Redução da maioridade penal: o argumento falacioso e equivocado

Redução da maioridade penal: o argumento falacioso e equivocado

Muitos vêem na alternativa da redução da maioridade penal uma formula para diminuir o crescente nível de violência em nosso país, o que é um argumento falacioso e equivocado.

Muitos vêem na alternativa da redução da maioridade penal uma formula para diminuir o crescente nível de violência em nosso país, o que é um argumento falacioso e equivocado. Com tal propósito este trabalho procura apresentar uma posição, não dominante, pois não esta em consonância com o discurso da maioria da mídia sobre a problemática, porém apresenta uma visão não só legalista, mas uma análise histórica e sociológica do fenômeno da marginalidade juvenil.

Ao longo da história o homem tem lutado pelo poder, quer para conquistá-lo, quer para preservá-lo, e muitas vezes de forma egoísta, criando com isto uma verdadeira batalha social, e propiciando, nesta filosofia de vida por ele adotada uma desigualdade social, que faz parte constante da conjuntura social vigente.

Neste contexto de extrema exclusão social, percebe-se o fenômeno da marginalização, que é o contingente populacional não integrado, não participante do sistema produtivo. Assim, o calibrador do dinamismo da economia seria o mercado de trabalho.

A experiência histórica, não só no caso brasileiro, tem mostrado que quando uma economia se industrializa, a oferta de mão-de-obra não qualificada é geralmente muito abundante. Isto se deve ao fato de que, por um lado, o deslocamento de amplas massas humanas, que são expelidas do meio rural e vêm à cidade a procura de melhores condições de vida e, por outro lado, à aceleração do crescimento demográfico que resulta da queda dos índices de mortalidade, fenômeno que se observa em toda a sociedade em processo de industrialização e modernidade.

Então a marginalidade seria uma prática moldada nas e pelas condições sociais e históricas em que os homens vivem.

Neste sentido o menor marginalizado não surge por acaso. Ele é fruto de um estado de injustiça social crônico que gera e agrava o pauperismo em que sobrevive a maior parte da população. Na medida em que a desigualdade econômica e a decadência moral foram crescendo nestes últimos anos, aumentou cada vez mais o número de menores empobrecidos.

Onde está a explicação para tudo isso? Em geral se diz, e com razão, que a explicação reside nas rápidas transformações que se dão por causa da industrialização e da urbanização do país. Tal processo provoca um impacto sobre a economia, organização social e a cultura do mundo rural. Entre outras coisas surge o êxodo rural com conseqüente inchaço das cidades brasileiras, para as quais acorre um número imenso de famílias em busca de melhores condições de vida e de trabalho. A capacidade de atendimento social da infra-estrutura urbana é demasiado pequena para receber esta demanda. Não há como dar trabalho, moradia, escola, alimento, assistência médico-hospitalar para tanta gente. O resultado só pode ser a marginalização das famílias, dos cidadãos, das crianças. Estas em especial, são vítimas de inúmeras carências e, expostas aos perigos da cidade, vítimas também do abandono total ou parcial, da malandragem e da delinqüência.

A causa real deste fenômeno doloroso vem do próprio modelo econômico. É sobre ele que se assenta o inegável crescimento de nossa produção industrial e agrícola. Só que este modelo gera para uns poucos uma acumulação crescente de riqueza e a renda fica desigualmente distribuída. Somando-se ao fato de que os grandes recursos e investimentos que entram no país (boa parte da dívida externa e os capitais nacionais) são aplicados dentro dos objetivos de expansão, produção, consumo e fabricação de armas. Ignoram-se os despossuídos, os 50% da população que não têm, nem nunca tiveram, participação nos benefícios e no produto do trabalho que sacrificadamente realizam.

Assim o egoísmo pessoal se estrutura em nível social e ocasiona uma tão grande desorganização nas relações entre as pessoas e as classes que umas passam a dominar sobre as outras, a oprimi-las e escravizá-las. E este egoísmo se torna ainda mais cruel quando rodeado pelos ídolos do poder, do dinheiro, do prazer, e do saber, opressores. É neste nível que devemos buscar soluções, iniciativas adequadas à nossa realidade, se quisermos chegar à raiz verdadeira e última do problema social posto, no qual a criança empobrecida é uma das vítimas mais atingidas.

O governo, pelo outro lado, inoperante, com um sistema educacional fragilizado, onde mais exclui do que insere, com professores desmotivados, em face das condições de trabalho e por políticas de remuneração inexpressivas.

