos crimes contra a ordem tributária, constitui um procedimento de competência privativa da autoridade administrativa, nos termos do artigo 142 do Código Tributário Nacional (CTN). Esse procedimento tem como finalidade verificar a ocorrência do fato gerador, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo da obrigação (inclusive se há substituição tributária), bem como apurar a eventual necessidade de aplicação de penalidades.
Por exemplo, a legislação prevê hipótese de incidência do ICMS sobre operações de circulação de mercadorias. Quando ocorre o fato gerador como o transporte de mercadoria do Estado do Mato Grosso do Sul para Minas Gerais, surge a obrigação tributária. Essa obrigação se traduz em uma exigibilidade e liquidez do valor devido, dando origem ao crédito tributário. É nesse contexto que se pode discutir a ocorrência do crime de sonegação fiscal.
Esse procedimento fiscal possui natureza jurídica mista: ao mesmo tempo em que declara a existência da obrigação tributária, também constitui o crédito tributário.
Ele pode ser realizado de três formas, conforme o CTN: lançamento de ofício, quando a autoridade fiscal realiza o procedimento por iniciativa própria; lançamento por declaração, quando o contribuinte fornece informações e a autoridade apenas homologa os dados; e lançamento por homologação, modalidade mais comum, em que o contribuinte realiza o pagamento antecipado e o Fisco apenas homologa posteriormente.
Contudo, a simples realização do lançamento não é suficiente para a exigibilidade do crédito no campo penal. É necessário que o crédito tributário esteja definitivamente constituído, ou seja, que tenha se encerrado o processo administrativo fiscal, assegurando ao contribuinte o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa.
Esse processo se inicia com a lavratura do auto de infração, quando a autoridade fiscal identifica uma infração à legislação tributária. Em seguida, o contribuinte é notificado para tomar ciência da autuação e possui prazo para apresentar impugnação administrativa, na qual poderá contestar os fundamentos da cobrança, apresentar documentos e solicitar diligências.
A impugnação será analisada por um órgão de primeira instância administrativa, que emitirá decisão fundamentada. Caso essa decisão seja desfavorável, o contribuinte poderá apresentar recurso voluntário à segunda instância administrativa, que, no âmbito federal, é exercida pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Durante esse trâmite, a exigibilidade do crédito tributário permanece suspensa, conforme prevê o artigo 151 do CTN, o que impede a sua cobrança judicial ou utilização como base para eventual responsabilização criminal.
Somente após o esgotamento das vias administrativas, com decisão final e irrecorrível, o crédito tributário é considerado definitivamente constituído, tornando-se líquido, certo e exigível. Esse marco é indispensável para a persecução penal nos crimes tributários de natureza material, como a sonegação fiscal, pois sem a constituição definitiva, não há respaldo legal para configurar a tipicidade penal.
No caso da sonegação fiscal, exige-se que o crédito tributário esteja formalmente exigível e líquido. Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o lançamento definitivo é considerado uma condição objetiva de punibilidade, de forma que não se pode falar em persecução penal sem a sua presença. Já no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), embora ainda haja debate quanto à natureza jurídica do lançamento definitivo, se seria condição objetiva de punibilidade ou elemento normativo do tipo penal, o entendimento consolidado por meio da Súmula Vinculante nº 24 é no sentido de que os crimes materiais contra a ordem tributária somente se configuram após a constituição definitiva do crédito tributário.
Dessa forma, a tipicidade penal está vinculada à conclusão do processo administrativo-fiscal, evidenciando a interdependência entre as esferas administrativa e penal. A atuação do Ministério Público, portanto, está condicionada à existência de crédito tributário formalmente constituído, sob pena de violação ao princípio da legalidade penal e do devido processo legal.
O conteúdo, a origem e os efeitos vinculantes da Súmula 24
O Direito Tributário e o Direito Penal são ramos autônomos do ordenamento jurídico brasileiro, mas que, em determinados contextos, se entrelaçam na proteção da ordem econômica do Estado. O Direito Tributário tem como função primordial disciplinar a arrecadação de tributos e garantir a observância dos princípios constitucionais da legalidade, isonomia, capacidade contributiva, entre outros. Já o Direito Penal busca tutelar os bens jurídicos mais relevantes, mediante a imposição de sanções penais àquelas condutas consideradas socialmente lesivas e reprováveis.
