Direito à saúde e a responsabilidade do Estado

Direito à saúde e a responsabilidade do Estado

O direito à saúde, elevado à categoria dos direitos fundamentais, por estar interligado ao direito à vida e à existência digna, representa um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, sendo considerado pela doutrina e legislação uma obrigação do Estado e uma garantia de todo o cidadão.

1. INTRODUÇÃO

A atenção à saúde é direito de todo o cidadão e um dever do Estado, sendo plenamente assegurada pela Constituição Federal de 1988 (CF/88). Diante desse contexto, ao iniciar o estudo proposto nesse artigo, se faz necessário analisar os direitos sociais à luz do disposto na Carta Política de 1988, enfatizando-se o direito à saúde, por este ser relevante para o desenvolvimento da temática proposta.

Em seguida, far-se-á uma breve análise da responsabilidade do Estado, em sentido lato sensu, para o fornecimento de medicamentos, a partir da garantia constitucional do direito à saúde, examinando-se, por consequência, o sistema público de distribuição de fármacos, bem como a reserva do possível e a não cobertura total do Estado para o fornecimento de medicamentos.

Por fim, se faz necessária uma breve exposição acerca da intervenção do Poder Judiciário no tocante ao fornecimento de medicamentos pelo Poder Público.

2. DIREITOS SOCIAIS À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

De forma inovadora, a Carta Maior de 1988 simbolizou o marco da redemocratização do regime político no Brasil e da institucionalização dos direitos humanos no país após mais de vinte anos de regime militar ditatorial, sendo a primeira a afirmar que os direitos sociais equivaleriam a direitos fundamentais, defendendo, portanto, sua aplicabilidade imediata (PIOVESAN, 2010).

Desta feita, Ladeira (2009, p. 106) leciona que “o reconhecimento de direitos sociais no corpo da Constituição Federal é a evidência de ter o Estado brasileiro adotado a configuração de um Estado Democrático de Direito”, cuja finalidade se diferencia daquela adotada pelos Estados liberais, vez que objetiva assegurar o direito à igualdade em aspectos formais e materiais.

Por conseguinte, com o advento da Constituição Federal de 1988, objetivou-se estabelecer garantias fundamentais a todo cidadão, propiciando aos indivíduos condições mínimas para o pleno gozo de seus direitos. A partir de então, incluiu-se ao rol dos direitos fundamentais os direitos sociais, consagrando, por conseguinte, o direito à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados (MORAES, 2005).

Nessa perspectiva, Pinho (2001) aduz que:

Para ressaltar a valorização dada aos direitos sociais na nova ordem constitucional implantada com a redemocratização do regime político no Brasil, a Constituição de 1988, de forma inovadora, dedicou um capítulo exclusivo para seu tratamento, no título denominado “Dos direitos e garantias fundamentais”, assim como inseriu diversos outros dispositivos em que eles são desdobrados (PINHO, 2001, p. 154).

Vê-se, portanto, que os direitos sociais estão dispostos no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) e no Título VIII (Da Ordem social) da Carta Política de 1988. Assim sendo, no art. 6º do mencionado diploma são estabelecidos os direitos sociais à educação, à saúde, à alimentação[1], ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade, à infância e à assistência aos desamparados, bem como do art. 7º ao 11 foram sistematizados os direitos sociais do trabalhador, seja em suas relações isoladas ou coletivas.

Já no Título VIII da Carta Maior, o qual inicia com o art. 193, foram privilegiados os direitos à Seguridade Social (saúde, previdência social e assistência social), bem como os direitos relativos à cultura, à educação, à moradia, ao lazer, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e os direitos sociais da criança e idoso.

Com efeito, os direitos sociais assegurados na Carta Magna de 1988 são classificados pela doutrina pátria como direitos de segunda dimensão, os quais exigem uma atuação ativa do Poder Público em prol dos menos favorecidos e dos setores economicamente mais debilitados da sociedade (TAVARES, 2003).Assim, surge para os cidadãos a legitimidade para a reivindicação de determinadas prestações positivas e materiais do Estado para a garantia de cumprimento desses direitos.

Conforme Canotilho (2008, p. 97), os direitos sociais, “na qualidade de direitos fundamentais, devem regressar ao espaço jurídico-constitucional, e ser considerados como elementos constitucionais essenciais de uma comunidade jurídica bem ordenada”.

Para além das observações que já indicam a fundamentalidade dos direitos sociais na ordem constitucional brasileira, cumpre ressaltar que esses se encontram sujeitos à lógica do art. 5°, § 1°, da Carta Maior, vez que possuem a qualidade de direitos fundamentais, os outorgando, assim, máxima eficácia e efetividade possível (SARLET; FIGUEIREDO, in SARLET; TIMM, 2008).

Por consequência, Bontempo (2005, p. 71) elucida que “os direitos sociais são, por conseguinte, sobretudo, endereçados ao Estado, para quem surgem, na maioria das vezes, certos deveres de prestações positivas, visando à melhoria das condições de vida e à promoção da igualdade material”.

Logo, Meireles (2008) garante que:

Os direitos sociais se ligam ao direito à igualdade, pois são pressupostos do gozo dos direitos de liberdade à medida que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona o surgimento de condições mais compatíveis com o exercício efetivo da liberdade (MEIRELES, 2008, p. 79).

