Criminologia e política criminal: integração e desafios contemporâneos
Diante da complexidade da criminalidade, fica evidente a necessidade premente de uma abordagem interdisciplinar e colaborativa que envolva a criminologia e a política criminal.
A criminalidade transcende a mera estatística, configurando-se como um problema social multifacetado que exige constante reflexão e medidas eficazes por parte do Estado. As raízes desse mal se entrelaçam em diversas áreas, desde a desigualdade social até a falta de oportunidades, tornando a busca por soluções um desafio complexo e urgente.
Para enfrentar essa realidade, o Estado deve assumir um papel proativo na implementação de políticas públicas abrangentes e eficazes.
A definição mais simples para o termo “política pública” é: “[...] as coisas que o governo escolhe ou não fazer”.1 Na realidade, esse é um conceito intuitivo. Na realidade, esse é um conceito intuitivo, visto que tais políticas devem ter como objetivo central o controle dos riscos sociais e, consequentemente, a redução dos fatores que contribuem para a ocorrência de crimes em larga escala.
No contexto geral, essas politicas devem ser implementadas através da óptica da criminologia e da política criminal, duas áreas interligadas dentro do estudo do crime, da justiça e do controle social. Ambas as disciplinas se dedicam a analisar as complexas dinâmicas que permeiam o fenômeno criminal, buscando formular soluções eficazes para lidar com seus impactos na sociedade. A política criminal, apesar de ser “[...] a pedra angular de todo o discurso legal-social da criminalização-descriminalização”, dependente do conhecimento empírico acerca da criminalidade, de seus níveis e de suas causas.2
Esses conhecimento, porém, são objetos da Criminologia uma ciência interdisciplinar que estuda os fenômenos criminais em suas múltiplas dimensões ingressa na compreensão científica do crime, do criminoso, da vítima e do controle social.
Sua perspectiva realiza a fusão da antropologia com o pensamento sociológico, abrangendo ainda outras disciplinas e ciências para traçar o estudo das teorias do direito criminal através da análise de causas, características, prevenção e o controle de incidências dos fenômenos criminais.
Contudo, essa ciência se distingue da aplicação do Direito Penal. Enquanto a criminologia investiga o crime em suas dimensões sociais e biopsicológicas, a dogmática penal foca no aspecto jurídico do delito, garantindo que a resposta legal seja proporcional às normas estabelecidas.
Entende Jorge de Figueiredo Dias que “[...] a dogmática penal somente pode evoluir ao levar em conta o trabalho criminológico […]”.3
Por outro lado, a política criminal, se concentra na análise crítica das leis penais e das medidas de controle social utilizadas para prevenir e reprimir o crime. Ela se baseia em conhecimentos da criminologia, do direito penal, da sociologia e de outras áreas para formular e avaliar políticas públicas eficazes na gestão do crime.
A política criminal, deve se ater à tensão “[...] entre o ‘real’ e o ‘real’”, o primeiro relacionado às normas legais “reais” e o segundo relativo à sua “missão”.4
Na evolução temporal dessa política, anteriormente o crime deveria ser estritamente punido com a rigorosa pena de encarceramento.
No entanto, embora essa penalidade ainda seja um recurso necessário para conter o comportamento criminoso, as políticas criminais contemporâneas adotam uma abordagem educativa buscando não apenas impor sanções penais severas, mas também enfrentar questões sociais subjacentes visando prevenir e reduzir a incidência criminal.
O objetivo é alcançar a efetividade de alternativas à prisão, como penas de prestação de serviços à comunidade, possibilitando à política criminal adotar abordagens mais humanizadas na administração da justiça criminal.
Deste modo, considerando essa fusão de abordagens e objetivos distintos, a criminologia e política criminal se entrelaçam em uma simbiose crucial no combate ao crime.
A criminologia fornece “[...] o substrato analítico do fenômeno criminal” aos operadores jurídico-penais. A política criminal transforma as análises e orientações da criminologia “[...] em opções e estratégias concretas de controle da criminalidade”. O direito penal converte “[...] o saber criminológico aplicado pela política criminal em normas.5
Essa interação não apenas amplia a compreensão do fenômeno criminal, mas também traz benefícios tangíveis que asseguram a formulação de políticas públicas embasadas em dados confiáveis, aumentando sua eficácia e evitando medidas punitivas ineficazes. A partir da cooperação entre as ciências, “[...] substitui-se a ignorância mútua própria de frères ennemis”6, resultando em soluções justas e adequadas para os casos concretos no âmbito do sistema de justiça criminal.
Na prática, essa integração se reflete em exemplos reais. Estudos sobre a reincidência criminal subsidiam o desenvolvimento de programas de ressocialização mais eficazes, visando diminuir esse fator.
