O novo CPC e aplicação da experiência comum do juiz: divergências no modelo proposto pelo ordenamento jurídico?
Diante do atual modelo democrático e imparcial adotado pelo ordenamento jurídico, é possível o Estado/juiz valer-se de sua própria convicção na aplicação do direito?
É fato consolidado de que a promulgação da Lei nº 13.105/2015 revolucionou o direito processual civil brasileiro, uma vez que, proporcionou grande alento para a promoção de importantes alterações, tais como, a celeridade procedimental, a conversão das ações individuais em coletivas, a redução de recursos, a priorização da autocomposição e entre outros inúmeros feitos.
Houve também, neste ínterim, um fortalecimento do vínculo entre os institutos processuais com as garantias dispostas na Carta Magna de 1988, como por exemplo, a eficácia e fundamentação das decisões judiciais e a imparcialidade dos órgãos julgadores, que, indubitavelmente, reforçaram a aplicação das normas processuais.
No que tange as mudanças promovidas pelo atual código, há um assunto que ainda gera discussões no meio jurídico. Tal questão é o dispositivo incluído na norma do art. 375 do novo CPC, o qual estabelece que o juiz poderá aplicar as regras de experiência comum subministradas pela observação do que “ordinariamente” acontece (BRASIL, 2016, p. 91).
O que se entende por parte da redação do dispositivo é a existência de dois aspectos, a saber, o objetivo e o subjetivo. De certa forma, a reunião destes dois elementos é questionável, já que a norma está autorizando a aplicação da regra por meio de experiências pessoais e não aquelas decorrentes da lei. Por conseguinte, é notório que a expressão decorre de um vazio que a própria norma deixa em aberto, pois o que é comum para um pode ser incomum para outro, e vice-versa. Assim, geram-se dúvidas ao intérprete na aplicação do dispositivo, tendo em vista que, diante da imparcialidade objetiva como é possível o juiz usar de sua própria consciência?
Depreende-se nesses casos que a prática da experiência comum necessita de um juízo singular, haja vista que, cada indivíduo possui vivências únicas do que lhe habitualmente acontece. Nesta senda, do dispositivo acima citado extrai-se certa subjetividade por parte do magistrado ao analisar determinado meio probatório, resultando em um agir discricionário e gerando contradição com as contribuições propostas pelo Estado Democrático de Direito, o qual preponde a imparcialidade e neutralidade dos órgãos julgadores.
Sobre o dispositivo, este encontrava-se previsto no CPC de 1973 na norma do seu art. 335, bastando o magistrado na falta de normas jurídicas, a aplicação da experiência comum quando lhe achasse melhor (BRASIL, 2019). Por sua vez, o novo código manteve inalterado o mesmo entendimento na recepção do meio probatório, oportunizando ao juiz adotar sua visão no que lhe acredita ser habitual. É possível, na presença de lacunas o uso da experiência comum? E a analogia, os costumes e os princípios basilares do direito?
Como bem observado por Câmara (2018, p. 234) o CPC de 1973 foi promulgado em um regime de exceção que não possuía em seu texto original qualquer compromisso com o Estado Democrático de Direito, não se importando sequer com os direitos inerentes aos jurisdicionados, devido ao seu caráter técnico.
Neste diapasão, verifica-se uma inconstância com o que prega o texto constitucional e a legislação infraconstitucional, os quais respectivamente, tutelam pela imparcialidade e objetividade. Isto posto, como ficaria a neutralidade e imparcialidade do órgão julgador na utilização do seu próprio entendimento e experiência individual?
Tem-se em mente que a imparcialidade é o pressuposto de fundamentação e eficiência da chancela jurisdicional, o qual determina o texto constitucional na norma do seu art. 93, IX, que toda decisão judicial deve ser fundamentada, sob pena de nulidade (BRASIL, 2018, p. 35).
Ainda assim, dentre os diversos princípios instituídos no ordenamento legal está o princípio do convencimento motivado, em que o magistrado tem de estar adstrito aos elementos probatórios reunidos no feito, não se baseando na sua livre convicção. Deste modo, a fundamentação do princípio em voga advém da perspectiva de que o juiz não goza de autonomia para agir de acordo com a sua cognição subjetiva, ou seja, de forma discricionária.
Deve ele vincular seu exercício legal com os mandamentos dispostos no ordenamento jurídico. A atividade jurisdicional não é e não pode ser discricionária. Não é possível de forma alguma reconhecer ao juiz a possibilidade de utilização de sua própria consciência.
Conforme leciona Câmara (2018, p. 232), é necessário buscar que um Estado que se diz Democrático e de Direito demanda-se de plena vinculação com os preceitos estabelecidos na lei, porquanto, não se pode admitir o pensamento no qual seria indiferente para o Direito e para a sociedade que o magistrado escolha este ou aquele meio, porque, ao final, se chegaria à conclusão que seria juridicamente indiferente dar-se razão a uma das partes ou à outra.
Destarte, fica a reflexão sobre o discutido dispositivo. Havendo dúvidas ao recepcionar a prova, o juiz deve adotar sua experiência no que lhe acredita ser comum, ou valer-se da analogia, dos costumes e dos princípios, assim como dispõe o ordenamento jurídico? Sabe-se que no atual cenário jurídico é inconcebível a premissa na qual o Estado/juiz pode valer-se do seu próprio entendimento, ou ainda escolher este ou aquele jeito para promover a tutela jurisdicional, visto que, a prática judicante está longe de ser discricionária. Cabe aos operadores do direito zelarem pela imparcialidade e equidade dos atos processuais, ao passo que, a máquina judicial precisa apoiar-se nos princípios e prerrogativas inerentes ao sistema normativo, se abstendo de qualquer arbitrariedade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código de Processo Civil – Lei nº 13.105, de março de 2015/ supervisão editorial Jair Lot Vieria – 2º ed. – São Paulo: Edipro, 2016.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. – Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2018.
BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 jan. 1973. Disponível em:. Acesso em: 26 dez. 2019.
CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo código de processo civil brasileiro. – 4 ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2018.