Desconsideração da personalidade jurídica no direito falimentar (2025)
O artigo faz considerações a respeito do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar, como o estudo de qual teoria é aplicável. É feito também um estudo da aplicabilidade da teoria menor na execução trabalhista do falido, em face da vis atractiva do juízo falimentar
1. Desconsideração da personalidade jurídica no direito falimentar
A existência e aptidão de uma pessoa jurídica para exercer atividade econômica, contraindo direitos e obrigações, pressupõe a sua solvabilidade, que na lição de lição de Mamede (2019, p.31), seria “a qualidade patrimonial específica de ter meios para o adimplemento, voluntário ou forçado, das obrigações existentes contra si”.
Importa destacar que tal qualidade patrimonial possui verificação fática dificultosa, indo além da simples definição matemática de diferença positiva entre ativo e passivo.
Com efeito, pode a empresa possuir patrimônio líquido negativo em determinada fase de sua atuação, mas com perspectiva de lucro, e honrando pontualmente suas obrigações, sendo, portanto, solvente. Por outro lado, pode haver também a situação de patrimônio líquido positivo, mas de impontualidade injustificada em suas obrigações sociais, o que, em tese, poderia configurar um estado de insolvência da organização empresarial.
Dessa forma, configurada uma das hipóteses aptas a dar lastro ao pedido de falência do devedor, uma vez obtida a chancela estatal da inviabilidade da empresa, por meio da sentença de decretação da falência, seguir-se-á a execução coletiva dos bens do falido, na forma do regramento estabelecido na Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (Lei de Recuperações e Falências).
Inicialmente, é importante destacar não se fará aqui um estudo sobre a responsabilização dos administradores pelos atos praticados na gestão da sociedade, como por exemplo nas hipóteses constantes no o art 1.106[1] do Código Civil ou 135 do Código Tributário Nacional[2], vez que em tais casos a responsabilidade decorre da conduta praticada de forma irregular, e não da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, objeto do presente trabalho.
Tampouco é objeto do presente estudo a responsabilização pessoal dos sócios das espécies societárias que por força de Lei já respondem com seu patrimônio pessoal pelas dívidas da sociedade, como aquelas presentes no art. 986 e 997 do Código Civil, eis que também não se trata de desconsideração da personalidade jurídica, mas de mera responsabilização solidária ou subsidiária, conforme o caso.
Dessa forma, tem-se que o processo de desconsideração da personalidade jurídica aqui estudado será aquele aplicável aos tipos societários que possuem autonomia patrimonial estabelecida em Lei, notadamente a sociedade de responsabilidade limitada, tipo mais comum de sociedade no ordenamento jurídico brasileiro. É a estas que a Lei atribui personalidade jurídica distinta da de seus sócios, sendo, pois, capazes de contrair direitos e obrigações sociais de forma independente, por elas respondendo no limite de seu patrimônio.
No processo falimentar, dada a presumida insolvência do devedor, tem-se que em regra os bens da massa falida serão insuficientes para satisfazer todos os créditos habilitados no concurso de credores.
Nesse contexto, poder-se-ia imaginar que os bens das pessoas físicas dos sócios ou administradores da empresa fossem colacionados ao patrimônio da massa, para se submeterem à execução concorrencial. Com efeito, pode-se pressupor que parte dos bens que compõem o patrimônio dos proprietários da empresa falida possam ser oriundos do tempo em que o empreendimento foi lucrativo, tendo passado para o patrimônio dos sócios por meio de distribuição de lucros ou dividendos, por exemplo.
É inegável que conquanto o risco de falir seja inerente a qualquer empreendimento, aquele que sucumbe ao fardo, declarando falência, atrai sobre si as mais diversas suspeitas, entre elas a de malversação dos recursos empresariais, fraude, etc. Ora, a falência coletiviza um ônus que até então era suportado unicamente pela organização empresarial, o qual passa a ser de seus fornecedores, clientes, empregados, concedentes de crédito, etc.
As relações que até então eram de parceria, com a falência passam a ser conflituosas, havendo uma tendência de os credores quererem infligir ao devedor insolvente todos os rigores da Lei, inclusive postulando a desconsideração da personalidade jurídica, de modo a atingir o patrimônio dos sócios, no interesse de terem seus créditos satisfeitos.
