A busca pela isonomia entre credores devedores no âmbito da execução civil (2025)
Análise das prerrogativas conferidas pelo ordenamento jurídico ao devedor em detrimento do credor em sede de execução civil. Aponta-se, ainda, evolução jurisprudencial tendente a reparar tal desigualdade.
A ênfase dada pelo ordenamento à blindagem do patrimônio mínimo do devedor sem equivalência de tratamento dispensada ao credor atenta contra valores fundamentais, contribuindo para a intensificação da crise executiva.
O direito fundamental à dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, III, da Constituição Federal, deve, em deferência ao princípio da isonomia, atender, tanto ao devedor quanto ao credor.
Contudo, o ordenamento em vigor, a exemplo do normativo delineado no artigo 833, IV, do CPC, preleciona a impenhorabilidade do salário, ao presumir que tal verba se destina à subsistência do devedor. De tal modo, estaria sendo preservada a dignidade da pessoa humana do devedor e de sua família.
Esse ângulo enviesado do processo promove distorções, implicando em quebra de isonomia ao sugerir que a dignidade do devedor teria mais peso que a do credor.
A despeito de um histórico desprezo pela atividade executiva, com destaque reservado à atividade cognitiva – considerada o núcleo expressivo da jurisdição - tal orientação, ao longo dos anos, revelou-se equivocada, ganhando o processo executivo em valor e relevância.
Atualmente, é ponto comum o entendimento no sentido de que para a realização do direito material postulado em Juízo, é fundamental que a respectiva execução seja efetiva.
Convém considerar, ademais, que, na esteira do artigo 7º, do CPC, catalogado dentre as normas fundamentais do processo civil, deve ser “assegurada às partes paridade de tratamento”, ao passo que em seu artigo 8º, reforça-se a necessidade de se promover a dignidade da pessoa humana.
O procedimento executivo, portanto, encontra limites em valores, tais como o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana do devedor, não sendo lícito tolerar que este seja submetido a situações constrangedoras, desumanas, degradantes, ou, ainda, que seja privado das condições básicas de sobrevivência digna.
É de se observar que a efetividade da prestação jurisdicional, forte na ideia de que o Poder Judiciário não deve se limitar a pronunciar o Direito, como também entregar a tutela à parte que tiver reconhecido seu Direito em Juízo, é reconhecida como um direito fundamental e alçado, inclusive, a status de norma constitucional (inciso LXXVIII, do art. 5º da CR/88 ).
Lado outro, trilhando tais premissas, a Corte Especial do EG. Superior Tribunal de Justiça relativizou, em 19 de abril de 2023, através do julgamento dos Embargos de Divergência em Resp 1874.222 - DF (2020/0112194-8), a vedação à penhora de salário para saldar créditos não alimentares.
Naquela ocasião, contudo, adotou-se condicionantes para que a constrição sob comento pudesse ser validada.
Registrou-se que a relativização reveste-se de caráter excepcional e só deve ser praticada quando restarem inviabilizados outros meios executórios que possam garantir a efetividade da execução, e desde que avaliado, concretamente, o impacto da constrição na subsistência digna do devedor e de seus familiares.
A problemática, entretanto, reside na assimetria quanto ao tratamento dado às partes, credora e devedora, no que tange à humanização do processo executivo.
Em nenhum momento a situação do credor – parte lesada na relação – foi considerada na decisão.
Tal panorama pode reverberar em violação de diversos princípios, tais como a própria dignidade da pessoa humana (do credor), da razoável duração do processo, isonomia, razoabilidade, efetividade da tutela executiva, justificando, ademais, uma crise no processo de execução.
É bem verdade que a promulgação do Código de Processo Civil de 2015 trouxe ferramentas com vistas a uma execução mais efetiva, como a ampliação das medidas atípicas para toda e qualquer espécie de execução, inclusive as de pagar quantia certa.
No entanto, antigos problemas remanescem a permear o sistema, tais como dificuldade em se localizar patrimônio do devedor, extenso rol de impenhorabilidades, os limites da responsabilidade patrimonial do devedor, o desequilíbrio executivo e o flagrante descompasso entre o cuidado tomado pelo ordenamento ao considerar o “mínimo existencial” e a “dignidade da pessoa humana” do credor ou do devedor, tudo isso contribuindo para o desalento de um execução efetiva.
Oportuno asseverar que de nada se adiantará a recente flexibilização das regras legais de impenhorabilidades de salários para saldar dívida oriunda de crédito não alimentar, se tal relativização não estiver ancorada na categórica ideia geral de humanização da tutela executiva a salvaguardar, na mesma medida, a pessoa do credor.
Enquanto os valores oriundos dos conceitos “patrimônio mínimo” e “dignidade da pessoa humana” estiverem voltados apenas a agasalhar a pessoa do devedor, ou a ele conferir destacada proteção, não nos aproximaremos de uma tutela executiva ideal, justa e efetiva para todos os jurisdicionados.
Não há como se pensar na entrega de uma prestação jurisdicional de qualidade sem que seja dispensado, no âmbito da atividade executiva, um tratamento humanizado e isonômico a todos os atores do processo, razão pela qual se propõe a alardear para uma necessária reconstrução da ideia de que a afetação patrimonial do devedor é pautada pela superação de rígidos contornos de exceções, ao passo que, em outras tantas oportunidades, a situação do credor – parte lesada na relação – não é estudada com o mesmo cuidado.
Em boa hora, mas não imune a críticas, sobreveio o julgado dos Embargos e Divergência em Resp nº 1874222 - DF (2020/0112194-8), realizado pela EG. Corte Especial do Col. STJ, através do qual, admitiu-se a relativização da regra da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial, independentemente da natureza da dívida em estudo e do valor auferido pelo devedor, condicionada, apenas, a que a medida constritiva não comprometa a subsistência digna do devedor e de sua família.
Contudo, o julgado esclareceu que a relativização sob comento “reveste-se de caráter excepcional e só deve ser feita quando restarem inviabilizados outros meios executórios que possam garantir a efetividade da execução e desde que avaliado concretamente o impacto da constrição na subsistência digna do devedor e de seus familiares.”.
Apesar da manifesta evolução no caminho trilhado à isonomia constitucionalmente garantida aos atores do processo executivo, sobreleva destacar que a ressalva identificada denota, em certa medida, um tratamento assimétrico conferido às partes, enquanto credores ou devedores.
Nessas condições, não seria desmedido aduzir que identificar a dissimétrica valoração concebida entre os atores da execução, viabilizando-se a sua consequente reparação, implicaria em avançar ao recomendável abrandamento de um dos fatores que contribuem para a intensificação da notória crise executiva.