A conexão entre esses dois ramos se evidencia especialmente no combate à sonegação fiscal, que, embora tenha natureza inicialmente administrativa, pode atingir a esfera penal quando a conduta do contribuinte ultrapassa o mero inadimplemento e se reveste de dolo ou fraude. Essa intersecção deu origem ao chamado Direito Penal Tributário, disciplinado, sobretudo, pela Lei nº 8.137/1990, que tipifica os crimes contra a ordem tributária.
Entretanto, essa relação deve ser conduzida com cautela, respeitando-se os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência. É nesse cenário que ganha relevância a Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal, que estabelece que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do crédito tributário”.
Essa súmula condiciona a instauração da ação penal à constituição definitiva do crédito tributário pela autoridade administrativa competente, ou seja, após o término do processo administrativo e o esgotamento de todas as possibilidades de recurso no âmbito fiscal. Essa exigência decorre do fato de que os crimes materiais contra a ordem tributária exigem a comprovação de dano efetivo ao erário público, o que só se confirma com o lançamento definitivo do tributo.
O HC 81.611/SP, julgado pelo STF em 2003, envolveu um contribuinte denunciado por crime de sonegação fiscal antes da conclusão do processo administrativo de apuração do tributo. A defesa alegou que não havia crédito tributário definitivamente constituído, o que tornaria a denúncia antecipada. O Supremo acolheu a tese, entendendo que, por se tratar de crime material, a existência do crédito tributário é condição indispensável à configuração do delito. Assim, decidiu que não há justa causa para a ação penal antes do lançamento definitivo do tributo, fixando um marco fundamental que deu origem à Súmula Vinculante nº 24.
Assim, a materialidade da infração penal só pode ser confirmada após o lançamento definitivo, sendo precipitada qualquer atuação penal antes desse marco. Esse entendimento reforçou a necessidade de aguardar a consolidação do crédito tributário como condição para o exercício legítimo da ação penal.
Com base nesses e em outros julgados semelhantes, o STF editou, em 2009, a Súmula Vinculante nº 24, com efeito vinculante para todos os órgãos do Judiciário e da Administração Pública, nos termos do art. 103-A da Constituição Federal.
Do ponto de vista penal, a súmula possui impactos significativos. Ela impede que o Ministério Público ofereça denúncia antes da constituição definitiva do crédito tributário, protegendo o contribuinte de processos penais precipitados e infundados.
Isso evita que o Direito Penal seja utilizado como instrumento de pressão na cobrança de tributos ainda em disputa na via administrativa.
Já na perspectiva fiscal, a súmula reforça a importância do procedimento administrativo como etapa essencial na apuração da responsabilidade tributária. Impõe maior rigor à atuação do Fisco e fortalece a garantia do contraditório e da ampla defesa. A atuação conjunta e coordenada entre a Fazenda Pública e o Ministério Público torna-se, assim, indispensável.
Outra controvérsia relevante reside na extensão da súmula a outros tipos penais, como os crimes formais e acessórios, por exemplo, falsidade ideológica ou documental, nos quais o lançamento não é requisito típico. Ainda que o enunciado se refira expressamente aos crimes materiais do art. 1º da Lei nº 8.137/90, o debate sobre os limites de sua aplicação permanece atual.
Além disso, há conflitos institucionais gerados pela súmula, especialmente quando há divergência entre os entendimentos da Fazenda e do Ministério Público quanto ao momento ideal para o início da persecução penal. Em certos casos, interpretações restritivas do enunciado podem dificultar investigações legítimas de esquemas sofisticados de evasão fiscal.
Em suma, a Súmula Vinculante nº 24 representa um marco na delimitação entre a atuação administrativa e a penal no âmbito tributário. Seu objetivo é assegurar que a ação penal se baseie em fatos juridicamente consolidados, garantindo maior segurança jurídica ao contribuinte. Ao mesmo tempo, exige do Estado mecanismos eficazes para que o trâmite administrativo não comprometa a efetividade da repressão penal. O desafio está em equilibrar a proteção de garantias individuais com a eficiência da justiça fiscal e penal.