A iminência de uma decretação de falência coloca o devedor honesto em um estado de desespero. Com efeito, além da própria ruína financeira, há ainda o orgulho ferido e o sonho desfeito, vez que um empreendimento empresarial não raramente é o produto de um sonho do empresário, ou daqueles que o legaram o negócio, como os seus ascendentes. Se tratando de pequenos negócios, em pequenas cidades, há ainda o escárnio ainda que silencioso dos outrora concorrentes.
Passagem icônica sobre o tema na literatura nacional pode ser encontrada no romance regionalista “Banguê” (1934) do escritor paraibano José Lins do Rego. No livro, o jovem bacharel em direito Carlos Melo herda do avô o engenho Santa Rosa, onde passara a infância, o qual outrora fora muito lucrativo, durante o ciclo de ouro da cana-de-açúcar.
Carlos Melo tenta a todo custo manter o empreendimento funcionando, mas a falta de tino para os negócios, bem como as condições econômicas como a baixa cotação do açúcar no mercado torna a sobrevivência do engenho impossível. Assim, acaba por contrair empréstimos os quais não consegue honrar no prazo, renovando-os com juros ainda maiores, etc. A parte final do romance é um relato angustiante de suas reminiscências, antevendo sua falência iminente:
Por que não fugia? Contava com uns cobres, uns três contos. Vendera o mel de furo dos meus tanques a um sujeito de Itabaiana. Dava para custear a minha escapula. Mas por que fugir? Esperasse até o fim. Com poucos meses, tudo estaria resolvido. O Santa Rosa valia muito mais do que eu estava devendo. Não era possível que a usina só me quisesse dar por ele os 85 contos de todos os meus débitos. Seria o cúmulo. Mas era possível. As negras da cozinha contavam os dias. Generosa, cega, me pedia passagem para o Recife. Morava por lá uma filha. A negra velha me falou com voz de choro. Pedira a Deus para morrer no Santa Rosa. Não lhe fora servida esta vontade. João Miguel me procurou para saber se precisava dele. Recebera chamado para outro engenho. Tudo se ia de vez. A casa-grande, cada vez mais, perdia as vozes de antigamente, silenciosa a todas as horas do dia. Quase que não possuía mais gado. Vendera aos poucos, para a matança. Velhos bois de carro que ninguém comprava ficaram pelo cercado mostrando os ossos e as gafeiras. Nem aquele manso rumor de chocalhos se escutava mais. O cata-vento arrebentado, parara. Só silêncio, só quietude naqueles restos de colmeia abandonada.(Banguê, 1934).
Nesse contexto, não é razoável se pressupor que o falido chegou em tal estado por vontade própria, já que conforme os princípios gerais de direito a má-fé não deve ser presumida. Dessa forma, é necessário um claro delineamento das hipóteses autorizadoras do do afastamento da autonomia patrimonial, de modo a não gravar injustamente o devedor falido com outro ônus além do já suportado com a quebra do estabelecimento empresarial.
Sobre a regra da desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar, dispõe a Lei de Recuperações e falências, in verbis:
Art. 82. A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil.
Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica.
Parágrafo único. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
Pela análise do dispositivo legal, depreende-se que está de vez afastada a desconsideração da personalidade jurídica, com o consequente afastamento da autonomia patrimonial, pela mera decretação da falência. Tem-se pois, que o afastamento da autonomia patrimonial seguirá a regra geral do instituto, nos termos do Código Civil, aplicável pois a chamada teoria maior da desconsideração. Assim, tem-se que no processo falimentar não está autorizada a relativização da autonomia patrimonial das por motivos como a inexistência de recursos suficientes para saldar todas as dívidas da massa falida, tal como é possível no Direito do Consumidor ou na seara do Direito Trabalhista, conforme já estudado anteriormente.