De tal modo, os direitos sociais, plenamente assegurados no artigo 6º da Carta Magna de 1988, possuem como objetivo a igualdade material, exigindo prestações positivas pelo Estado, o qual deverá realizar a implementação destes “mediante políticas públicas concretizadoras de determinadas prerrogativas individuais e/ou coletivas, destinadas a reduzir as desigualdades sociais existentes e garantir uma existência humana digna” (NOVELINO, 2009, p. 481).

Por certo, conforme o último estudioso, em que pese alguns direitos sociais possuírem somente uma dimensão objetiva, a grande maioria destes possui também uma dimensão subjetiva, tendo em vista a qualidade de direitos fundamentais, possibilitando, por conseguinte, a exigência de determinadas prestações materiais por parte do Poder Público.

Diante desse contexto, Piovesan (2010) ressalta que a Constituição Federal de 1988, além de estabelecer os direitos sociais em seu artigo 6º, apresentou um amplo leque de normas que apontam para a necessidade da criação de diretrizes, programas e afins a serem adotados pelos Entes Públicos e pela coletividade.

Feitas essas ponderações, passa-se para a análise exclusiva do direito social à saúde, a qual se tornará necessária para o desenvolvimento do presente artigo.

2.1 DIREITO À SAÚDE

A partir da atual Carta Política a prestação de serviços públicos relativos à saúde foi estendida a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, conforme ensina Barroso (2009, texto digital), derrubando-se a restrição até então existente de assistência a apenas parcelas da população:

Com a redemocratização, intensificou-se o debate nacional sobre a universalização dos serviços públicos de saúde. O momento culminante do “movimento sanitarista” foi a Assembléia Constituinte, e quem se deu a criação do Sistema Único de Saúde. [...]

A partir da Constituição Federal de 1988, a prestação do serviço público de saúde não estaria mais restrita aos trabalhadores inseridos no mercado formal. Todos os brasileiro, independentemente de vínculo empregatício, passaram a ser titulares do direito à saúde (BARROSO, 2009, texto digital).

Em verdade, até a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 “nenhum texto constitucional se refere explicitamente à saúde como integrante do interesse público fundante do pacto social” (DALLARI, 1995, p. 23), somente vindo a ser positivada no Brasil após 40 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem (SOUZA, 2010).

Diante dessa situação, ressalta-se a consagração do direito à saúde no art. 6º da Carta Política, verba legis:

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (texto digital).

Complementarmente, o constituinte de 1988 possibilitou mais uma admirável evolução ao direito constitucional brasileiro ao prever o art. 196 da Magna Carta, vez que consolidou a saúde como direito de todos e dever do Estado, instituindo, ainda, o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (SCHWARTZ, 2001).

Em sequencia, previu-se no art. 197 ser a saúde um serviço de relevância pública, vez que indispensável para a manutenção da vida, e no art. 198, inciso II, estipulou-se que as ações e serviços públicos referentes á saúde deveriam ter atendimento integral, priorizando-se as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais (ACHOCHE, 2008).

Já no tocante aos recursos que devem ser destinados para a viabilização do direito à saúde no país, a Emenda Constitucional n° 29, de 13 de setembro de 2000, “acrescentando o § 2° ao art. 198, estabeleceu a obrigatoriedade da aplicação, anualmente, de recursos mínimos pela União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, em ações e serviços públicos de saúde” (BONTEMPO, 2005, p. 77).

Com efeito, Ladeira (2009, p. 110) esclarece que o “direito à saúde configura-se como direito social prestacional que objetiva assegurar à pessoa humana condições de bem-estar e de desenvolvimento mental e social livre de doenças físicas e psíquicas”.

Nesse entendimento, Paranhos (2007) leciona que:

Extrai-se do art. 1°, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Logo, não há como recusar que um dos requisitos para a existência dessa dignidade de que trata a Constituição Federal, é a saúde pública (PARANHOS, 2007, p. 155).

Logo, a valorização do direito à saúde se deve ao fato desse ser essencialmente um direito fundamental do homem, considerando-se que a saúde é “um dos principais componentes da vida, seja como pressuposto indispensável para sua existência, seja como elemento agregado à sua qualidade. Assim, a saúde se conecta ao direito à vida” (SCHWARTZ, 2001, p. 52).

De fato, “a saúde é componente da vida, estando umbilicalmente ligada à dignidade da pessoa humana. Dessa forma, pode-se dizer que o direito à vida e à saúde são consequências da dignidade humana” (SOUZA, 2010, p.15). Ademais, deve-se ter claro que “o direito à saúde é direito à vida, pois a inexistência de um leva, inevitavelmente, ao fim da outra” (PARANHOS, 2007, p. 156).

No entender de Bulos (2003, p. 1291) a “saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e espiritual do homem e, não apenas, a ausência de afecções e doenças”, razão pela qual se compreende a especial ênfase estabelecida a essa na Constituição de 1988.

Desse modo, entende-se que o direito à saúde pode ser dotado de dupla função:

Tanto como um direito de defesa (proteção do Estado à integridade corporal das pessoas contra agressões de terceiros, por exemplo), quanto como um direito positivo (impondo ao Estado a realização de políticas públicas buscando sua efetivação, tais como atendimento médico e hospitalar, por exemplo), e ambas as dimensões demandam o emprego de recursos públicos para a sua garantia” (OHLAND, 2010, p. 31).