Da mesma forma, a análise das causas da violência urbana possibilita a implementação de medidas preventivas voltadas a proteger as pessoas e a propiciar aos sujeitos que se encontram socialmente em desvantagem o efetivo usufruto de seus direitos civis, econômicos e sociais.
No entanto, apesar da importância desta integração para o enfrentamento do crime, sua concretização não é automática e se defronta com diversos obstáculos.
Entre eles, destacam-se as persistentes disparidades raciais, étnicas e socioeconômicas no sistema de justiça criminal, a rápida evolução tecnológica e seus impactos na privacidade e vigilância, a necessidade de cooperação internacional para combater o crime organizado transnacional, especialmente no âmbito do crime cibernético e financeiro, e a necessidade de desenvolver programas eficazes de reabilitação e reintegração para infratores.
As disparidades raciais, étnicas e socioeconômicas enraizadas no sistema de justiça criminal representam um desafio significativo. Superá-las requer uma análise crítica da criminologia sobre suas origens, incluindo o racismo estrutural e a marginalização sistemática de certos grupos sociais.
Quanto a rápida evolução tecnológica, a política criminal enfrenta o desafio de regular o uso de tecnologias de vigilância e proteger a privacidade.
A criminologia deve acompanhar essas mudanças e analisar seus impactos na sociedade, garantindo que a política criminal assegure a segurança pública sem violar os direitos humanos.
No tocante ao crime organizado transnacional, notadamente o crime cibernético e o crime financeiro, demanda-se uma resposta global e coordenada. É essencial que a política criminal colabore com outros países para compartilhar informações, elaborar estratégias conjuntas e fortalecer a cooperação internacional.
Em relação a reabilitação e reinserção social dos infratores são processos essenciais para reduzir a reincidência criminal e assegurar a segurança pública.
A criminologia deve desenvolver programas eficazes de reabilitação, enquanto a política criminal deve investir na implementação desses programas, permitindo aos infratores reintegrarem-se à sociedade de maneira produtiva.
Conclui-se que fortalecer a integração entre criminologia e política criminal é crucial em um ambiente democrático que fomente a participação social. Superar os desafios para essa integração é essencial para a eficácia do sistema de justiça criminal.
Para alcançar esse objetivo, é indispensável um esforço colaborativo e sinérgico envolvendo diversos atores da sociedade, tais como o governo, instituições acadêmicas, organizações da sociedade civil e profissionais do direito.
O diálogo contínuo entre esses setores é essencial para identificar lacunas, desafios e oportunidades, permitindo a criação de estratégias abrangentes e eficazes. Além disso, a pesquisa científica de alta qualidade desempenha um papel crucial ao fornecer evidências sólidas para embasar políticas públicas informadas e baseadas em dados concretos.
A implementação efetiva dessas políticas demanda um compromisso contínuo com a justiça, a equidade e os direitos humanos. Nesse sentido, uma política criminal, assim como qualquer política pública, não pode estar voltada à “[...] defesa dos interesses das classes detentoras do poder”.
Não pode ser um instrumento de realização do poder político voltado à eliminação da resistência ideológica ou à proteção de bens jurídicos dos quais é detentora, “[...] em detrimento da maioria”.7
Em última análise, diante da complexidade da criminalidade, fica evidente a necessidade premente de uma abordagem interdisciplinar e colaborativa que envolva a criminologia e a política criminal. Essa integração não apenas amplia nossa compreensão do fenômeno criminal, mas também oferece bases sólidas para a formulação e implementação de políticas públicas eficazes e justas.
Superar os desafios impostos pelas causualidades contemporâneas requer um compromisso contínuo com a justiça, a equidade e os direitos humanos. Somente através do engajamento colaborativo entre diversos setores da sociedade e do rigoroso embasamento em evidências científicas, poderemos avançar na construção de um sistema de justiça criminal verdadeiramente justo, inclusivo e eficaz.
REFERÊNCIAS
1 SCHNEIDER, Anne; INGRAM, Helen. Policy Design. In: RABIN, Jack (Org.). Encyclopedia of public administration and public policy. Nova York: Oxford University Press, 2005, p. 188.
2 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: RT, 1999, p. 23.
3 DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. Cit., p. 23.
4 HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introduccion a la criminologia y al derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanc, 1989, p. 65.
5 GUINDANI, Miriam Krenzinger. Sistemas de Política Criminal: retórica garantista, intervenções simbólicas e controle social punitivo. Cadernos CEDES/IUPERJ. v. 01. p. 01-19, 2005, p. 10.
6 DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. Cit., p. 24.
7 MORAES, Maurício Zaoide de. Política criminal, Constituição e processo penal: Razões da Caminhada Brasileira para a Institucionalização do Caos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.v.101 p. 403-430 jan.-dez. 2006, p. 413.