Dessa forma, somente estará autorizada a desconsideração da personalidade jurídica se presente uma das situações descritas no art. 50 do Código Civil, cuja redação foi alterada pela chamada Lei de Liberdade Econômica, Assim, pode-se afirmar que tal dispositivo legal constitui a regra geral do afastamento da autonomia patrimonial no processo falimentar. Dispõe o referido dispositivo legal, in litteris:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
Quanto ao rito aplicável ao procedimento de desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar, tem-se que será aquele definido no CPC, notadamente nos artigos 133 a 137. Assim, deve ser instaurado mediante incidente, sendo competente para conhecer do pedido o próprio juízo onde tramita a ação principal, aplicando-se a regra geral da universalidade do juízo falimentar. Decidiu nesse sentido o STJ no o julgamento do Agravo de Instrumento 575.958- 4/5-00:
"Tratando-se de sócios de responsabilidade limitada, compete ao juízo da falência aferir a responsabilidade pessoal dos mesmos (Lei 11.101/2005, art. 82), arrecadando os bens particulares, se for o caso. O que não pode é prosseguir a execução individualmente por um dos credores sujeitos à quebra, mesmo tendo sido desconsiderada a personalidade jurídica das devedoras"
Quantos aos legitimados ativos do pedido, dispõe a Lei de Recuperações e Falências serem o Ministério Público, eis que atua como custos legis, bem como as partes interessadas. Entre os que podem ser considerados partes interessadas para fins do pedido em questão, ensina Mamede (2018, p. 309) que poderão ser qualquer credor, bem como o administrador judicial, postulando no interesse da massa falida.
Ainda de acordo com o autor, também incluem-se no rol de legitimados aqueles que eram então credores de obrigação a título gratuito, eis que inegavelmente prejudicados com a decretação da falência, uma vez que terão suas obrigações tornadas inexigíveis, por força do art. 5º, inciso I, da referida Lei[3].
No que diz respeito à legitimidade passiva, considera-se possível o requerimento de desconsideração da personalidade jurídica em desfavor dos sócios aos quais forem atribuídos a prática do ato ilícito, como a utilização ilícita ou fraudulenta da personalidade jurídica da sociedade falida, com o intuito, por exemplo, de lesar credores. Assim, está por regra geral afastada a desconsideração genérica. Nesse sentido, a lição de Mamede (2018, p. 302):
A legitimidade passiva será daquele(s) sócio(s) e/ou administrador(es) a quem se atribui a prática do ato ilícito ou a utilização ilícita ou fraudatória da personalidade jurídica da sociedade falida. Em ambos os casos, haja responsabilização ou haja desconsideração, é preciso determinar aquele ou aqueles sobre os quais recairão os efeitos da desconsideração, além de quais obrigações serão alcançadas pela medida e quais os fundamentos de fato e de direito que justificarão a medida.
Quanto aos requisitos formais do pedido de falência, tem-se que este deve descrever pormenorizadamente os atos que em tese dariam lastro ao pedido de afastamento da autonomia patrimonial, que é a regra no processo falimentar. Assim, devem ser individualizadas as condutas da pessoa física do qual se deseja atingir o patrimônio pessoal, de forma a permitir ao julgador a análise correta do requerimento.
Dessa forma, estariam em desacordo com o ordenamento jurídico os pedidos genéricos, exceto se presentes as hipóteses excepcionais de sua aceitação. Nas palavras de Mamede:
No alusivo à desconsideração da personalidade jurídica, apenas em situações especialíssimas aceita-se que o pedido tenha efeito genérico, implicando responsabilizar sócios, administradores ou terceiros pela integralidade das obrigações da falida. Para tanto, faz-se necessário demonstrar que o abuso foi ato constante, alcançando plenamente todas as obrigações sociais. Mamede(2018, p. 309).
Com efeito, é possível que os ilícitos praticados pelos sócios durante o tempo de vida da organização empresarial não tenham se limitado a casos pontuais, os quais em tese poderiam servir como um parâmetro quantitativo para a aferição quantitativa dos limites da responsabilidade de quem praticou o ato em desacordo com o direito.
Uma vez que a prática tenha se prolongado no tempo, seria tarefa por demais dificultosa a definição do quantum do patrimônio da pessoa jurídica foi onerado pelos atos, inviabilizado a correta quantificação do dano, o que em tese autorizaria a decretação genérica de desconsideração da personalidade jurídica, responsabilizando quem lhe deu causa por todas as obrigações sociais da falida.