Não obstante, Nascimento (1997) defende que, diante da relevância dada à preservação da vida em nossa atual Constituição, o direito à saúde estaria amparado pelo disposto no art. 60, § 4°, IV, da Carta Política de 1988, atribuindo-lhe caráter de cláusula pétrea:

No exame sistêmico do texto constitucional, incompreensível seria garantir-se como cláusulas pétreas, a vida e a integridade física do homem e não se garantir com a mesma eficácia de cláusula intocável por emendas constitucionais, visto que a saúde, destutelada, pode levar inclusive à morte. A proteção estatal da saúde decorre dos princípios adotados pela Carta, e, como resultado, é limitação material implícita a obstar sua abolição, ou redução, por emenda constitucional (NASCIMENTO, 1996, p. 89).

Nesse ínterim, o reconhecimento normativo, doutrinário e jurisprudencial do direito à saúde demonstra o seu caráter de direito fundamental do homem, tornando-se necessária a sua “aplicabilidade imediata e eficácia plena, caráter este reconhecido pelo órgão máximo do Poder Judiciário Brasileiro – o Supremo Tribunal Federal (STF) -, a quem cabe a guarda precípua da Constituição” (SCHWARTZ, 2001, p. 63).

Para o Ministro (Min.) Celso de Mello, o direito social à saúde se caracteriza como direito subjetivo inalienável, tornando-se indispensável para a vida humana:

Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5°, “caput”, e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que as razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana.

Cumpre não perder de perspectiva que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Constitui bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integralidade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas que visem garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n° 393175-0/RS, Segunda Turma, Supremo Tribunal Federal,  Relator Ministro Celso de Mello. Julgado em 12/12/2006, publicado 02/02/2007). 

E mais, Canotilho e Moreira apud Silva (2007), a exemplo dos direitos sociais em geral, o direito à saúde comporta duas vertentes:

[...] uma, de natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenha de qualquer acto que prejudique a saúde; outra, de natureza positiva, que significa o direito às medidas e prestações estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas (Silva, 2007, p. 309).

Destarte, denota-se que “a saúde foi tratada como um direito social fundamental de todo e qualquer ser humano. Mas, como ensina Norberto Bobbio em sua obra A Era dos Direitos, o momento histórico é de discutir as declarações dos direitos, mas sim sua efetivação” (BRANCO, 2007, texto digital, grifos do autor).

De fato, “a efetivação do direito à saúde encontra diversos obstáculo, quais sejam, de ausência de recursos, bem como de ausência de políticas públicas ou de descumprimento das existentes” (SOUZA, 2010, p. 24). Todavia, conforme o autor, considerando a essencialidade e garantia constitucional da saúde, a população necessita exigir as prestações necessárias a sua concretização, haja vista se tratar de um direito auto-aplicável e de eficácia imediata.

Realizadas as ponderações necessárias no tocante ao direito à saúde, passa-se à análise da responsabilidade do Estado para o fornecimento de medicamentos, considerando-se o tema até então desenvolvido.

2.2 A RESPONSABILIDADE DO ESTADO PARA O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS FRENTE AO DIREITO SOCIAL À SAÚDE

A Carta Política de 1988 estabeleceu, em seus artigos 23 e 196, a responsabilidade solidária dos entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) para o fornecimento dos serviços de saúde, ficando sob o encargo desses a sua promoção, proteção e recuperação:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência (texto digital).

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (texto digital).

Com efeito, conforme salientam Castro, Lino e Vieira (2008, p.104), apesar de o legislador mencionar o Estado como garantidor da saúde pública no art. 196 do texto constitucional, a obrigação não foi imposta apenas a esse, ao contrário, “utilizou-se a palavra ESTADO no intuito de englobar tanto os Estados-membros, quanto à União e o Munícipio, vez que ambos têm o dever promover o bem estar social, garantindo educação, saúde e segurança a todos os cidadãos”.

Em decorrência disso, havendo competência solidária dos entes federados para a prestação de serviços de saúde no país, denota-se que caberia a esses o fornecimento de medicamentos de forma gratuita à população:

Inerente ao dever do Estado de prover a saúde pública está a obrigação de promover políticas públicas de redução do risco de doenças, através de campanhas educativas, de vigilância sanitária, de desenvolvimento de recursos humanos, alimentação saudável, construção de hospitais, centros ambulatoriais e postos de saúde. Por fim, o fornecimento gratuito de medicamentos para a recuperação ou para a redução das consequências causadas pelos mais variados tipos de doenças (PARANHOS, 2007, p. 155).

De tal modo, Cardoso (2010) elucida que, em que pese inexistir previsão constitucional expressa acerca da distribuição gratuita de medicamentos pelo Poder Público, cabe a esse o fornecimento de fármacos à população, eis que o direito dos enfermos em receber o devido tratamento medicamentoso provém do direito constitucional à saúde.

Por certo, a doutrina pátria tem adotado o entendimento de que “o dever do Estado de assegurar aos indivíduos o direito à saúde abrange, evidentemente, a sua obrigação de fornecer medicamentos necessários à vida” (SOUZA, 2010, p. 20).

