Maioridade do Estatuto da Criança e do Adolescente
O Estatuto guardião completou 18 anos de vigência. Uma análise fria nos leva a meditar sobre os avanços efetivos que resultaram de sua implantação. Não poderemos atirar pedras, mas também não iremos aplaudir. Ainda há muito o que fazer.
1. UMA EXPERIÊNCIA DURADOURA
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) instituído pela Lei nº 8069, de 13 de julho de 1990, chegou à sua maioridade: 18 anos. Sofreu pouquíssimas alterações o que nos permitiria indagar: teria alcançado a maturidade? Talvez ponderar sobre suas falhas ainda seja a melhor maneira de torná-lo um instrumento útil em benefício da sociedade. Muitos pensadores podem ser contrários a eventuais mudanças, mas erram ao não aceitar rediscutir alguns aspectos do diploma legislativo.
Se compararmos ao Código Penal, que já nos parece uma colcha de retalhos, é fato positivo constatarmos as poucas alterações no Estatuto, o que não pode afastar a hipótese de algum ajuste pontual. Sua implantação, no entanto, do ponto de vista da estruturação, de suporte técnico, deixa muito a desejar. Tal é o objetivo desta nossa singela abordagem, quase comemorativa.
2. CONCEITOS E PROCEDIMENTOSHá oito anos interessante expediente tramitou para ciência, nas unidades da Polícia Civil paulista, sendo interessada a Delegacia Seccional de Votuporanga, consubstanciado no Processo SSP/GS nº 6766/99, no qual sobreveio o Parecer PA-3 nº 86/00, da Procuradoria Administrativa, trazendo a lume a seguinte questão: divergência de entendimento entre as Consultorias Jurídicas da Secretaria da Educação e da Segurança Pública, sobre a legitimidade do fornecimento, pelas escolas da rede estadual às autoridades policiais, de informações referentes a menores acusados da prática de ato infracional. O Parecer foi no sentido de que “as escolas da rede pública podem fornecer aos órgãos da Secretaria da Segurança Pública, quando solicitados, informações a respeito da identidade e endereço das crianças ou adolescentes apontados como autores de ato infracional, ou como testemunhas de sua prática”.
Há exatos oito anos [1] já manifestávamos o entendimento de que as escolas da rede pública e particular DEVEM fornecer as informações. Não vislumbramos amparo legal para a negativa, pois a ação da autoridade policial tem respaldo nos artigos 177 do ECA, e 6º inciso III, do Código de Processo Penal. No entanto, a questão não parece estar superada, pois ainda existem Diretorias recalcitrantes, temerosas, inseguras e mal orientadas, obstaculizando o fornecimento de informações, por puro desconhecimento e em seu próprio prejuízo. Sem dizer que tangenciam perigosamente a desobediência ou prevaricação.
Outra questão de procedimento ocorria na Capital Paulista, até final do ano de 1998, pois não tínhamos conhecimento de Conselho Tutelar funcionando em consonância com a Polícia Judiciária. Em casos de atos infracionais, comparecendo o responsável à unidade policial o adolescente infrator era liberado e em não comparecendo era encaminhado ao S. O. S. - Criança, em qualquer situação, mesmo não sendo grave o ato infracional (para não devolver à rua). No interior do Estado os Conselhos Tutelares funcionavam, mas muitas vezes com um grave equívoco: o adolescente era liberado ao Conselheiro que o levava até sua casa e apresentava ao responsável (que ficava dormindo ou vendo novela, sem precisar ir à Delegacia). O correto seria o responsável legal ser "incomodado", para assumir sua respectiva cota do problema, comparecendo à unidade policial juntamente com o Conselheiro Tutelar, especialmente durante a madrugada. Tais questões ainda não estão inteiramente resolvidas, até em razão das peculiaridades locais de cada região, mas já se verificam avanços: em regra o Conselheiro só comparece quando não se localiza o responsável.