2. Efeitos do pedido de desconsideração da personalidade jurídica na tramitação do processo falimentar
Conforme citado alhures, ao processamento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar aplicam-se as regras gerais previstas no Código de Processo Civil. Dessa forma, tem-se que o procedimento será regido pelo CPC, exceto nos pontos em que a própria Lei de Falências afastar a sua aplicação.
Um dos pontos em que o procedimento falimentar se diferencia da regra geral é quanto à suspensão do processo pela instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Na sistemática prevista no CPC, a mera instauração do incidente possui o condão de suspender o processo, exceto quanto tratar-se de desconsideração inversa, hipótese no qual o próprio código excetua a suspensão do feito.
No processo falimentar, contudo, a instauração do incidente não suspende o processo, o qual seguirá sua regular tramitação, exceto se houver decisão do juiz pela suspensão, com lastro no poder geral de cautela. Tal disposição é expressa na parte final do parágrafo único do art. 82-A da Lei de Recuperações e Falências, a qual afasta a suspensão automática aplicável ao procedimento conforme o regramento geral do CPC.
Tal disposição guarda coerência lógica com os princípios aplicáveis ao processo falimentar, notadamente aquele disposto no inciso II do art. 75 da Lei de Recuperações e Falências, o qual dispõe que o processo visa permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia. Com efeito, cada credor vai sempre procurar lançar mão de todos os meios legalmente admitidos na busca de ter seu crédito satisfeito, sendo de se esperar que haja diversos pedidos de desconsideração da personalidade jurídica ao longo do processo, frente à insuficiência de recursos da massa falida que é característica da execução coletiva.
Caso esses pedidos pudessem suspender o processo pela simples instauração do incidente, tal como no processo comum, haveria grande prejuízo à celeridade, que deve ser buscada no processo falimentar. É cediço que a eficiência processual deve ser buscada em todos os feitos, eis que o princípio da duração razoável do processo possui envergadura constitucional, sendo exigível do estado pelos litigantes, sendo alçado à categoria de direito fundamental pela Constituição Federal de 1988[4] (CF/88).
No processo falimentar essa necessidade de celeridade é ainda mais evidente, eis que o ativo da massa falida, que já é insuficiente para saldar todas suas obrigações, tende a se deteriorar ainda mais com o decurso do tempo. Assim, mesmo que haja a possibilidade de alienação antecipada dos ativos da massa falida, qualquer suspensão do processo é prejudicial ao interesse dos credores.
Por fim, é importante destacar que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar terá também tramitação prioritária, por força do art. 79 da LRF “os processos de falência e os seus incidentes preferem a todos os outros na ordem dos feitos, em qualquer instância”. Segue-se, pois, a sistemática geral de celeridade do processo falimentar, com os meios que garantam sua efetiva aplicação.
3. Cabimento de medida liminar no requerimento de desconsideração da personalidade jurídica
Outro ponto relevante na sistemática processual do pedido de desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar é a possibilidade de decretação liminar da indisponibilidade dos bens daquele de quem se busca a responsabilização pessoal pelas obrigações da massa falida.
Trata-se pois de tutela provisória de caráter cautelar, que busca, em síntese, resguardar o objeto da demanda até a decisão de mérito. Importa destacar que tal como qualquer tutela provisória de natureza cautelar, deve o requerente demonstrar em sua petição estarem presentes os requisitos autorizadores da concessão desse tipo de tutela, quais sejam, o perigo na demora (periculum in mora) e plausibilidade e verossimilhança do direito alegado (fumus boni iuris). Presente os requisitos estará pois o juiz a atender o pedido, ou mesmo determinar a medida de ofício, eis que expressamente autorizado pela Lei.
Tal dispositivo revela-se de grande importância para o processo em questão, pela própria natureza dos direitos demandados. Com efeito, conquanto não se possa presumir culpa daquele de quem se busca atingir o patrimônio pessoal, é forçoso reconhecer que quem pratica atos de abuso da personalidade jurídica, ao ver que poderá ser responsabilizado pelos atos, pode muito bem tentar realizar nova fraude, ocultando os bens do seu patrimônio com a intenção de evitar perdê-los caso seja reconhecido o abuso.