E nesse mesmo sentido, o Relator Ministro (Min.) Luiz Fux, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n° 607381, destacou a solidariedade passiva dos entes federativos para a prestação de serviços de saúde, dentre eles, o fornecimento de medicamentos, bem como a necessidade de efetivação do direito social à saúde:

A ultima ratio do art. 196 da CF é garantir a efetividade ao direito fundamental à saúde, de forma a orientar os gestores públicos na implementação de medidas que facilitem o acesso a quem necessite da tutela estatal à prestação de serviços médico-hospitalares e fornecimento de medicamentos, além de políticas públicas para a prevenção de doenças, principalmente quando se verificar ser, o tutelado, pessoa hipossuficiente, que não possui meios próprios para custear o próprio tratamento. Dessa forma, os artigos 23, II, e 198, § 2°, da CF impõem aos entes federativos a solidariedade na responsabilidade da prestação dos serviços na área da saúde, além da garantia de orçamento para efetivação dos mesmos (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n° 607381/SC, Primeira Turma, Supremo Tribunal Federal, Relator: Ministro Luiz Fux, Julgado em 31/05/2011, DJ 16/06/2011, p. 116).

Já para Ordacgy (2007) a dignidade da pessoa humana, protegida pelo art. 1°, III, da Carta Maior, é o princípio do qual decorre o dever dos Entes Públicos para o fornecimento de remédios à população:

A Carta Política de 1988 consagra como fundamento da República, em seu art. 1º, inc. III, a Dignidade da Pessoa Humana.  Mais ainda, o art. 5º, caput, garante a todos o direito à vida, bem que deve ser resgatado por uma única atitude responsável do Estado, qual seja, o dever de fornecimento da medicação e/ou da intervenção médica necessária a todo cidadão que dela necessite. O Direito à Saúde, além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas, representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida, e a uma vida digna (ORDACGY, 2007, texto digital).

No entender de Souza (2010, p. 20), sendo o acesso à medicação um direito social constitucionalmente assegurado, cumpre aos entes federados o fornecimento de qualquer medicamento que seja recomendado para a manutenção da vida do cidadão, asseverando-se que “esse fornecimento deve ser feito de forma igualitária, não podendo haver qualquer discriminação”.

Na mesma linha, Cardoso (2010) sustenta que o Poder Público não poderia, de forma alguma, escusar-se do fornecimento de medicamentos, sendo inadmissível que a população permaneça à mercê da burocracia estatal, vez que a saúde liga-se diretamente ao direito à vida.

E mais, cabe ao Estado a distribuição à população dos remédios mais “seguros (que sabidamente não provocam danos), eficazes (fazem o que se propõem a fazer), efetivos (fazem o que se propõem a fazer quando utilizado pelas pessoas em condições reais) e custo-efetivos (fazem o que se propõe a fazer, em condições reais, ao menor custo)”(BARBERATO-FILHO; LOPES; MACEDO, 2011, p. 707).

Diante desse cenário, extrai-se que o direito ao recebimento de medicamentos do Poder Público deriva do direito social à saúde, configurando-se como um legítimo direito social prestacional. Destarte, tal direito exige uma “destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação de bens materiais” (SARLET, 2009, p. 284), possuindo nitidamente uma dimensão econômica.

Numa estreita síntese, “considerando que entre o necessário para a promoção da assistência à saúde está o fornecimento de medicamento, mediante um simples silogismo é possível afirmar que o acesso ao medicamento é direito de todos e dever do Estado” (PARANHOS, 2007, p. 156).

Em contrapartida, Branco, Coelho e Mendes (2008) salientam que existe a dificuldade na efetivação dos direitos sociais, dentre os quais, o direito de recebimento de medicamentos de forma gratuita pela população, tendo em vista a restrição orçamentária do Poder Público para viabilizá-lo ante a inexistência de recursos legalmente destinados ao custeio de despesas provenientes do fornecimento de medicamentos.

Todavia, conforme salienta Lima Neto (2009, texto digital), é inaceitável permitir que um ser humano faleça “simplesmente porque não tem dinheiro para arcar com o tratamento. O interesse público deve sim prevalecer sobre os interesses particulares. Mas não sobre os seus direitos mínimos, que são a própria razão da existência de uma sociedade”.

Na realidade, grande parte da população não possui condições financeiras para arcar pelos serviços de saúde essenciais à preservação da vida, razão pela qual se torna necessário que o Poder Público atue em benefício desse imenso contingente que não tem recursos suficientes que possibilitem seu tratamento (LIMA NETO, 2009).

Verificado o dever constitucional do Estado para o fornecimento de medicamentos à população, passa-se à breve análise acerca do sistema público de distribuição de fármacos.

2.3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO SISTEMA PÚBLICO DE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS

Diante da relevância pública da saúde, outorgou-se aos entes federados, através dos artigos 196 e 197 da Constituição Federal de 1988, a assistência pública à saúde. Em consequência, houve a edição da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, complementada pela Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990, regulamentando o Sistema Único de Saúde (SUS):

O sistema único de saúde, integrado de uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, constitui o meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever na relação jurídica de saúde que tem no pólo ativo qualquer pessoa e a comunidade, já que o direito à promoção e à proteção da saúde é também um direito coletivo. O sistema único de saúde implica ações e serviços federais, estaduais, distritais (DF) e municipais, regendo-se pelos princípios da descentralização [...] (SILVA, 2007, p. 831).

