Incidente de desconsideração da personalidade jurídica
A base para a desconsideração da personalidade jurídica não se limita apenas ao não cumprimento das obrigações financeiras, mas sim ao abuso da personalidade jurídica por meio do evidente desvio de finalidade e da comprovação incontestável da confusão patrimonial
O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica pode ser solicitado tanto na Justiça Comum Cível quanto nos Juizados Especiais Cíveis. No entanto, sua aplicação na Justiça do Trabalho é menos comum e, em minha opinião pessoal, pode ser considerada uma séria questão de competência.
Primeiramente, ao discutir a essência do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica na Justiça Comum Cível, é importante mencionar que ele está regulamentado pelo artigo 50 do Código Civil (CC), juntamente com as disposições previstas nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil.
“Em caso de abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
Nesse primeiro contexto, considerando a norma que proíbe o chamado abuso da personalidade jurídica, a jurisprudência nacional é amplamente favorável a decisões que permitem a desconsideração da personalidade jurídica. Um exemplo disso pode ser observado no seguinte julgado:
“(...) II A responsabilização dos administradores e sócios pelas obrigações imputáveis à pessoa jurídica, em regra, não encontra amparo tão-somente na mera demonstração de insolvência para o cumprimento de suas obrigações (Teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica). Faz-se necessário para tanto, ainda, ou a demonstração do desvio de finalidade (este compreendido como o ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica), ou a demonstração da confusão patrimonial (esta subentendida como a inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial do patrimônio da pessoa jurídica ou de seus sócios, ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas) (...)” [STJ, REsp 1.200.850/SP, Rel. Min. Massami Uyeda, 3ª Turma, DJe 22.11.2010].”
A tradução dessa orientação jurisprudencial para o caso em questão permite concluir, sem dúvidas, que ocorreram dois fenômenos jurídicos.
Isso ocorre devido ao fato de que o comportamento das empresas envolvidas, que inclui a criação de várias empresas e a formação de holdings patrimoniais, resultou em uma mistura da estrutura societária, evidenciando assim um claro desvio de finalidade na criação das pessoas jurídicas, com a intenção fraudulenta de cometer atos ilícitos.
Além disso, no mesmo contexto fático, observa-se a ocorrência concreta de confusão patrimonial entre os sócios e a devedora original.
A doutrina e a jurisprudência nacional aceitam a responsabilização de outra empresa que faça parte do mesmo grupo econômico do executado, como já mencionado.
Nesse caso, a situação é incontestável, uma vez que os excipientes são sócios da devedora original, estabelecendo uma relação comercial e jurídica estreita. Isso vai além de uma mera circunstância factual, sendo comprovado por meio de documentação legal.
Neste mesmo sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal Judiciário (STJ), caminha no seguinte mandamento:
“[...] 3. A confusão patrimonial existente entre sócios e a empresa devedora ou entre esta e outras conglomeradas pode ensejar a desconsideração da personalidade jurídica, na hipótese de ser meramente formal a divisão societária entre empresas conjugadas. Precedentes. 4. A superação da pessoa jurídica afirma-se como um incidente processual e não como um processo incidente. No caso, o reconhecimento da confusão patrimonial é absolutamente contraditório com a pretendida citação das demais sociedades, pois, ou bem se determina a citação de todas as empresas atingidas pela penhora, ou bem se reconhece a confusão patrimonial e se afirmar que se trata, na prática, de pessoa jurídica única, bastando, por isso, uma única citação. Havendo reconhecimento da confusão, descabe a segunda providência [...]” [REsp 907.915/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 27.06.11].
Diante desse cenário, é importante destacar que, mesmo quando existem indícios de formação de grupo econômico, não é necessário esgotar todos os recursos de expropriação contra os demais devedores para que os excipientes também sejam responsabilizados pela dívida.
Isso ocorre porque a situação de insolvência não constitui uma condição para a Desconsideração da Personalidade Jurídica, de acordo com a jurisprudência consolidada do eminente Superior Tribunal de Justiça, como pode ser observado na ementa a seguir:
“Processual civil. Recurso especial. Ação de cobrança. Cumprimento de Sentença. Desconsideração da personalidade jurídica. Art. 50 do CC/02. Teoria maior da desconsideração. Inaplicabilidade no caso. Abuso de personalidade jurídica. (...) 1. Conforme entendimento reiterado pelas Turmas que compõem a Segunda Seção deste STJ, acerca dos pressupostos para a desconsideração de pessoa jurídica, a partir da interpretação do art. 50 do CC/02, deve ser adotada a Teoria Maior da Desconsideração. Assim, exige-se a demonstração de desvio de finalidade, demonstração de confusão patrimonial, ou a configuração do abuso de personalidade jurídica. 2. A mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações ou mesmo a alteração de endereço, não constitui motivo suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica (...)” [STJ, REsp 1.635.630/MG, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe 01.12.2016].”