Não se trata, portanto, de onerar excessivamente o devedor falido, e sim de assegurar a máxima efetividade do processo. Com efeito, dada a assimetria de informações característica dos mercados, é deveras oneroso ao credor do falido provar a fraude de pronto, eis que só tem acesso a uma pequena parte da realidade da empresa, qual seja, aquela apresentada formalmente pelos seus proprietários. Ainda que se trate de grandes corporações, listadas em bolsa e cujos balanços são auditados por empresas de auditoria independente, os credores nunca estarão imunes às fraudes.
Exemplo recente disso foi o caso recente da empresa Americanas S.A, até então uma das maiores varejistas do país. Não obstante todas as regras internacionais de compliance, contabilidade e auditoria que a empresa estava submetida, já que possuía entre seus acionistas fundos de capital de várias partes do mundo, além de ações listadas em bolsa, conseguiu infligir aos seus credores perdas bilionárias, por meio de uma fraude contábil na ordem dos 25 bilhões de reais.
Em razão do porte da empresa não foi decretada sua falência, tendo conseguido submeter-se a um processo de recuperação judicial, sendo que já foi decretada falência de empresas menores por muito menos. Claro está, portanto, que se trata de exemplo do fenômeno conhecido como too big to fail (grandes demais para quebrar), no qual sempre se encontra uma forma de salvar grandes empresas, independente das eventuais condutas fraudulentas que realizam. Santa Cruz (p. 56) critica essa benevolência dos governos e demais agentes econômicos com empresas que cometem fraude:
O capitalismo é um sistema no qual os empresários auferem lucros privados e sofrem prejuízos privados. Os “pacotes de socorro”, pois, desvirtuam a lógica natural do capitalismo, criando um sistema no qual os empresários bem relacionados auferem lucros privados, mas solidarizam suas perdas com a população. Em suma: o princípio da preservação da empresa não pode, jamais, conferir a certos empresários um “direito de não falir”[...].
Pelo exposto, pode se concluir que a medida assecuratória do resultado útil do processo consubstanciada na indisponibilidade cautelar de bens é de extrema importância para o credor, já demais onerado pelo fato de ter de se submeter a concurso de credores por um crédito que possuía a legítima expectativa de ser pago a contento. Assim, uma vez presentes os pressupostos da concessão, deve o juiz concedê-la de ofício ou a requerimento da parte. Em caso de irresignação, poderá o interessado interpor o recurso cabível.
Importante destacar, contudo, que como qualquer outra medida em que a ampla defesa e o contraditório seja mitigado ou postergado, a indisponibilidade liminar de bens deve observar o dever de cautela, de modo a não onerar excessivamente a pessoa cujo patrimônio deseja se atingir. Ademais, deve ser aplicada, no caso, a regra de responsabilização da parte que requerer a tutela pelos danos causados pela sua concessão, nos casos previstos no CPC, in verbis:
Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se:
I - a sentença lhe for desfavorável;
II - obtida liminarmente a tutela em caráter antecedente, não fornecer os meios necessários para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias;
III - ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal;
IV - o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor.
Parágrafo único. A indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível.
4. Desconsideração da personalidade jurídica na execução trabalhista do falido: aplicável a teoria menor, em face da universalidade do juízo falimentar?
Situação curiosa pode ocorrer quando nos deparamos com a situação de um pedido de desconsideração da personalidade jurídica oriundo de uma ação originária cujo procedimento seja menos dificultoso, como o caso das execuções trabalhistas. Conforme já explicado alhures, o afastamento da autonomia patrimonial com a consequente responsabilização dos sócios no processo trabalhista tem como requisito apenas a falta de patrimônio da sociedade empresária para o cumprimento da obrigação.
Ocorre que, com a decretação da falência, tem lugar o fenômeno chamado de universalidade do juízo falimentar, o qual, em síntese, dispõe que serão reunidos no juízo em que se processa a falência todos os processos em que a massa falida seja ré, autora, ou terceiro interveniente, ressalvadas as exceções trazidas pela própria Lei. Uma dessas exceções são as ações sujeitas à Justiça do Trabalho, até o trânsito em julgado da sentença. Uma vez exarado o título executivo judicial, deve o empregado habilitar-se no concurso de credores, para o recebimento do seu crédito com a preferência que a lei lhe atribui.