Análise das decisões judiciais que interpretam e aplicam a súmula
A jurisprudência do STF e do STJ, segue reconhecendo que a constituição definitiva do crédito é requisito indispensável para a configuração dos crimes materiais tributários. No entanto, a análise de casos concretos revela que, em determinadas situações excepcionais, o próprio STF admitiu certa mitigação da aplicação da súmula, reconhecendo a possibilidade de instauração de investigação ou mesmo o prosseguimento da ação penal antes do lançamento tributário, desde que presentes circunstâncias excepcionais e devidamente justificadas.
Um exemplo dessa flexibilização ocorreu no julgamento do Habeas Corpus nº 951.443, decidido pela Segunda Turma do STF em 18 de agosto de 2020. Nesse caso, a defesa impetrou habeas corpus contra a instauração de inquérito policial anterior à constituição definitiva do crédito tributário, alegando violação à Súmula Vinculante nº 24. O Ministério Público havia requisitado a investigação criminal com base em indícios de sonegação fiscal, mesmo antes da conclusão do processo administrativo.
O ponto central da discussão foi se a mera abertura de inquérito policial, sem crédito tributário definitivamente constituído, configuraria afronta à Súmula 24. O Supremo, contudo, entendeu que a instauração do inquérito não tinha como objetivo imediato o oferecimento de denúncia, mas sim a colheita de provas e informações necessárias para que a própria autoridade fiscal pudesse apurar corretamente os fatos e, a partir disso, constituir o crédito tributário de forma adequada.
A decisão ressaltou que o inquérito, nesse contexto, servia como instrumento auxiliar da atividade administrativa, e não como meio de persecução penal antecipada. Assim, a Corte concluiu que não houve afronta à súmula, pois ela veda a responsabilização penal antes do lançamento definitivo, mas não impede a atuação investigativa preliminar quando esta for essencial à própria constituição do crédito.
Outro caso relevante é o Habeas Corpus nº 108.103/DF, julgado em 2011. Nesse processo, o Ministério Público ofereceu denúncia contra um contribuinte pela suposta prática de crime contra a ordem tributária, com base no artigo 1º da Lei nº 8.137/90, antes da constituição definitiva do crédito tributário. Em princípio, essa conduta violaria o entendimento consolidado pela Súmula Vinculante nº 24, que condiciona a tipificação do crime material à existência de crédito certo, líquido e exigível, o que só ocorre após o encerramento do processo administrativo.
Contudo, no decorrer da ação penal, o lançamento tributário foi concluído, e o crédito tornou-se definitivamente constituído. Diante desse fato superveniente, a maioria dos ministros do STF acompanhando o voto do Ministro Luiz Fux, decidiu aplicar analogicamente o art. 493 do Código de Processo Civil, que permite considerar, no julgamento, fatos ocorridos após o início da ação, desde que relevantes para a solução do mérito.
Nesse sentido, o STF entendeu que, embora a denúncia tenha sido apresentada antes do momento processualmente adequado, a posterior formalização do crédito tributário supriu a irregularidade inicial. Como o processo ainda não havia sido julgado e o requisito da constituição definitiva foi preenchido no curso da ação, não haveria prejuízo ao réu nem violação ao devido processo legal. A Corte concluiu, portanto, pela validade da ação penal, admitindo uma flexibilização pontual e justificada da Súmula 24, em nome da coerência jurídica e da economia processual.
Além desses casos, outras decisões têm reforçado a ideia de que o respeito à Súmula nº 24 não deve comprometer o interesse público na apuração de ilícitos tributários complexos. A jurisprudência evolui no sentido de conciliar os direitos fundamentais dos contribuintes, como a legalidade e o devido processo, com a necessidade de preservar a eficiência da fiscalização e da repressão aos crimes fiscais. O STF, assim, adota uma postura de ponderação, reconhecendo que o texto da súmula deve ser interpretado à luz da realidade fática e das exigências do Estado Democrático de Direito.
Essas decisões demonstram que, apesar da rigidez formal da Súmula Vinculante nº 24, o STF tem admitido sua interpretação sistemática e contextualizada, especialmente quando o respeito à lógica processual ou à eficácia da fiscalização tributária o exige.
É importante destacar, contudo, que tais exceções são pontuais e baseadas em particularidades fáticas que não comprometem a regra geral segundo a qual sem crédito tributário definitivamente constituído não há tributo, e, portanto, não há crime material tributário nos termos do artigo 1º da Lei nº 8.137/90.