A partir dessa premissa, Campos (2006, p. 531) leciona que o Sistema Único de Saúde é “o arranjo organizacional do Estado brasileiro que dá suporte à efetivação da política de saúde no Brasil, e traduz em ações os princípios e diretrizes dessa política”, evidenciando-se que a criação do SUS foi a fórmula adotada pelo Poder Público para a efetivação da saúde no país.

Com efeito, o art. 7° da Lei n 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde - LOS) traça os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde, dentre os quais: a) a universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; b) a integralidade da assistência; c) a igualdade da assistência à saúde. Dessa forma, conclui-se que “o SUS está alicerçado em três princípios basilares: universalidade, igualdade e equidade. Todos que precisam devem ser tratados pelo SUS. Afinal, a saúde é direito de todos” (SANTANA, 2010, p. 54).

Além disso, segundo o autor, as diretrizes do SUS podem ser definidas, em síntese, pelo atendimento integral, a descentralização e a participação da comunidade através dos Conselhos de Saúde.

Conforme dispõe o art. 198, § 1°, da Constituição Federal, o financiamento do Sistema único de Saúde será realizado com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Em complemento, a Emenda Constitucional n° 20/98 determinou que a “lei definirá os critérios de transferência de recursos para o sistema único de saúde ações de assistência social da União para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e dos Estados para os Municípios, observada a respectiva contrapartida de recursos (CF, art. 195, § 10)” (MORAES, 2005, p. 726).

Vale dizer que os objetivos do Sistema Único de Saúde estão previstos no art. 5° da Lei nº 8080/90, incluindo-se, ainda, em seu campo de atuação a execução das ações determinadas no art. 6°, dentre as quais a assistência farmacêutica, verba legis:

Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde-SUS:

I - a execução de ações:

d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica (texto digital).

Evidencia-se, portanto, que “a assistência farmacêutica faz parte do conjunto de ações que deve ser desenvolvido para garantir a integralidade da assistência, que envolvem ações de promoção, prevenção, proteção específica, diagnóstico, tratamento e reabilitação em saúde” (BARATA; MENDES, 2010, p. 63).

De fato, o Ministério da Saúde (MS) é o órgão que define a Política de Assistência Farmacêutica, cabendo a esse a direção do SUS no âmbito federal. Na esfera estadual, as Secretarias Estaduais de Saúde serão os órgãos responsáveis pela assistência farmacêutica e, no âmbito municipal, as Secretarias Municipais de Saúde (CAMPOS, 2006).

Sob essa visão, o SUS estabeleceu a Política Nacional de Medicamentos (PNM), como parte essencial da Política Nacional de Saúde, através da Portaria MS/GM n° 3.916, de 30 de outubro de 1998, garantindo as necessárias segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos, a promoção do uso racional e o acesso da população àqueles considerados essenciais, bem como estabelecendo as atribuições de cada esfera governamental quanto ao fornecimento de fármacos (PARANHOS, 2007).

Dessa forma, o fornecimento de medicamentos pelo Poder Público à população passou a observar a Política Nacional de Medicamentos:

A dispensação de medicamentos à população, formulado através da Política Nacional de Medicamentos, opera-se de forma descentralizada, do seguinte modo: aos Municípios, competem os medicamentos de farmácia básica (de uso comum da população); aos Estados, os medicamentos especiais (considerados de alto custo ou para tratamentos contínuos), e à União os medicamentos e tratamentos estratégicos (como o Saúde da Mulher e o de Tabagismo). Juntos, compõe a chamada lista de medicamentos essenciais do SUS, integrantes de uma política fundamental para garantia de acesso a medicamentos seguros, eficazes e custos-efetivos, voltados ao atendimento das doenças mais prevalentes e que sejam disponíveis em quantidades adequadas (OHLAND, 2010, p. 33).

Segundo o autor, observa-se que as mencionadas listas de medicamentos são atualizadas periodicamente conforme a necessidade da população, podendo haver inclusão ou supressão de fármacos.

Atualmente, em observância a Política Nacional de Medicamentos, o fornecimento de remédios à população foi regulamentado pelo SUS através da Portaria MS/GM n° 2.981, de 26 de novembro de 2009, atualizada pela Portaria MS/GM 4.217, de 28 de dezembro de 2010, as quais aprovam o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica, estabelecendo a lista de medicamentos dispensados à população e os subdividindo em Grupo 1, 2 e 3, conforme a competência ali definida a cada ente federado.

Conforme determinam os artigos 9° a 13 da Portaria MS/GM n° 2981/09, os medicamentos descritos no Grupo 1 (maior complexidade da doença a ser tratada ambulatorialmente, refratariedade ou intolerância a primeira e/ou a segunda linha de tratamento, medicamentos que representam elevado impacto financeiro para o Componente e medicamentos incluídos em ações de desenvolvimento produtivo no complexo industrial da saúde) ficaram sob a responsabilidade da União; os tratamentos previstos no Grupo 2 (menor complexidade da doença a ser tratada ambulatorialmente em relação aos elencados no Grupo 1 e refratariedade ou intolerância a primeira linha de tratamento) sob a responsabilidade dos Estados e Distrito Federal; e o Grupo 3 (fármacos constantes na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais vigente e indicados pelos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, publicados na versão final pelo Ministério da Saúde, como a primeira linha de cuidado para o tratamento das doenças contempladas neste Componente) fica sob responsabilidade dos Municípios e Distrito Federal.