Outra questão é que Conselheiros eram acionados à Delegacia até para acompanhar adolescentes vítimas de atropelamento, quando a obrigação seria do responsável legal, inclusive para exercitar eventual representação quando condição de procedibilidade penal. O Conselheiro não pode se substituir ao responsável legal. Nestes casos podemos dizer que o procedimento foi corrigido: os Conselhos e as unidades policiais já delimitaram as atribuições a serem exercidas.
3. AVALIAÇÃO CORRETA E QUESTÕES PENDENTESEm 1998, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo publicou um Manual intitulado "A Criança e sua Convenção no Brasil - Pequeno Manual", de autoria de Edson Sêda [2], que nos ofereceu uma avaliação isenta e correta sobre certos assuntos, senão vejamos:
"Essa apreensão, ou prisão, é um ato retributivo desagradável, mas necessário à segurança pública [...] o juiz aplica uma medida a ser cumprida por um programa sócio-educativo inscrito e controlado pelo Conselho Municipal dos Direitos, em defesa do bem comum [...] o juiz não controla o programa. Controla a execução (pelo programa) da sentença que proferiu [..] Há graves desvios [...] Estados, como o de São Paulo, ainda mantém no nome e na prática, o antigo órgão centralizador para a antiga política de menores (FEBEM), os juízes continuam a controlar os programas e os Conselhos Municipais ficam ausentes dessa importante matéria." (p. 39).
Ocorre que muitas vezes os juízes assumem tal função não porque queiram, mas pela imposição social ocasionada pela ausência ou inoperância de quem deveria realizá-la. Hoje já não existe mais a FEBEM, substituída em suas funções por uma nova instituição: A FUNDAÇÃO CASA, para adolescentes infratores (e a Casa Abrigo, para crianças).
Em síntese, o juiz deveria decidir e não executar, mas na prática acabava executando. O autor informava, a título ilustrativo, que a medida de internação era de até três anos no Brasil, cinco na Guatemala e quinze na Costa Rica, e concluía: "Sem apoio de programas em regime aberto, a internação em geral inicia ou devolve os adolescentes aos bandos, às quadrilhas e ao mundo criminal" (ob. cit. p. 40). A propósito, tal discussão ainda é fervilhante no Brasil, pois muitos postulam o aumento do período de internação, com o que concordamos, ou outras medidas, com as quais discordamos, até porque desprovidas de conexão lógica com o sistema jurídico adotado [3].
Sobre o instituto da remissão no âmbito do Estatuto o autor fazia as seguintes colocações: "A promotoria, o adolescente e responsáveis (e também em certos casos a vítima), firmam compromisso para que o acusado não volte a delinqüir. A remissão só se aplica para infrações levíssimas e de pouco dano. Remissões, em muitas comarcas, vêm sendo aplicadas de forma reiterada e sistemática. Violam assim o direito ao devido processo legal para apurar a culpa do acusado e contribuem para agravar o fenômeno da reincidência criminal" (p. 41). Análises como estas, não oriundas de organismos policiais, certamente adquirem relevância e continuam propiciando ampla reflexão.
É indubitável que o Conselho Tutelar detém papel fundamental a ser exercido em face das prerrogativas que o Estatuto lhe conferiu. É o caso expresso das atribuições previstas nos artigos 136, incisos III a XI, e 137. Por tais razões o Conselho Tutelar pode ser definido como o principal aliado das autoridades no trato das questões da infância e Juventude.
4. INSTRUMENTOS LEGAIS DISPONÍVEISMuitos adolescentes infratores continuam agindo e reincidindo sob o manto protecionista da indiferença ou conivência de genitores irresponsáveis. Para esses casos será recomendável que as autoridades policiais façam "representações", sem preocupação com eventuais indeferimentos. Representar, por exemplo, pela aplicação e enquadramento dos responsáveis (pai, mãe, ou outro responsável) nos termos da infração administrativa descrita no art. 249 do ECA, assim vazado:
"art. 249 - Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao pátrio poder ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar: Pena - multa de [...]."