A Atuação do Ministério Público na Vinculação entre Sonegação Fiscal e Lavagem de Dinheiro
Nos últimos anos, tem-se observado uma crescente tendência do Ministério Público em associar a prática de sonegação fiscal ao crime de lavagem de dinheiro, sobretudo como estratégia jurídica diante das limitações impostas pela Súmula Vinculante n.º 24 do Supremo Tribunal Federal.
Como a súmula estabelece que não há tipificação de crime material contra a ordem tributária sem o lançamento definitivo do crédito tributário, a imputação por sonegação, isoladamente, depende da finalização do processo administrativo fiscal. Diante disso, o MP tem recorrido à lavagem de capitais como meio de antecipar a persecução penal, sustentando que a ocultação dos valores sonegados configura um delito autônomo, desvinculado da constituição formal do tributo.
A Lei nº 9.613/1998, que dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro, não exige o trânsito em julgado do crime antecedente para configurar a lavagem, o que permite ao MP, em tese, imputar essa conduta com base em elementos indiciários. Tal interpretação tem sido frequentemente aplicada em investigações complexas, como a Operação G-43 (2023), que apurou a utilização de empresas de fachada e simulação de operações para ocultar receitas não declaradas no setor de combustíveis, e a Operação Carbono 14 (2022), que investigou redes de sonegação e posterior reintrodução de valores no sistema financeiro mediante uso de laranjas e offshores.
Em ambas as operações, o Ministério Público ofereceu denúncias por lavagem de dinheiro com base em valores supostamente sonegados, mesmo antes da constituição definitiva do crédito tributário.
Essa tendência institucional tem gerado intensos debates na doutrina e jurisprudência. Enquanto alguns autores defendem que a lavagem baseada em crime tributário não definitivamente constituído viola o princípio da legalidade e da tipicidade penal, outros sustentam que, havendo elementos de ocultação e dissimulação concretos, a conduta pode ser tratada autonomamente.
O Superior Tribunal de Justiça, em decisão recente no Recurso em Habeas Corpus (RHC) 161.701/DF, julgado em 19 de março de 2024, adotou postura cautelosa em relação à vinculação automática entre os crimes tributário e de lavagem de dinheiro. No caso, contribuintes acusados de sonegação fiscal quitaram integralmente o débito tributário antes da constituição definitiva do crédito, o que levou à extinção da punibilidade do crime antecedente pelo juízo de primeiro grau.
Com base nisso, o STJ entendeu que, na ausência de crime tributário antecedente tipificado, também não se poderia falar em lavagem de dinheiro, pois faltava o elemento normativo essencial para a configuração desse delito. Assim, o tribunal reconheceu a possibilidade de trancamento da ação penal por lavagem quando o débito tributário é extinto e a materialidade do crime antecedente desaparece, reforçando que a lavagem de dinheiro, embora crime autônomo, depende da existência concreta do delito base.
Assim, constata-se que o Ministério Público tem adotado a lavagem de dinheiro como uma via de persecução indireta da sonegação fiscal, sobretudo nos estágios iniciais da investigação, o que revela tanto uma tentativa de superar a barreira imposta pela Súmula Vinculante 24 quanto uma ampliação do conceito de crime antecedente para fins de lavagem. Todavia, tal conduta exige análise crítica, diante do risco de antecipação indevida da persecução penal sem a devida constituição administrativa do crédito, podendo comprometer garantias fundamentais do investigado.
Elementos do STF sobre o Uso de Instrumentos de Investigação na Aplicação da Súmula Vinculante nº 24
O STF tem reafirmado que a exigência de constituição definitiva do crédito tributário como condição para a tipificação penal se aplica exclusivamente ao momento do oferecimento da denúncia, não representando obstáculo à fase investigativa preliminar conduzida pelo Ministério Público ou pela autoridade policial.
Entre os elementos consolidados na jurisprudência do STF, destaca-se o entendimento de que a instauração de inquérito policial, bem como a adoção de medidas cautelares, como busca e apreensão, interceptações telefônicas e quebras de sigilo bancário ou fiscal, são válidas mesmo antes do lançamento definitivo, desde que observadas as garantias constitucionais do devido processo legal, proporcionalidade e reserva de jurisdição.