Neste contexto, a saída do menor de sua casa é inevitável, pois está tentando fugir das condições precárias da vida familiar e vê na rua sua única saída, inserindo-se no mundo do crime. Uma vez na rua, depara-se com uma estrutura de desigualdade gigantesca, e tenta a todo custo igualar-se às demais crianças com poder econômico superior ao seu, por meio de práticas de diferentes atos infracionais.

A rua para o menor marginalizado passa a ser palco de sua vida, onde encontra outros menores, que não o discriminam, e com estes passa a ter relacionamentos de partilha de miséria, das angústias, sonhos, formando o que chama grupos ou bandos de menores de rua.

Neste sentido os menores excluídos aumentam, e proporcionalmente o Estado não acha alternativa, dentro do atual modelo, para controlar os elevados números de atos infracionais cometidos por estes.

Por outro lado, a pressão da sociedade que excluiu, e agora além de excluir, quer punir, quer garantias para a tranqüilidade social.

Logo, a sociedade com o apoio da mídia tem trazido para a discussão a questão da redução da maioridade penal, pois segundo alguns desavisados, a imputabilidade penal deve ser reduzida para dezesseis anos, e chegam ao cúmulo de afirmar que a Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente, é um incentivo à criminalidade, pois não pune o menor infrator.

Primeiramente, há que se ressaltar que o número de atos infracionais cometidos por menores tem aumentado, como os índices de violência, em igual proporção, tem aumentado, mas jogar para o Direito Penal a responsabilidade para a solução de grave problema social, que é crônico e estrutural, é pura ingenuidade.

Outro aspecto falacioso é afirmar que os menores não são punidos por seus atos, porque a imputação existe, há apenas uma diferença do ponto de vista da conseqüência jurídica, onde ao maior aplica-se pena, e quando menor, aplica-se medida sócio-educativa. Então temos a pena como conseqüência para quem pratica crime, e medidas sócio-educativas para quem comete ato infracional. Portanto, o que o Estatuto da Criança e do Adolescente quer é proteger a criança excluída socialmente como já foi visto, da realidade do sistema prisional brasileiro, onde se constata a sua ineficiência para a clientela que possui, ainda mais agora, para atender os adolescentes, se tal proposta vier a ser implementada.

Percebe-se pelas razões aqui tratadas, sob os aspectos sociológicos, o menor é vitima de uma sociedade de consumo desumana e muitas vezes cruel. Há, portanto, a necessidade de ser tratado e amparado por políticas sociais fortes, e não ser apenas punido do ponto de vista penal.

Cabe, neste sentido, ao Estado mantenedor da ordem pública, representante dos interesses coletivos, responsável pela elaboração e aplicação das leis, chamar para si a responsabilidade pelo crescimento do numero de menores infratores, e certamente perceberá a flagrante omissão e a total falta de políticas que propiciem condições dignas às famílias de menor poder aquisitivo.

Portanto, há necessidade do Estado fazer a sua parte, contribuindo com a erradicação da pobreza, instituindo programas sociais sérios que garantam moradia, saúde, educação e trabalho, ou seja, políticas de inclusão séria, eficientes, e não políticas compensatória, obsoletas.

Então este discurso da redução da maioridade penal, manipulado muitas vezes por interesses políticos demagógicos que vêm ao encontro a uma sociedade assustada, é sem sobra de dúvida um retrocesso de uma legislação moderna e emancipadora como é o ECA. Ao mesmo tempo ferem de morte os direitos humanos daqueles que não têm e nunca tiveram a oportunidade de inclusão social.

É alarmante como as manifestações frente aos números de violência, em favor da redução da maioridade penal, até de setores que lutaram pela implantação do ECA, manifestações emocionalmente muitas vezes comprometidas, que acham que a única reação social, frente a estes números é a redução da maioridade penal. Não podemos permitir que este discurso, como já aconteceu com outros temas jurídicos, como, por exemplo, a lei dos crimes hediondos, assuma uma discussão eminentemente modista, sob pena de promovermos mudanças que não venham de encontro aos interesses da justiça social.

Já vimos este filme, políticas imediatistas, resoluções tomadas no calor dos acontecimentos, que, pela ingenuidade da população e pelo sensacionalismo da mídia, geralmente, tendem a serem políticas desastrosas e equivocadas, do ponto de vista jurídico.

Outro aspecto que há de ser levando em consideração, são os dados estatísticos que apontam para impossibilidade da recepção de mais presos no atual sistema prisional, senão vejamos: o sistema prisional nacional tem 331.457 presos, para um total de vagas de 180.950, ou seja, já possui uma superlotação. Existe déficit de aproximadamente 70.852 vagas. (Estatística Criminal de 2004)

No Estado de Santa Catarina, se possui dados estatísticos bastante complexos: do total de 494.271 boletins de ocorrência, foram oferecidas 41.139 denúncias e, destas, 7.266 foram condenados, existindo 7.558 presos no Estado, o qual possui capacidade carcerária de 5.871 vagas. Isso, com 7.500 mandados de prisão para serem cumpridos. Existe déficit de 9.187 vagas em Santa Catarina (Estatística Criminal de 2004).

