Governança corporativa na recuperação judicial: mitigação e conflitos de interesses (2025)
Brasil tem recorde de pedidos de Recuperação Judicial, mas índice baixo de êxito, causado por diversos conflitos de interesses e baixa utilização de mecanismos disponíveis de Governança Corporativa.
O Brasil tem recorde de pedidos de Recuperação Judicial, mas índice baixo de êxito, causado por diversos conflitos de interesses e baixa utilização de mecanismos disponíveis de Governança Corporativa.
O cenário empresarial brasileiro tem enfrentado desafios significativos no que diz respeito à reestruturação empresarial. Segundo dados apresentados pela Serasa Experian[1], houve aumento de 61,8% nos pedidos de Recuperação Judicial em 2024 em comparação a 2023. Com uma taxa de sucesso estimada em apenas 25% de todas as demandas, torna-se evidente que o êxito do processo recuperacional vai além da elaboração de um Plano de Recuperação Judicial (“PRJ”) adequado, mas também requer uma estrutura de Governança Corporativa robusta e transparente.
Nesse contexto, a Governança Corporativa assume papel central e fundamental no processo de reestruturação, pois se trata de instrumento essencial para prevenir, tratar e mitigar os conflitos de interesses que naturalmente surgem durante o procedimento. Esses conflitos, se não geridos de forma técnica e estratégica, comprometem a viabilidade do PRJ, a preservação dos direitos da devedora, dos credores, dos sócios e dos stakeholders[2] envolvidos, bem como da atuação adequada e independente do Administrador Judicial.
O primeiro e mais evidente conflito surge da dificuldade de conciliar os interesses dos credores e da devedora no que diz respeito às condições financeiras dispostas no PRJ, especialmente para equalizar valores, deságios e parcelamentos que resultem em parcelas que ambas as partes podem entender ser justas. Isso se intensifica, particularmente, quando, apesar de não haver o quórum[3] necessário à aprovação do PRJ, o Juízo determina o cram down[4], previsto no artigo 58, § 1º, da Lei nº 11.101/05 (“LREF”), ocasião que diversos credores recorrem da decisão de concessão da Recuperação Judicial, o que posterga o fim do processo e dificulta (ainda mais) a harmonia dos interesses.
Além de focar na reestruturação financeira da devedora por si só, é comum a reestruturação societária da recuperanda, muitas vezes necessária no curso do processo, pois surgem conflitos entre sócios/acionistas e/ou stakeholders, em razão de diluições societárias e incertezas quanto ao retorno dos investimentos ou ao destino de aportes já realizados e/ou até mesmo a divisão de responsabilidades entre os que compõem o capital social e, quando aplicável, os membros da mesa.
Ademais, existe conflitos recorrentes exclusivamente entre os credores, por haver classes distintas, consoante previsão do artigo 45 da LREF, que determina critérios distintos de votações para as classes, o que exige uma negociação interna para que o melhor interesse de todos os credores em geral seja respeitado e, por conseguinte, ocorra a manutenção da viabilidade do PRJ.
E, por último, mas tão importante quanto os demais conflitos, existe a necessidade de respeitar a independência do Administrador Judicial, que ostenta expertise avançada para a fiscalização transparente e eficaz do processo recuperacional, mas por muitas vezes, a devedora e/ou seus representantes legais, acionistas e/ou stakeholders, tentam cercear as informações e a atuação do expert nomeado pelo Juízo.
Para mitigar os desafios acima (conflitos de interesses recorrentes), é necessária a adoção de medidas que dependem da Governança Corporativa devidamente estruturada, com a adoção de práticas que assegurem a transparência ao divulgar as informações; equidade entre todos os envolvidos; e responsabilidade (accountability) de quem agir contrariamente ao melhor interesse de todos na Recuperação Judicial.
Dito isso, os seguintes mecanismos tendem a evitar litígios e conflitos de interesses:
a) Transformação de Tipo Jurídico ou Adequação Contratual/Estatutária. Para empresas não optantes pelo Simples Nacional[5], quando não for o tipo jurídico e/ou, especialmente quando se tratar de indústria, que, ao ser tributada pelo regime do Lucro Real[6] poderá, além de reduzir os custos tributários, é recomendável a transformação para Sociedade Anônima, pois será o primeiro passo para a formação de conselho independente e prevenção de conflitos de interesses, seja mediante acordo de acionistas bem elaborado, seja por normas internas adequadas.
Caso a devedora já seja uma Sociedade Anônima, o primeiro passo é readequar as normas estatutárias se os termos forem genéricos, especialmente nas divisões de responsabilidades/atribuições e vedações às práticas que violem princípios e legislação vigente.