Essa posição foi claramente afirmada no Habeas Corpus nº 104.367/SP, relatado pelo Ministro Dias Toffoli e decidido pela Segunda Turma do STF em 10 de maio de 2012, que discutiu a validade de medidas investigativas, como inquérito policial, busca e apreensão e quebra de sigilos bancário ou fiscal, realizadas antes da constituição definitiva do crédito tributário.
A defesa alegava que tais diligências antecipariam indevidamente a persecução penal, violando a Súmula Vinculante nº 24, a qual exige que a denúncia por crime material tributário só ocorra após o lançamento definitivo do crédito. No entanto, o STF firmou entendimento de que a súmula se aplica apenas ao momento do oferecimento da denúncia, ou seja, ao início da ação penal, e não restringe a fase investigativa preliminar.
Segundo o voto do relator, as diligências podem preceder o lançamento tributário quando visam à coleta de indícios mínimos de autoria e materialidade; são válidas desde que subordinadas ao controle judicial (reserva de jurisdição) e respeitem os princípios constitucionais do devido processo legal e da proporcionalidade. Com isso, o Supremo confirmou que a investigação penal pode servir como instrumento auxiliar ao processo administrativo tributário, sem configurar antecipação de juízo condenatório.
O STF também tem admitido a mitigação da aplicação rígida da súmula quando a investigação revela pluralidade delitiva, como em casos de associação entre crimes tributários e outros delitos autônomos, especialmente lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, embaraço à fiscalização ou organização criminosa.
No ARE 999.425 AgR, com decisão de repercussão geral proferida em 2 de março de 2017, também é um marco na flexibilização da aplicação da Súmula Vinculante nº 24. Nesse recurso extraordinário, o STF analisou casos em que estavam sendo investigadas não apenas infrações tributárias, mas também crimes penais autônomos e conexos, como lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e organização criminosa, além de infrações fiscais, como embaraço à fiscalização.
A Corte firmou o entendimento de que, na presença de indícios claros desses delitos autônomos, é possível legitimar a instauração de inquérito e medidas cautelares antes da conclusão do processo administrativo-fiscal, respeitando-se o princípio da autonomia penal dessas condutas.
Ou seja, mesmo sem o crédito tributário definitivamente constituído, as autoridades podem avançar na investigação quando há elementos que apontam para crimes que extrapolam a esfera tributária, sem incorrer em violação à Súmula nº 24. Esse posicionamento reforça uma visão pragmática do Direito Penal Tributário, compatibilizando a proteção ao contribuinte com a necessidade de resposta eficaz a esquemas complexos de criminalidade econômica.
Além disso, em julgamentos mais recentes, como o HC 551.422/PI e o ARE 1.539.730 AgR, o Supremo Tribunal Federal manteve a possibilidade de realização de investigações amplas quando as diligências visam resguardar a efetividade da jurisdição penal em contextos de fraude estruturada ou embaraço à atividade fiscalizatória, revelando uma postura cada vez mais pragmática diante de crimes econômicos complexos.
No HC 551.422/PI, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em 9 de junho de 2020, discutiu-se a admissibilidade de ações penais instauradas antes da constituição definitiva do crédito tributário, em casos que envolvem fraudes complexas associadas a condutas autônomas, como corrupção ativa e passiva, e uso de empresas fantasmas para ocultação patrimonial. A defesa sustentava violação à Súmula Vinculante nº 24, mas o STJ entendeu que sua aplicação não é absoluta quando o cenário fático demonstra a prática de múltiplos delitos conexos.
O relator, Ministro Nefi Cordeiro, ressaltou que, diante da existência de indícios robustos de associação criminosa com o objetivo de fraudar o fisco, a persecução penal pode prosseguir mesmo que o crédito tributário ainda não tenha sido formalmente constituído. A Corte concluiu que não havia justa causa para o trancamento da ação penal, reconhecendo, assim, que a mitigação do enunciado sumular é possível em hipóteses de pluralidade delitiva e embaraço deliberado à fiscalização.