Como corolário, a autoridade poderá instaurar procedimentos para apurar os crimes de abandono intelectual (termo circunstanciado) ou material (inquérito policial), quando cabíveis. Será sempre recomendável consignar no boletim de ocorrência qual a escola e a série respectiva onde estaria matriculado o adolescente, ou se acaso não freqüenta escola. A evasão escolar pode ser indício de abandono intelectual pelos genitores ou responsáveis.
Quanto aos adolescentes infratores contumazes, ao invés de simples encaminhamentos por ofício ao Juizado Especial, os expedientes a eles relativos podem ser RELATADOS, com fulcro no artigo 177 do ECA, noticiando a gravidade dos fatos ou nocividade do adolescente para a sociedade, e, neste momento, PROPOR ao representante do Ministério Público a representação pela instauração de procedimento para aplicação de medida sócio-educativa (art. 180, III, e 182), especialmente quando a autoridade policial sugerir a internação, procurando demonstrar que será um lenitivo de paz para determinada comunidade, em face de determinado(s) adolescente(s), em determinado momento.
Será intuitivo que a representação, especialmente quando objetivar demonstrar a necessidade da internação, deverá cingir-se aos casos de reiterada reincidência, mesmo que os atos não se revistam de violência ou grave ameaça, mas desde que perturbem a estabilidade das relações sociais em face da repercussão social que possa desacreditar as instituições. Seria o caso do adolescente já reincidente que, contumaz, pratica vários furtos qualificados por arrombamento e escalada, em uma única noite e, entregue à genitora, espera a mesma dormir e sai novamente à rua para novos delitos, sem nenhum constrangimento, sendo mais uma vez surpreendido destelhando um estabelecimento comercial. Também é o caso de adolescentes que destroem escolas públicas e desacatam reiteradamente funcionários, até com agressões físicas. A situação, no caso das escolas públicas, é gravíssima; 18 anos de indisciplina e depredações (ameaças, agressões físicas e verbais, pedradas, facadas, ateiam fogo em cortinas, soltam bombas capazes de danificar o forro, etc.) e muitos boletins noticiando ocorrências inadmissíveis.
5. CONCLUSÃOInfelizmente ainda não existem Entidades de Atendimento funcionando em quantidade e qualidade, conforme previsto no parágrafo primeiro do art. 175 do ECA. Mesmo em localidades bem desenvolvidas o que se vê é a absurda situação de adolescentes serem custodiados cautelarmente, por várias horas ou dias, em celas insalubres de Delegacias de Polícia ou Cadeias Públicas, em contato, no mínimo verbal, com presos adultos (inclusive de facções criminosas), enquanto aguardam decantada vaga na FUNDAÇÃO CASA (Entidade de Atendimento).
Continuamos aguardando uma melhor estruturação de organismos como os Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente e os Conselhos Tutelares, bem como uma nova visão e interpretação mais feliz do ECA por autoridades, instituições e sociedade. Resta à Polícia Judiciária continuar cumprindo seu papel de guardiã das leis, adotando postura firme (conforme propusemos no item IV, retro), utilizando as normas legais existentes para o benefício de todos, inclusive dos adolescentes infratores.
O Estatuto está completando dezenove anos. Depois 20, 30 anos. E aí?
Notas[1] TONINI, Wagner Adilson. Instrumentalizando o Estatuto. Boletim ADPESP n.º 63, São Paulo: ADPESP, dez. 2000, p. 39-41.
[2] SEDA, Edson. “A Criança e sua Convenção no Brasil – Pequeno Manual”. Conselho Regional de Psicologia, 1998.[3] Projeto de Lei n.º 938/07: possibilitaria ao juiz, ao fixar a pena-base do sentenciado adulto, observar se já cumpriu medida sócio-educativa de internação quando menor de 18 anos, levando em conta como agravante.