Neutralidade das redes e função social da internet

Neutralidade das redes e função social da internet

Uma análise do Direito de estar on-line, sob a perspectiva do Marco Civil da Internet.

Com o advento da “Quarta Revolução Digital”, houve profunda transformação nos meios de comunicação, na maneira de se expressar, e na difusão de notícias, entre outros. Isso acelerou o processo de propagação da informação e das ideologias, e o protagonismo das redes sociais e da inteligência artificial criou cibercidadãos ativos e empoderou às massas.

Em 1948, quando a ONU formalizou a Declaração Universal dos DireitosHumanos, não se poderia imaginar que a internet, um dia, seria considerada um direito tão importante quanto à vida, ou a liberdade de expressão.

A realidade era muito diferente. Setenta e quatro anos depois, é bem nítida a onipresença e importância da internet. Ela se tornou instrumentária para os atos essenciais da vida, como o simples pagamento de uma compra com QR CODE de cartão de crédito adicionado à wallet do celular, ou ainda, para o exercício das funções de um servidor público, em sistemas como o SEI e SEEU.

Além do espaço real, não há como não reconhecer o ciberespaço e a cibercultura da era digital. O surgimento das redes sociais parecia inofensivo em sua gênese. Mas a proporção que tais mídias tomou, incentivada especialmente pelo poderio econômico da monetização de plataformas como tiktok, youtube e instagram, aproximou os fatos digitais da rotina diária dos advogados, juízes, promotores, Tribunais e CortesSuperiores. Esses recursos tecnológicos auxiliam a atividade das cortes e constituem maneira ágil e eficaz de publicização de julgados e notícias no âmbito jurídico.

O direito de estar incluído digitalmente foi fomentado pela popularização da internet no mundo e pelo barateamento dos equipamentos necessários para se estar online. Especialmente após a pandemia de COVID-19 ocorrida entre os anos de 2020 e2021, restringir o acesso à internet e às mídias digitais como instagram e twitter tornou-se grave violação de direitos humanos. Estar conectado às redes ganhou o mesmo status de direitos como de liberdade de expressão e direito à vida. O direito de estar online vem sendo tratado nos documentos internacionais relacionados com o direito à liberdade de expressão, uma vez que os “apagões” de internet constantemente são utilizados por alguns países, como maneira de inviabilizar o acesso à informação pela população, e até mesmo como mecanismo para concretização de golpes militares.

Na República de Mianmar, a cidade de Yagon sofreu com apagão de internet no dia 1º de fevereiro de 2021, como forma de concretizar um golpe de Estado. Os golpistas tomaram o governo daquele País e a data marcada para posse de um novo parlamento foi, na verdade, a primeira etapa de um golpe digital projetado para exercer controle sobre comunicações, diminuindo a velocidade e desligando estrategicamente a internet.

De acordo com o artigo 19 da Declaração Universal de direitos humanos e artigo 19 do Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos todo indivíduo tem o direito à liberdade de opinião sem ser perturbado por causa disso, investigar e receber informações e opiniões, e divulgá-las, sem consideração de fronteiras e por qualquer meio de expressão, ou em forma artística. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,1948)

Ademais, o Conselho de Direitos Humanos e a Assembléia Geral consideram a liberdade de expressão como um dos pilares essenciais de qualquer sociedade democrática, bem como uma das condições básicas para o seu progresso e desenvolvimento e enfatizaram que a mídia e a livre comunicação ajuda a construir sociedades do conhecimento e democracias inclusivo e promover o diálogo intercultural, a paz e o bom governo. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,2014)

Aliás, a ONU já conta, ao menos, com cinco documentos que mencionam a internet como direito humano. Como destaque inicial, pode-se citar:

Pocas apariciones de nuevas tecnologías de la información, por no decir ninguna, han tenido un efecto tan revolucionario como la creación de Internet. A diferencia de cualquier otro medio de comunicación, como la radio, la televisión y la imprenta, todos ellos basados en una transmisión unidireccional de información, Internet representa un gran avance como medio interactivo. De hecho, con la llegada de los servicios Web 2.0, integrados por plataformas de intermediación que facilitan el intercambio participativo de información y la colaboración en la creación de contenidos, los usuarios han dejado de ser receptores pasivos para convertirse en generadores activos de información. Estas plataformas son especialmente útiles en países donde no hay medios de comunicación independientes, pues permiten a los usuarios intercambiarse opiniones críticas y encontrar información objetiva. Además, los medios de comunicación tradicionales también pueden aprovechar Internet para ampliar enormemente su público a un costo nominal. En un plano más general, al permitir el intercambio instantáneo de información e ideas a bajo costo a través de las fronteras nacionales, Internet facilita el acceso a información y conocimientos que antes no se podían obtener, lo cual, a su vez, contribuye al descubrimiento de la verdad y al progreso de la sociedad en su conjunto. (Naciones Unidas, Asamblea General, Relatoria Especial sobre la promoción y protección del derecho a la libertad de opinión y de expresión, ResoluciónA/HRC/17/27, p.7)

Em estudos realizados pelas Organizações das Nações Unidas, através da União Internacional de Telecomunicações, a UIT, estima-se que hoje, ao menos 66% da população mundial está on-line. Isso resulta numa população de 5,3 bilhões de pessoas conectadas no globo. Só para se ter uma idéia do quanto esse avanço foi considerável, em 2012, 10 anos atrás, o número de pessoas on line correspondia a 2,4 bilhões (34% da população mundial). Ou seja, o número de pessoas conectadas no planeta dobrou em apenas uma década.

Ainda mais interessante, o número de pessoas portadoras de smartphones e celulares com acesso à internet; Segundo estudos da UIT, 89% da população brasileira possui seu próprio aparelho celular, sendo que, 88% destas pessoas possuem cobertura 4G. Tendo por base estes números, pode-se afirmar que quase 120 milhões de brasileiros possui acesso à internet de maneira imediata, em seus celulares, em praticamente qualquer lugar do Brasil.

Diante da tendência mundial o Brasil hoje é o terceiro país mais tempo on-line no mundo. Foi promulgado oficialmente o Marco Civil através da Lei 12.965, de 23 de abril de 2014, no qual se disciplina o uso da internet no país e define princípios, garantias, direitos e políticas públicas de regulamentação.

Veja alguns artigos importantes da lei:

Art. 4º A disciplina do uso da internet no Brasil tem por objetivo a promoção:I - do direito de acesso à internet a todos; (BRASIL,2014)

Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania(...)(BRASIL, 2014)

Referida disciplina do uso da internet no Brasil tem por fundamento o respeito à liberdade de expressão nos moldes do art. 142, da Constituição Federal (BRASIL,1988), bem como propõe observância à sua finalidade social, sob o compromisso de preservação de neutralidade da rede.

Ocorre que, o que muitos não sabem em que consiste o Princípio da Neutralidade das Redes, tampouco entendem qual seria a finalidade Social da Internet.

DO PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE DAS REDES E A FUNÇÃO SOCIAL DA INTERNET

É, no mínimo, preocupante que oito anos após a promulgação do Marco Civil da Internet se fale tão pouco acerca de um princípio tão valioso para a manutenção dos valores mais comezinhos da Democracia e do Estado Democrático de Direito.

A neutralidade de rede é um princípio elaborado por pesquisadores posteriormente incorporado nas discussões sobre governança da internet no mundo e transformado em legislação em diversos países. Boa parte da Europa e quase toda a América do Sul contam com regras neste sentido. México e Canadá, na América do Norte, e Índia e Japão, na Ásia, são outros exemplos.