Não precisa ser um especialista em política criminal para perceber que o sistema é ineficiente para punir, além do que não se entrará no mérito do atendimento dado aos presos fazendo-se análise tão-só das estatísticas. Assim, implementar a redução da maioridade penal é aumentar em muito o número de apenados e, portanto, será estar diante de um monstro cuja capacidade de resposta é ineficiente e ineficaz.

Ademais, esta discussão sobre a redução da maioridade penal não é algo novo, esteve na pauta do império e no governo de Jânio Quadros, onde existia um anteprojeto, cujo enfoque era tentar punir os jovens que praticavam a “subversão”: fumavam maconha.

Repita-se que no Brasil temos uma legislação de excelente qualidade, reconhecida por diversos paises como uma das mais evoluídas, que é o ECA, o qual possui bons comandos legais. Porém, o que é falha é a seriedade na aplicação do mesmo. O ECA, além de medidas sancionadoras, possui as medidas de caráter protetivo que jamais foram implementadas pelo Estado Brasileiro. Neste caso, deveria a população exigir do Estado primar pela lei existente, através da correta aplicação, ao invés de buscar outras alternativas instáveis e inseguras.

Defender esta postura de redução é andar na contramão da historia, pois se sabe da falência da pena de prisão. As sociedades mais evoluídas estão defendendo no sentido de minimizar a intervenção estatal, impondo cada vez mais a diminuição de penas restritivas de liberdade, pois os sistemas prisionais existentes não cumprem seu papel, porquanto se tornaram centros de depósitos humanos antiquados, que não tem conseguido ressocializar ninguém, muito pelo contrario, tem aumentado mais a revolta desta população encarcerada.

É preciso um amplo debate nacional, sem paixões, um debate amadurecido, analisando a problemática sobre vários aspectos, não só o aspecto legalista, mas os fatores de ordem estrutural. Aplicar o ECA na sua plenitude, e não só seus instrumentos rígidos, ou seja, as medidas punitivas, mas sim seu caráter de ressocialização, apesar de seus instrumentos possuir na sua maioria o caráter punitivo de suas ações. Precisa-se também, transformar os centros de atendimentos, hoje reduzidos a casas de tortura, e não centros de recuperação de jovens, enfrentando o desrespeito ao estatuto como algo presente.

É preciso, também, ter a compreensão de que o Brasil é um país jovem, em que quase a metade da população está na faixa etária de 0 a 24 anos, e, portanto, há de merecer deste e de futuros governantes toda atenção com relação a políticas sociais sólidas, que venham ao encontro da solução para esta catástrofe social imposta, que é o fenômeno da marginalidade social juvenil.

Concluo, afirmando ser equivocada a idéia de redução da maioridade penal, que coloca o adolescente que comete ato infracional, como sendo o único responsável pela crescente onda de criminalidade, e que, enquanto ficamos nesta discussão estéril, famílias inteiras estão sem um teto, crianças cada vez mais dormem ao relento, e governos irresponsáveis continuam a nos governar.

A vida social requer mais do que isto colocado, ou de qualquer lei punitiva: exige solidariedade, fraternidade e igualdade de oportunidade para todos. E termos a consciência de que uma opção equivocada pode representar o recrudescimento da delinqüência, e a implantação de um estado de barbárie, onde a violência passe a ser algo rotineiro, que vai representar um retrocesso, jogando um grande número de adolescentes num sistema carcerário falido.

Diante de todo o exposto, resta a clareza de que a violência não se dá por falta de medidas repressoras, mas sim por falta de políticas de inserção, e que possam dar uma perspectiva social mínima à população excluída.


REFERÊNCIAS

BARROS, Wellington Pacheco. A interpretação sociológica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995.

FURTADO, Celso. Teoria e política do desenvolvimento econômico. 5 ª ed. São Paulo: Nacional, 1975.

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Tradução de Moacyr Gadotti e Lílian Lopes Martin. 11ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.

SINGER, Paul. Economia política do trabalho. São Paulo: Hucitec, 1977.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é adolescência. São Paulo: Brasiliense, 1985.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Tradução de Ligia M. Ponde - Vassal. Petrópolis: Vozes, 1977.

GADOTTI, Moacir. A educação contra a educação. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

Sobre o(a) autor(a)
Amarildo Alcino de Miranda
Advogado Criminalista e Sociólogo. Especialista em Direito Processual Penal.
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