Já no ARE 1.539.730 AgR, julgado pelo Plenário do STF em 14 de abril de 2025, a controvérsia girava em torno da validade de medidas investigativas, como quebras de sigilo bancário e fiscal, em fase prévia ao lançamento tributário definitivo, diante de indícios de fraude estruturada e impedimento à atividade fiscalizatória. Embora a lógica inicial da Súmula Vinculante nº 24 pudesse sugerir o impedimento dessas diligências, o Supremo reafirmou que sua incidência restringe-se ao momento do oferecimento da denúncia, não alcançando a fase de investigação preliminar.
A Corte reconheceu a legitimidade das diligências investigativas antes do lançamento, desde que: (i) existam elementos concretos da prática de crimes tributários complexos ou conexos; (ii) sejam observadas as garantias constitucionais do devido processo legal, proporcionalidade e reserva de jurisdição; e (iii) não haja antecipação de juízo condenatório, com denúncia oferecida sem crédito tributário definitivamente constituído.
Esse posicionamento reafirma uma compreensão equilibrada do STF: a proteção ao contribuinte deve ser respeitada, mas não pode servir como obstáculo à repressão qualificada de condutas ilícitas sofisticadas. Assim, mantém-se a coerência com a Súmula Vinculante nº 24, sem que se inviabilize a atuação estatal diante de fraudes econômicas complexas e organizadas.
Em síntese, os julgados analisados demonstram que o STF tem adotado uma postura interpretativa que busca compatibilizar a garantia da legalidade penal com a efetividade da atuação estatal no combate à criminalidade tributária complexa. A Súmula Vinculante nº 24 continua sendo um marco protetivo ao devido processo legal, mas não deve ser interpretada de forma a inviabilizar investigações legítimas e proporcionais, especialmente quando envolvem delitos conexos que extrapolam a esfera meramente fiscal.
Conclusão
A síntese dos principais resultados aponta que o STF tem mantido a interpretação de que a Súmula Vinculante nº 24 incide sobre a fase de oferecimento da denúncia, não impedindo, contudo, a instauração de inquéritos e a realização de diligências investigativas preliminares.
A Corte admite o uso de medidas cautelares, desde que autorizadas judicialmente e respaldadas por indícios mínimos de materialidade delitiva. Além disso, a jurisprudência tem evoluído no sentido de flexibilizar a aplicação da súmula quando estão presentes crimes conexos, como lavagem de dinheiro e falsidade ideológica, conferindo maior efetividade à investigação penal de fraudes complexas.
Dessa forma, concluo que a resposta à pergunta de pesquisa, se a Súmula Vinculante nº 24 inviabiliza a atuação do Ministério Público na repressão aos crimes tributários, é negativa. A súmula impõe um marco formal relevante, mas não impede a apuração prévia, desde que respeitados os princípios constitucionais. O Ministério Público pode atuar investigativamente, inclusive articulando condutas tributárias com outros crimes autônomos, como estratégia para viabilizar a responsabilização penal em contextos de elevada complexidade.
Como proposta para pesquisas futuras, sugiro o aprofundamento da análise sobre a articulação entre sonegação fiscal e crimes de lavagem de dinheiro, especialmente diante das inovações legislativas e tecnológicas que afetam a forma de ocultação patrimonial. Também seria pertinente investigar o impacto da jurisprudência da Súmula Vinculante nº 24 nas decisões de primeira instância e nos acordos de não persecução penal, considerando os limites práticos à atuação do Ministério Público e o papel da administração tributária na repressão aos ilícitos fiscais.
Portanto, a Súmula Vinculante nº 24 continua sendo um marco interpretativo fundamental para a delimitação entre o ilícito administrativo e o ilícito penal no campo tributário, exigindo, contudo, constante reflexão crítica diante das transformações jurídicas e econômicas da contemporaneidade.
Além disso, destaca-se a necessidade de um diálogo institucional mais efetivo entre o Ministério Público, a Receita Federal, as Procuradorias Fazendárias e o Judiciário, a fim de garantir uma atuação integrada e eficiente no enfrentamento aos crimes tributários.
A efetividade da repressão penal, especialmente em casos de grande complexidade e elevado impacto financeiro, depende não apenas da correta interpretação da Súmula Vinculante nº 24, mas também da cooperação entre órgãos e da adoção de mecanismos modernos de inteligência fiscal e análise de dados.
Tal articulação é essencial para evitar a impunidade, ao mesmo tempo em que se preserva o devido processo legal e os direitos fundamentais dos investigados.
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