Como se pode perceber, em que pese se tratar de sistema únicode saúde, cada esfera governamental assumiu obrigações dentro do mencionado sistema para melhor eficiência no atendimento das políticas públicas de saúde, observando-se, para tanto, a condição de gestão em que cada ente federado está enquadrado, os quais deverão cumprir funções e competências específicas e articuladas entre si, caracterizando os três níveis de gestão (CASTRO; LINO; VIEIRA, 2008).

Todavia, denota-se que, considerando a descentralização estabelecida pelo SUS, a qual determina a“transferência de atribuições em maior ou menor número dos órgãos centrais para os órgãos locais” (CRETELLA JÚNIOR, 1993, p. 4346), a gestão do sistema de saúde caberá essencialmente aos estados e municípios, os quais, na esfera administrativa, dispensarão medicamentos àqueles que comprovarem, através de laudo médico, a necessidade de seu uso, havendo transferência de recursos financeiros pela União (OHLAND, 2010).

Em verdade, conforme destaca este autor (p. 33), o gestor municipal “passou a assumir imediata e paulatinamente a plenitude da gestão das ações e serviços de saúde oferecidos em seu território, sendo considerado atualmente o principal responsável pela saúde pública da população”. Desta forma, quando o ente municipal não possuir todos os serviços de saúde, irá pactuar com outros municípios da sua região, de forma a atender integralmente a demanda pela saúde.

Assim, com base no exposto, percebe-se que a dispensação de fármacos se dá mais ativamente nas Secretarias de Saúde Municipais, vez que são os órgãos públicos mais próximos da população, recebendo, para tanto, subsídios da União e dos Estados. Contudo, deve-se ter claro que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possuem competência solidária para o fornecimento de medicamentos à população, conforme previsão constitucional anteriormente analisada no presente trabalho monográfico.

Realizadas as considerações acerca do sistema público de fornecimento de medicamentos, passa-se a analisar a sua não cobertura total e a teoria da reserva do possível.

2.4 A RESERVA DO POSSÍVEL E A NÃO COBERTURA TOTAL DO ESTADO PARA O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS

A teoria da reserva do possível surgiu na Alemanha, no início dos anos de 1970, defendendo a “limitação dos direitos sociais a prestações materiais de acordo com as capacidades financeiras do Estado, vez que seriam financiados pelos cofres públicos” (OHLAND, 2010, p. 30).

Desde então ficou associada à ideia de que a efetivação dos direitos sociais prestacionais estaria condicionada à real disponibilidade de recursos públicos, “disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público” (SARLET; FIGUEIREDO, in SARLET; TIMM, 2008, p. 29).

Conforme Olsen (2008, p. 182), a reserva do possível “costuma estar relacionada com a necessidade de se adequar às pretensões sociais com as reservas orçamentárias, bem como a real disponibilidade de recursos em caixa, para a efetivação das despesas”.

Portanto, a reserva do possível pode ser considerada como uma limitadora dos direitos fundamentais, possibilitando que o Estado forneça os serviços públicos seguindo os preceitos da razoabilidade e proporcionalidade (LEIVAS, 2006).

Significa dizer que o Estado deverá fazer uma ponderação entre os danos causados e os resultados pretendidos (critério da proporcionalidade), bem como adequando o sentido entre os motivos, os fins e os meios, observando-se os valores fundamentais da organização estatal, a segurança, a paz, a ordem, a solidariedade e a justiça (critério da razoabilidade) (OHLAND, 2010).

Partindo dessa premissa, Gabardo (2003) leciona que, em razão de se tornar ingovernável um Estado cuja Constituição abrange uma ampla dimensão de direitos a serem concretizados, torna-se necessário flexibilizar o regime, garantindo somente aquilo que é possível de ser efetivado.

Para além disso, Sarlet (2009) defende que a denominada reserva do possível possui uma dimensão tríplice que compreende:

a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda intima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade (SARLET, 2009, p. 287).

Dessa feita, indaga-se acerca da efetividade do fornecimento de medicamentos pelo Estado frente à reserva do possível, vez que a mencionada teoria leva a crer que a dispensação de fármacos à população, decorrente do direito social à saúde, deve observar determinados critérios, dentre os quais o custo que ela representa para os cofres públicos.

De fato, apesar de existir verbas públicas especificamente destinadas ao financiamento dos direitos fundamentais, dentre os quais os direitos sociais, essas deixam de ser suficientes para a efetivação daqueles direitos ou acabam por não serem aplicadas para a sua finalidade. Nesse ponto, é indiscutível que os direitos sociais dependem de fatores econômicos e disponibilidade de verbas, sendo, portanto, a escassez de recursos uma verdadeira limitadora dos direitos de cunho prestacional (KELBERT, 2011).

Constata-se, portanto, que o fornecimento de medicamentos à população se mostra insuficiente, ou até mesmo inexistente em alguns casos, haja vista que o Estado declara não possuir verba pública suficiente para cobrir os gastos provenientes da mencionada dispensação farmacêutica, alicerçando-se, para tanto, na até então mencionada reserva do possível (SOUZA, 2010).