Instituições como a Coalizão Global pela Neutralidade de Rede vêm desempenhando importante papel na definição do papel das plataformas digitais, e utilizando-se de discussões com várias entidades da sociedade civil, para delinear maneiras de conter levantes contra as instituições democráticas; seja através de atos golpistas que beiram o terrorismo, seja propagando conteúdo que ponha em xeque institutos altamente respeitados e sagrados como os Tribunais Superiores, e o sufrágio.

Segundo a Carta Aberta de Direitos na Rede:

as plataformas digitais abertas e fechadas têm sido inundadas por conteúdo de incitação contra a ordem democrática, com chamados à sublevação e pedido de intervenção militar. Elas têm sido notificadas de tal conteúdo, mas as ações de moderação têm sido mínimas ou inexistentes. Como já foi apontado pelas 116 entidades signatárias do documento “O papel das plataformas digitais na proteção da integridade eleitoral em 2022”, possíveis respostas imediatas das plataformas no período eleitoral continuam sendo extremamente limitadas para lidar com o problema que o país enfrenta. Mesmo as empresas que têm políticas de integridade cívica ou eleitoral, criadas especificamente para impedir chamados à agitação civil contra a ordem democrática ou à interferência na transmissão pacífica de poder– incluindo aí as atualizações realizadas por Twitter e YouTube no dia 31/10 -, não têm aplicado de maneira diligente o que prometem. Muitos conteúdos chamando para atos antidemocráticos continuam circulando com alta visibilidade, amplificados por influenciadores digitais com alto número de seguidores. Considerando as políticas em curso, entendemos que as plataformas devem tomar medidas em face de todos os conteúdos e canais que, ao alegarem infundadamente fraude eleitoral ou teorias conspiratórias inconstitucionais, causam danos ao processo eleitoral – além de trazerem riscos significativos de uso de violência. Trata-se de interpretar suas políticas de maneira condizente com o contexto brasileiro, permitindo uma ação imediata em face destes conteúdos e canais. No caso das plataformas que até hoje não desenvolveram políticas para crises desta natureza – o que é ainda mais preocupante -, elas precisam ser criadas e implementadas. Da mesma forma, ao serem acionadas pelo Judiciário, devem ser rápidas em atender demandas. Ao ignorarem e se omitirem diante da massiva distribuição de conteúdos que atacam o sistema eleitoral e incitam a violência, tais empresas estão funcionando como trampolim para ações antidemocráticas, inclusive obtendo lucro financeiro comesse tipo de conteúdo. Cabe a elas, agora, adotar medidas efetivas, cumprir determinações judiciais e prestar contas das ações empregadas e seus resultados. Esta transparência é essencial para que a sociedade e autoridades identifiquem o que está sendo feito neste momento perigoso de levante contra a ordem democrática. (Fonte: Carta aberta: Plataformas digitais não podem ser trampolim para levantes contra a ordem democrática - Coalizão Direitos na Rede)

É visível que as plataformas que não agem de maneira a preservar a neutralidade das redes e, ao deixar que esses levantes antidemocráticos sejam propagados, não atendem nem à neutralidade exigida, tampouco à função social da internet.

Isso porque ao não impedir que movimentos terroristas e golpistas se engrandeçam, e ao deixar que informações inverídicas e, ao menos tendenciosas ataquem de maneira irracional os frutos de centenas de anos de democracia, não se esta atendendo ao núcleo do artigo 142 da Constituição Federal, nem tampouco constituindo em censura prévia.

O motivo é que vários dispositivos infraconstituicionais, e mesmo a Constituição deflagram um maquinário legislativo para proteger o íntimo democrático, sendo assim, não parece ilógico conceber que inflamar pessoas para se levantarem contra a democracia baseado em informações tendenciosas difundidas nas mídias digitais nem de longe pode ser considerado algo que atende à função social da internet.

Na mesma medida, plataformas que não agem para suprimir propagação de ideologias terroristas também não cumprem o princípio da neutralidade das redes.