Em tal situação, seria, pois, possível, que em caso de insuficiência do patrimônio da massa falida para arcar com o valor da condenação, requerer ao juízo trabalhista a desconsideração da personalidade jurídica, atingindo o patrimônio pessoal dos sócios da empresa falida? A doutrina de Mamede (2018, p.295) entende que sim.
Para o autor, a universalidade do juízo falimentar diz respeito apenas às ações em que interessada a massa falida, não estando em tal interesse incluídas as pessoas físicas dos seus sócios, que são os verdadeiros impactados pela desconsideração da autonomia patrimonial.
No mesmo sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça(STJ) no bojo do Conflito de Competência 94.439/MT. Na referida ação judicial, entendeu a Corte que:
“O juízo da execução trabalhista deve observar a competência exclusiva e absoluta do juízo falimentar quando o exequente perseguir patrimônio da massa falida (arrecadado ou a arrecadar). Esse fato não o impede, porém, de autorizar, nas hipóteses legais, constrições sobre bens estranhos à massa como são, de ordinário, os bens dos sócios de responsabilidade limitada. Essa regra vale especialmente quando tais sócios são demandados, em nome próprio, juntamente com a falida, na reclamação trabalhista, e contra eles é direcionada a pretensão do exequente. Nessa situação, a suspensão automática decorrente da decretação da falência não atinge todas as partes reclamadas/executadas. Atinge apenas a falida. A lide trabalhista permanece em curso em relação aos demais reclamados/executados (sócios), já que foram demandados em nome próprio. Se a execução trabalhista promovida contra sociedade falida foi redirecionada para atingir bens dos sócios, não há conflito de competência entre a Justiça especializada e o juízo falimentar – eis que o patrimônio da falida quedou-se livre de constrição. Precedentes. Não cabe conflito de competência quando o sócio de responsabilidade limitada da falida pretende apenas livrar seu patrimônio pessoal de medidas constritivas determinadas pelo juízo trabalhista, ainda que sob o pretexto de preservar a igualdade entre os credores habilitados na falência.”
Importante esclarecer que não se trata de afastamento da norma que dispõe sobre a suspensão dos processos e sua reunião no juízo falimentar que têm lugar com a sentença de decretação da falência, nos termos do inciso II do art. 6º da LRF. Como regra geral, eventuais ações em que se postula a desconsideração da personalidade jurídica já em tramitação devem ser reunidas no juízo falimentar, e as novas devem nele serem protocoladas. Nesse sentido, leciona Ulhôa (2020, p.302):
Assim como a instauração da execução concursal da sociedade empresária importa a suspensão das execuções individuais, para que todos os credores possam ter o tratamento paritário a que têm direito, também não devem prosseguir as execuções movidas contra os sócios dela, quando desconsiderada a personalidade jurídica da falida.
Destaque-se que em favor do não cabimento da aplicação da teoria menor é a doutrina de Ulhôa(2020, p.401), que entende não ser possível o afastamento da autonomia patrimonial da massa falida pela mera insuficiência de recursos para pagamento dos créditos trabalhistas. Na visão do autor, uma vez apurado o crédito no juízo laboral, teria o credor a seu favor tão somente a preferência que a lei lhe atribui, qual seja, o segundo lugar, após os créditos extraconcursais. Nas palavras do autor:
"Trata-se de séria distorção, que prejudica os demais empregados, quando os recursos da falida não são suficientes para o pagamento deles todos. Outra distorção tem sido a responsabilização dos sócios ou do acionista controlador pelas obrigações trabalhistas da sociedade empresária falida, sob o pálio da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica". Ulhôa(2020, p.401).
A disposição especial em favor do credor trabalhista justifica-se por permitir o alargamento do rol de legitimados passivos da execução trabalhista, o que possui como efeito uma maior probabilidade de satisfação do crédito, o qual é de extrema importância para a sobrevivência do trabalhador. O trabalhador de baixa renda, como regra geral, não possui poupança que lhe garanta a sobrevivência sem o salário.