É notório que “a administração pública não têm recursos financeiros suficientes para atender toda a demanda por medicamentos que a população necessita” (CARVALHAL, 2005, p. 61). Todavia, conforme elucida Kelbert (2011, p. 76), “ao conceber os direitos sociais como direitos fundamentais, o Estado brasileiro assumiu um compromisso para com a sua efetivação, o que significa que deve pautar sua atividade com vistas à realização daqueles direitos”.

Nessa perspectiva, Achoche (2008, texto digital) ao tratar sobre o direito à saúde, o qual engloba o fornecimento de medicamentos, assevera que a norma constitucional deve prevalecer sob a reserva do possível:

No que tange ao princípio da Reserva do Possível, temos certo que, nada obstante a carência de recursos públicos orçamentários – notadamente quando tomamos em conta a abrangência do nosso país e a baixa renda de sua população – tal princípio não pode prevalecer sobre a tutela garantidora do direito à saúde, uma vez que esta se mostra resguardada constitucionalmente, de modo que cabe ao Poder Público viabilizar um meio de dar assistência a todos e, com mais razão, a cada um dos cidadãos brasileiros (bem como dos estrangeiros residentes no país), uma vez que o direito à saúde se demonstra como direito fundamental e, como tal, deve ser respeitado e acima de tudo efetivado, sob pena de o inconstitucionalidade, ainda que por omissão (ACHOCHE, 2008, texto digital).

De acordo com a convicção deCardoso (2010, texto digital), deve-se ter claro que “a Constituição Federal em momento algum limita o direitos a saúde à falta de verba orçamentária. De modo contrário, credita a essa garantia a mais ampla e absoluta guarda”.

No entender do Min. Luiz Fux o que se deve ter em conta é a máxima efetividade da Constituição:

"a escassez de recursos públicos, em oposição à gama de responsabilidades estatais a serem atendidas, tem servido de justificativa à ausência de concretização do dever-ser normativo, fomentando a edificação do conceito da 'reserva do possível'. Porém, tal escudo não imuniza o administrador de adimplir promessas que tais, vinculadas aos direitos fundamentais prestacionais, quanto mais considerando a notória destinação de preciosos recursos públicos para áreas que, embora também inseridas na zona de ação pública, são menos prioritárias e de relevância muito inferior aos valores básicos da sociedade, representados pelos direitos fundamentais. O MIN. CELSO DE MELLO discorreu de modo lúcido e adequado acerca do conflito entre deficiência orçamentária e concretização dos direitos fundamentais: 'Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à 'reserva do possível' (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, 'The Cost of Rights', 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. (...) Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da 'reserva do possível' – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade" (Recurso Especial nº 811.608/RS, Superior Tribunal de Justiça, Relator: Ministro Luiz Fux. Julgado em 15/05/2007, publicado em 04/06/2007).

Apontando uma solução para o problema, Dauve (2009, texto digital) ensina que “o Estado não pode eximir-se das suas obrigações relativas aos fornecimentos de medicamentos. Deve, pois, reorganizar a destinação das verbas públicas, priorizando sua aplicação em áreas que favoreçam o direito à vida”.

E mais, Paranhos (2007, p. 158) defende que “não é por falta de normatização que a assistência à saúde, em especial o fornecimento gratuito de medicamentos, é escassa, mas talvez por incompetência dos gestores e pela falha na implementação da Política Nacional de Medicamentos”.

Destarte, contextualizada a reserva do possível e a não cobertura total do Estado para o fornecimento de medicamentos, parte-se para a análise da intervenção judicial no tocante à dispensação de medicamentos pelo Estado.

2.5 A INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO NO FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO PODER PÚBLICO

Atualmente, a sistemática de distribuição de medicamentos à população têm se mostrado ineficaz, já que inúmeros são os casos em que a população não recebe os remédios que necessita. Assim, “o Estado usa as mais variadas justificativas para se furtar à obrigação de prestar de forma completa a assistência à saúde” (PARANHOS, 2007, p. 158).

De tal modo, a precariedade do sistema público de saúde, aliada ao insuficiente fornecimento de remédios gratuitos, ocasionou o nascimento do fenômeno da “judicialização da saúde”. Nas palavras de Ordacgy (2007):

A notória precariedade do sistema público de saúde brasileiro, bem como o insuficiente fornecimento gratuito de medicamentos, muitos dos quais demasiadamente caros até paras as classes de maior poder aquisitivo, têm feito a população civil socorrer-se, com êxito, das tutelas de saúde para a efetivação do seu tratamento médico, através de provimentos judiciais liminares, fenômeno esse que veio a ser denominado de “judicialização” da Saúde(ORDACGY, 2007, texto digital).

Com efeito, Cardoso (2010, texto digital) ressalta que as demandas judiciais para a concessão de medicamentos são cada vez mais frequentes, sendo uma consequência nítida da “deficiência do sistema de saúde proposto pelo Estado, que fornece apenas alguns medicamentos previamente listados, e, à baixa renda da maioria da população, que, com o avanço da medicina, não possui condições financeiras de buscar os melhores tratamentos para as suas doenças”.

Dauve (2009, texto digital) explica que “o direito à saúde não se realiza na prática. Por não ser efetivamente assegurada pelo Poder Executivo, transfere-se ao Poder Judiciário a incumbência de determinar a sua satisfação em casos concretos levados a sua apreciação”.