E ainda o Superior Tribunal de Justiça detém jurisprudência sobre o tema, e dispôs, assim, em REsp:
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. EXECUÇÃO CONTRA EMPRESA PERTENCENTE A CONGLOMERADO, CUJO SÓCIO MAJORITÁRIO OU ADMINISTRADOR ALIENOU A QUASE TOTALIDADE DAS COTAS SOCIAIS DA PRINCIPAL EMPRESA DO GRUPO PARA SUA ESPOSA. FRAUDE À EXECUÇÃO. ABUSO DA PERSONALIDADE. CONFUSÃO PATRIMONIAL. ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE DA JUSTIÇA. TENTATIVA DE FRUSTRAR A EXECUÇÃO. RISCO DE INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR. NECESSIDADE DE PERSEGUIÇÃO DE NOVAS GARANTIAS. 1. Controvérsia em torno da legalidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica em relação à empresa recorrente no curso de execução movida contra uma das empresas integrantes do mesmo grupo econômico, mas sem patrimônio para garantia do juízo, em face da transferência pelo sócio majoritário da quase totalidade de suas cotas sociais para sua esposa, ficando somente com a participação de 0,59% na empresa recorrente. 2. A alienação maliciosa para a esposa da quase totalidade de sua participação socitária pelo sócio-controlador, co-executado na qualidade de avalista, de empresa-jóia de conglomerado de empresas, integrado pela empresa co-executada, sem patrimônio, em fraude à execução, caracteriza abuso de personalidade jurídica. 3. Legalidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica, autorizada pelo art. 50 do Código Civil, que abrange, conforme a jurisprudência desta Corte, as hipóteses de ocultação ou mescla de bens no patrimônio de seus sócios ou administradores. 4. A teoria da "disregard doctrine" surgiu como mecanismo para coibir o uso abusivo da autonomia da pessoa jurídica para a prática de atos ilícitos em detrimento dos direitos daqueles que com ela se relacionam. 5. A comprovação de que a personalidade jurídica da empresa está servindo como cobertura para abuso de direito ou fraude nos negócios, deve ser severamente reprimida. 6. Utilização, no caso, de uma das empresas, a mais importante, do conglomerado de empresas pertencentes ao devedor, integrado pela empresa co-devedora sem patrimônio, para ocultar bens, prejudicando os credores. 7. Caracterização do abuso de personalidade jurídica, autorizando a medida excepcional. Precedentes do STJ. 8. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. (REsp 1721239/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 06/12/2018)”.
Com base no que foi apresentado acima, foi possível identificar que o executado transferiu seus ativos pessoais para o patrimônio da empresa sobre a qual ele tem controle absoluto, sendo o proprietário e titular dela.
Ou ainda, do mesmo Tribunal: STJ, AgInt no REsp 1.337.956/SP, rel. Min Raul Araújo, 4ª Turma, DJe 07.02.2017; STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 960.926/SP, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, DJe 02.02.2017.
Em reforço jurisprudencial, filia-se a esta tese, decisão da mais alta Corte Bandeirante, assim confeccionada:
“Incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Procedência. Grupo econômico. Inclusão da empresa no polo passivo da execução. Agravo de instrumento. Inteligência do artigo 50 do Código Civil. Admite-se a desconsideração da personalidade jurídica da empresa devedora para se alcançar o patrimônio de outras pertencentes ao mesmo grupo econômico. Precedente STJ. Empresas que possuem sócio comum e se apresentam como grupo econômico em seu sítio eletrônico. Perito judicial que indicou a existência de grupo econômico entre as empresas. Formação de grupo econômico configurada. Abuso da personalidade jurídica verificado. Cabível a desconsideração da personalidade jurídica. Desnecessidade de comprovar insolvência das demais empresas incluídas no polo passivo da demanda. Decisão mantida. Recurso desprovido.” (TJSP, AgIn. N. 2043011-84.2019.8.26.0000, VOTO 41076, Rel. Des. Virgilio de Oliveira Junior, 21ª Câmara de Direito Privado, j. 12.04.2019)”.
Portanto, no caso em questão, a base para a desconsideração da personalidade jurídica não se limita apenas ao não cumprimento das obrigações financeiras, mas sim ao abuso da personalidade jurídica por meio do evidente desvio de finalidade e da comprovação incontestável da confusão patrimonial. Isso é suficiente para justificar a desconsideração da personalidade jurídica.
Especialmente no contexto da desconsideração da personalidade jurídica nos juizados especiais, essa conclusão encontra respaldo no artigo 1.062 do Código de Processo Civil (CPC), que trata da possibilidade de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito dos juizados especiais, mesmo com a existência de restrições previstas na Lei nº 9.099/95. Nesse sentido, o seguinte julgado serve para destacar esse respaldo legal:
“DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. FORMAÇÃO DE INCIDENTE EM APARTADO. INCOMPATIBILIDADE COM O PROCEDIMENTO ESTABELECIDO PELA LEI 9.099/95. CONVERSÃO DA PENHORA EM ARRESTO. POSSIBILIDADE. Os incidentes processuais praticamente não são admitidos no Sistema dos Juizados, com exceção da arguição de suspeição e impedimento do juiz, que são processadas em autos apartados. Todas as demais matérias de defesa devem ser arguidas nos próprios autos, quando não forem dispensadas na forma do art. 16 da Lei 9.099/95 (dispensa a distribuição e autuação do pedido inicial), tudo em atenção à simplicidade e informalidade do Sistema dos Juizados. O rito desconsideração da personalidade jurídica previsto nos art. 133 a 137 do Código de Processo Civil deve ser flexibilizado para compatibilizar-se com os princípios reitores da Lei 9.099/95, ou seja, sem a suspensão da execução e sem a instauração de um processo em apartado (incidente), garantindo aos sócios ou diretores (terceiros), nos próprios autos da execução, o exercício do direito de defesa. Penhora que deve ser convertida em arresto (art. 139, IV, c/c art. 301, todos do CPC). Procedência parcial do writ. (MS n. 0001504-46.2016.8.19.9000 - RJ, Relator: Juiz Alexandre Chini, 4ª Turma Recursal Cível, Data de Julgamento: 25/04/2017).”
Como é visto, os Juizados Especiais preveem autorizadores para que se possa julgar o Incidente da Personalidade Jurídica, mesmo que nos Juizados há requisitos que recusam causas com grande complexidade.