Alternativamente, se não houver cláusula específica no Contrato Social da sociedade limitada, recomenda-se, especialmente àquelas optantes pelo Simples Nacional cujas alíquotas de impostos sejam as menos custosas à contribuinte, que incluam cláusula de regência supletiva pela Lei nº 6.404/76 (“LSA”), conforme previsão expressa do artigo 1.053, parágrafo único[7], do Código Civil, e que reformulem o ato societário com a inclusão/adequação de normas de Governança Corporativa, com a permissão e a regulamentação do uso de mecanismos da Sociedade Anônima, independentemente de transformação.
b) Conselho de Administração Independente. Ato contínuo à readequação contratual/estatutária sugerida acima, a constituição de um conselho de administração independente também se destaca como medida fundamental para viabilizar a superação da crise, uma vez que possibilita a fiscalização técnica das atividades da devedora por profissionais experientes em gestão de crise, garantindo a imparcialidade das decisões e fortalecendo a confiança dos credores, com harmonia na comunicação entre a devedora, o Comitê de Credores e o Administrador Judicial no processo.
c) Implementação de Dispute Board[8]. Como é cediço, a natureza da Recuperação Judicial é complexa e prolongada, de modo que, sem prejuízo da constituição de conselho de administração independente, a implementação de um Dispute Board (“DB”) constitui ferramenta valiosa para o acompanhamento especializado do processo. Este mecanismo permite análise imparcial dos pontos sensíveis dos trâmites recuperacionais, com emissão de pareceres não vinculantes de caráter recomendatório.
O DB deve atuar em harmonia com os representantes da devedora, o Comitê de Credores e o Administrador Judicial, proporcionando alternativa eficaz para prevenção e resolução de litígios, especialmente no que tange aos conflitos de interesses em geral.
Exemplos práticos de atuação incluem: (a) acompanhamento de auditoria financeira com maior independência e fornecimento de relatórios com recomendações de melhorias; (b) criação de código de ética e conduta específico para o projeto de recuperação judicial.
Destarte, a Governança Corporativa é crucial na Recuperação Judicial, pois vai além de mera formalidade e do desempenho na gestão pura e simples da empresa devedora ou de seu grupo econômico, haja vista que a gestão deve ser especializada e inteligente, com trabalhos disruptivos e que ensejarão sucesso à superação da crise econômica.
Isso porque todos os mecanismos de mitigação de conflitos de interesses, pautados em princípios de transparência, equidade e responsabilidade, aumentam as chances de recuperação e a segurança jurídica para todos os envolvidos.
Logo, diante do aumento de pedidos de recuperação judicial e da baixa taxa de sucesso, a adoção de práticas robustas de Governança Corporativa, como Conselhos/Representantes independentes e DB’s, é imprescindível para a efetividade do instituto, o respeito ao Princípio da Conservação da Empresa e a harmonização dos interesses, o que contribui não somente aos casos isolados de Recuperação Judicial, mas a todo o sistema de reestruturação brasileiro, que se tornará cada vez mais célere e eficaz.
Notas
[1] https://www.serasaexperian.com.br/sala-de-imprensa/indicadores/brasil-registra-22-mil-pedidos-de-recuperacao-judicial-em-2024-o-maior-numero-da-serie-historica-aponta-serasa-experian/
[2] Stakeholders são as partes interessadas nas ações da empresa, que podem influenciar em decisões e até mesmo serem afetadas direta ou indiretamente pelos passivos da devedora, especialmente em investimentos realizados. Um exemplo de stakeholder comum é a Sociedade em Conta de Participação (“SCP”), com sócios ostensivos que exercem as atividades empresariais em seus nomes ao passo que os sócios ocultos atuam apenas como investidores.
[3] O artigo 45 da LREF, em seus parágrafos primeiro e segundo, determinam que os quóruns mínimos para a aprovação do PRJ são: (a) por votos que representem valor superior a metade dos créditos totais para os credores com garantias reais e os credores quirografários; e (b) por votos de maioria simples (ou seja, por quantidade de credores) quando se tratar de credores trabalhistas e M.E.’s e E.P.P.’s.
[4] O Juízo poderá conceder a Recuperação Judicial ainda que não haja o quórum previsto no artigo 45, notadamente: (a) votos favoráveis de credores que representem mais da metade do valor devido, independentemente de classes; (b) a aprovação de 3 (três) das classes de credores ou, caso haja somente 3 (três) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 2 (duas) das classes ou, caso haja somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas (contagem na forma prevista pelo artigo 45); e (c) na classe que rejeitar o PRJ, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores (contagem no critério previsto pelo artigo 45, §§ 1º e 2º).
[5] O Simples Nacional é um regime tributário simplificado, unificado e conhecido como “favorecido”, destinado a microempresas (M.E.) e empresas de pequeno porte (E.P.P.) que atendam aos requisitos estabelecidos na Lei Complementar nº 123/2006. É um regime de tributação que reduz a burocracia ao unificar o recolhimento de diversos tributos federais, estaduais e municipais em uma única guia, o Documento de Arrecadação do Simples Nacional (DAS), mas é mais favorável às atividades de serviços, que possuem reduções de alíquotas pelo fator “r”, baseado nos valores da folha de pagamentos do contribuinte.
Para as indústrias, as faixas de alíquotas de impostos costumam ser superiores e causam passivo maior ao contribuinte.
[6] O Lucro Real é o regime de tributação do IRPJ e da CSLL cuja base de cálculo sobre o lucro líquido da pessoa jurídica contribuinte, ajustado conforme a legislação fiscal. Em suma, o resultado do imposto a ser pago se dá após considerar adições, exclusões e compensações permitidas pela legislação. É obrigatório para as pessoas jurídicas elencadas no artigo 5º da Lei Federal nº 8.541/92, mas pode ser escolhido pelo contribuinte se assim desejar.
[7] Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.
Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima.
[8] Dispute Board é a “Comissão de Resolução de Disputas”, composto, geralmente, por especialistas no assunto do projeto a ser desempenhado, formado por número ímpar de pessoas de confiança das partes desejem implementá-lo.