A despeito da pouca atenção que a neutralidade das redes, e a função social da internet recebem no Brasil, o Supremo Tribunal Federal já demonstra uma gênese de cobrar dos atores da Democracia o respeito aos referidos institutos. Uma prova disso é o Julgamento da AP 1044/DF, em que o Ministério Público Federal promoveu ação contra o então Deputado Federal bolsonarista Daniel Lúcio da Silveira, em razão da prática das condutas descritas no art. 344 do Código Penal (por três vezes) e no art. 23, II (por uma vez) e IV (por duas vezes), o último combinado com o art. 18, ambos da Lei 7.170/83. Em decisão de 8/11/2021, a prisão do ex-deputado foi substituída por duas medidas cautelares; quais sejam, (1) Proibição de ter qualquer forma de acesso ou contato com os demais investigados nos Inquéritos 4.781/DF e 4.874/DF, salvo os parlamentares federais; (2) Proibição de frequentar toda e qualquer rede social, instrumento utilizado para a prática reiterada das infrações penais imputadas ao réu pelo Ministério Público em nome próprio ou ainda por intermédio de sua assessoria de imprensa ou de comunicação e de qualquer outra pessoa, física ou jurídica, que fale ou se expresse e se comunique (mesmo com o uso de símbolos, sinais e fotografias) em seu nome, direta ou indiretamente, de modo a dar a entender esteja falando em seu nome ou com o seu conhecimento, mesmo tácito. Em decisão posterior, de maneira cumulativa, o Ministro Alexandre de Moraes proibiu, ainda, nova medida cautelar, em caráter cumulativo com as estabelecidas na decisão de 8/11/2021, consistente na proibição de conceder qualquer espécie de entrevista, independentemente de seu meio de veiculação, salvo mediante expressa autorização judicial. [1]

Tais medidas, apesar da errônea interpretação da população leiga, como configuração de cerceamento e censura prévia, tal argumento não merece prosperar, tendo em vista o estudado neste artigo atinente à neutralidade das redes e função social da internet exigidas pelo Marco Civil. Ao agir de maneira antidemocrática e atacar instituições constituídas, o ex-deputado não observou as regras contidas na lei 12.965 de 2014, e, portanto sofreu legítimas conseqüências por àquele Tribunal Constitucional.

Cumpre destacar, ainda, a decisão da Petição nº 9456/DF, em que o Ministro Alexandre de Moraes assevera que 1. A Constituição Federal não permite a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático (CF, artigos 5º, XLIV;  e  34,  III  e  IV),  tampouco  a  realização  de  manifestações nas redes sociais visando ao rompimento do Estado de Direito, com a extinção das cláusulas pétreas constitucionais – Separação de Poderes (CF, artigo 60, § 4º), com a consequente instalação do arbítrio. [2]

Portanto, quando a conclusão irremediável é a de que ao desatender a função social da internet fere-se também a neutralidade das redes o que hoje não se pode mais admitir.

Importante ressaltar que hoje, a internet tem, além do fim em si mesma, a finalidade instrumentária de elemento inexorável ao exercício pleno da cidadania. Bem como perfaz uma ponte essencial para ascensão profissional na era digital.

Sem dúvida, as redes sociais constituem o maior poderio em termos de publicidade e propaganda das carreias antigas, e das novas carreiras também. A eventual falta de acesso à internet limita de modo irremediável as oportunidades de aprendizado, crescimento, de acesso irrestrito aos meios de educação e de emprego. E tudo que é feito on-line merece especial atenção, tendo em vista a proteção da Democracia.

Referências

[1] AP nº 1044/2021, Rel. Ministro Alexandre de Moraes, STF.

[2] Pet. 9456/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, STF

Sobre o(a) autor(a)
Renata Augusta Moura de Faria
Renata Augusta Moura de Faria Servidora do Tribunal de Justiça do Estado do Acre, Mestranda bolsista em Psicologia Criminal do programa de bolsas da Fundação Universitária Iberoamericana junto à Universidad Europea del Atlantico...
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