Segundo uma pesquisa da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), 67% dos brasileiros não conseguem guardar nenhum percentual dos seus rendimentos mensais. Os baixos salários aliados ao alto custo de vida contribuem para essa situação. Ganha-se pouco e, consequentemente, gasta-se rápido. Assim, entra-se assim num ciclo de pobreza interminável, no qual o que se ganha só é suficiente para comprar o sustento por um período limitado.
Tal situação faz da preferência atribuída ao crédito trabalhista na falência não uma benesse do legislador, mas verdadeiro reconhecimento da imprescindibilidade das verbas trabalhistas para a sobrevivência do trabalhador. Reconhece-se, assim, o primado do trabalho na produção social de riquezas, garantido o ordenamento jurídico instrumentos que façam valer sua importância. Os efeitos da não aplicação da teoria menor seriam mais nocivos para a sociedade do que eventuais transtornos causados pelo afastamento menos dificultoso da autonomia patrimonial da massa falida.
É importante destacar que, embora o crédito trabalhista até o limite de 150 salários-mínimos já possua preferência na execução coletiva, pode haver situações nas quais a diferença entre o patrimônio massa falida e o seu passivo é tão expressiva que os valores levantados não serão suficientes para quitar todos os débitos com os trabalhadores, nem mesmo se considerando o privilégio garantido a este no concurso de credores. Nesse contexto, o levantamento do véu da autonomia patrimonial é medida que se impõe.
Por todo o exposto, conclui-se que a universalidade do juízo falimentar não deve constituir óbice para a aplicação dos ritos e institutos de outros ramos do direito, nas ações originárias de sua competência em que parte a massa falida. Entender de modo diverso seria negar a aplicabilidade de direitos conseguidos após um longo processo de afirmação. No caso em comento, a dignidade do trabalhador e sua proteção como parte hipossuficiente da relação capital/trabalho deve prevalecer em face do princípio da universalidade do juízo falimentar. Nesse ponto, é importante destacar o ensinamento de Rubens Requião(1969):
É preciso, para a invocação exata e adequada da doutrina, repelir a ideia preconcebida dos que estão imbuídos do fetichismo da intocabilidade da pessoa jurídica, que não pode ser equiparada tão insolitamente à pessoa humana no desfrute dos direitos incontestáveis da personalidade; mas também não devemos imaginar que a penetração do véu da personalidade jurídica e a desconsideração da pessoa jurídica se torne instrumento dócil nas mãos inábeis dos que, levados ao exagero, acabassem por destruir o instituto da pessoa jurídica, construído através dos séculos pelo talento dos juristas dos povos civilizados, em cuja galeria sempre há de ser iluminada a imagem genial de Teixeira de Freitas, que, no século passado, precedendo a muitos, fixou em nosso direito a doutrina da personalidade jurídica.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de bens dos sócios. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 05 set. 2024.
BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: Acesso em: 05 set. 2024.
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: Acesso em: 05 set. 2024..
BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 17 mar. 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: Acesso em: 05 set. 2024..
BRASIL. Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 10 fev. 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em: Acesso em: 05 set. 2024..
CASTELO, Jorge Pinheiro. O direito material e processual do trabalho e a pós-modernidade. São Paulo: LTr, 2003.
CHIAVENATO, Idalberto. Teoria geral da administração. Vol. 2. Rio de Janeiro: Campus, 2002.
COELHO, Fábio ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas / Fábio Ulhoa Coelho. -- 14. cd. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019.
MAMEDE, Gladston. Falência e recuperação de empresas. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969.
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine). Revista dos Tribunais, v. 803, p. 751-764, 2002.
67% dos brasileiros não conseguem poupar dinheiro, aponta pesquisa. G1, 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/09/26/67percent-dos-brasileiros-nao-conseguem-poupar-dinheiro-aponta-pesquisa.ghtml. Acesso em: 08 set. 2024.
[1] CC: “Art. 1.016. Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”
[2] CTN: “Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
[3] LRF. Art. 5º Não são exigíveis do devedor, na recuperação judicial ou na falência:
I – as obrigações a título gratuito;
[4]CF/88. Art. 5º. LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.