Nesse sentido, Paranhos (2007) elucida:

Diante da deficiência do Estado em disponibilizar à sociedade um serviço público de saúde pleno, deve o interessado buscar no processo constitucionalizado a elaboração de provimentos judiciais, de forma a obrigar a Administração Pública a cumprir o dever que lhe foi imposto pela norma constitucional, visando alcançar o mesmo resultado prático que decorreria do adimplemento, se eficientes as políticas públicas voltadas para esse fim (PARANHOS, 2007, p. 171).

Aduz Souza (2010) que cabe ao Judiciário determinar que o Estado efetive o direito à saúde, fornecendo os medicamentos que a população tanto necessita, considerando a essencialidade do mesmo, bem como o bem maior que ele representa: a vida. Portanto, aqueles que necessitam de fármacos indispensáveis para a manutenção de sua vida possuem a legitimidade para buscá-los na via judicial.

Nessa perspectiva:

Houve um vertiginoso crescimento de demandas judiciais cujo objetivo é obrigar o Estado ao fornecimento de determinadas prestações, tanto em ações individuais quanto em coletivas, e no qual, o Poder Judiciário vem assumindo papel decisivo na área da saúde pública, por conta da garantia constitucional da inafastabilidade da apreciação judicial de lesão ou ameaça a direito (OHLAND, 2010, p. 34).

Na prática, a “intervenção do Poder Judiciário, mediante determinações à Administração Pública para que forneça gratuitamente medicamentos em uma variedade de hipóteses, procura realizar a promessa constitucional de prestação universalizada do serviço de saúde” (BARROSO, 2007, p. 3).

Em síntese, Cardoso (2010) ressalta que as ações de concessão de medicamentos têm sido amplamente acolhidas em juízo, alicerçando-se, para tanto, na proteção constitucional do direito à saúde, a qual supera qualquer obstáculo imposto por leis ou atos normativos da Administração Pública, bem como na legitimidade passiva dos entes políticos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) para o fornecimento de medicamentos à população:

Portanto, há legitimidade passiva dos entes políticos (União, Estados e Municípios) nas ações de medicamentos, uma vez que reside sobre eles a responsabilidade solidária. Ademais, as discussões acerca do ente pagador não devem poluir o processo, muito menos dificultar o acesso do cidadão ao tratamento que lhe salve a vida (CARDOSO, 2010, texto digital).

De tal modo, como forma de efetivar o direito à saúde, o Judiciário “poderá, inclusive, determinar o bloqueio de valores nas contas públicas e aplicação de multa em caso de descumprimento, visando assegurar o resultado prático da ordem judicial, conforme previsão do artigo 461, §5º, do CPC” (DAUVE, 2009, texto digital).

3. CONCLUSÃO

É cediço que atualmente a população brasileira não possui recursos próprios que permitam a aquisição de medicamentos para o tratamento de suas enfermidades. Diante disso, nota-se que surge a necessidade de socorrerem-se ao Estado na esperança que suas doenças sejam tratadas a tempo, ou que, inexistindo cura, seja garantida uma qualidade de vida por meio do tratamento medicamentoso.

O direito à saúde, elevado à categoria dos direitos fundamentais, por estar interligado ao direito à vida e à existência digna, representa um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, sendo considerado pela doutrina e legislação pátria uma obrigação do Estado e uma garantia de todo o cidadão.

Entretanto, a concretização do direito à saúde, por meio da distribuição de medicamentos pelo Poder Público à população, tem se demonstrado ineficiente, visto que inúmeros são os casos em que o enfermo vem a falecer ou tem seu quadro clínico agravado em razão da omissão do Estado no fornecimento de medicação que possibilitaria o adequado tratamento daquela enfermidade.

Destarte, o presente artigo ocupou-se em apresentar os direitos sociais elencados no art. 6º da pela Constituição Federal, sobretudo, o direito social à saúde, tornando-se notório que esse deve ser plenamente efetivado pelo Estado, por meio de políticas públicas. Ainda, constatou-se a responsabilidade solidária dos entes públicos para o fornecimento de medicamentos, baseando-se, para tanto, nos artigos 23 e 196 da Carta Magna.

Por consequência, realizou-se breves considerações acerca do sistema público de dispensação de fármacos, vislumbrando-se que, ante à descentralização de poderes estabelecida pelo SUS, o gestor municipal será o maior responsável pela saúde pública da população nesse aspecto. Não obstante, enfatizou-se a reserva do possível e a não cobertura total do Poder Público para o fornecimento de medicamentos, compreendendo-se que, apesar de existir a limitação de recursos para a distribuição de medicação à população, a assistência à saúde é a garantia mais absoluta, cabendo ao Estado a reorganização das verbas públicas para a sua efetivação. De tal modo, constatou-se que a intervenção do Poder Judiciário tem sido no sentido de assegurar ao cidadão enfermo e carente de recursos o fornecimento de medicamentos pelo Estado.

Diante da análise da matéria tratada neste artigo, pode-se concluir que, na medida em que a Carta Federativa possibilita o fornecimento de medicamentos de forma gratuita à população, em decorrência lógica ao direito à vida e saúde, cabe aos Entes Públicos a implementação e efetivação das políticas públicas de saúde, possibilitando aos enfermos uma vida justa e digna.

4. REFERÊNCIAS

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[1] Introduzida pela Emenda Constitucional nº 64, de 04 de fevereiro de 2010.

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