Responsabilidade da empresa tomadora em caso de terceirização de trabalho em plataforma digital

Responsabilidade da empresa tomadora em caso de terceirização de trabalho em plataforma digital

Análise da responsabilidade subsidiária da empresa tomadora de serviços no caso de contratação de trabalhador por aplicativo de plataforma digital.

Questão que tem os Tribunais do Trabalho enfrentado e que parece que ainda não se chegou a uma solução definitiva, diz respeito à natureza do contrato de prestação de serviço por meio de aplicativos de plataforma digital, pois para alguns essa modalidade de contração é diversa da terceirização, não atuando a empresa como tomadora de serviços, pois se trataria de relação de natureza civil, limitando-se a promover o agenciamento e intermediação mercantil de negócios.

Não comungo, com todo respeito, desse entendimento.

De acordo com a doutrina [1], a expressão terceirização resulta de neologismo oriundo da palavra terceiro, compreendido como intermediário, interveniente. É, pois, para o Direito do Trabalho: o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhistas, que se preservam fixados com uma entidade interveniente. A terceirização provoca uma relação trilateral em face da contratação de força de trabalho no mercado capitalista: o obreiro, prestador de serviços, que realiza suas atividades materiais e intelectuais junto à empresa tomadora de serviços; a empresa terceirizante, que contrata este obreiro, firmando com ele os vínculos jurídicos trabalhistas pertinentes; e a empresa tomadora de serviços, que recebe a prestação de labor, mas não assume a posição clássica de empregadora desse trabalhador envolvido. 

Gustavo Filipe Barbosa Garcia[2], lembra que na terceirização: entre o empregado e o empregador (que é uma empresa prestadora de serviços) verifica-se a relação de emprego, ou seja, o contrato de trabalho (art. 422, caput, da CLT).

O vínculo entre o tomador (quem terceirizou alguma de suas atividades) e a empresa prestadora decorre de outro contrato, de natureza civil ou comercial, cujo objetivo é a prestação do serviço empresarial.

Francisco Ferreira Jorge Neto, Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante e Letícia Costa Mota Wenzel [3], ao comentarem o fenômeno à luz da Lei 13.467/2017, entendem que “com a terceirização, a empresa passa a atribuir parte de suas atividades para outras empresas. Ou seja, se transfere a realização de parte do processo de produção para a responsabilidade de outra empresa”.

Na doutrina comparada, Eduardo Álvarez [4], define “la tercerización como una nueva forma de organizar el proceso productivo basado en una técnica de gestión que consiste en contratar o subcontratar empresas externas, las cuales obran como proveedoras, para llevar a cabo las múltiples facetas o actividades de la empresa”.

Para esse autor, “el producto final de esas empresas no es ya un epílogo de una actividad organizada con unidad de gestión en un ámbito geográfico determinado, sino que es el resultado de la interrelación de varias empresas, más allá de sus dimensiones diferenciadas. Incluso en algunas facetas de la realidad económica, la descentralización ha llegado a ser tan intensa que puede sostenerse la existencia de empresas dependientes”.

Assim, no regime de trabalho por aplicativo de plataforma, existe essa mesma dinâmica, qual seja, a contratação de trabalhadores, quase sempre entregadores ou transportadores de pessoas - como a IFOOD e a UBER – por uma empresa prestadora que os coloca à disposição de outra que se apropria dos frutos do labor por eles prestado. Por conseguinte, o fato de ser o labor prestado por meio de aplicativo de plataforma digital, não desnatura a relação de terceirização, pois em verdade a empresa tomadora transfere sua atividade, fim ou meio, total ou parcialmente, a outra - a prestadora - havendo entre elas um contrato de natureza civil, porém, entre o trabalhador e prestadora, parece não existir dúvida que o vinculo é de trabalho humano subordinado, especialmente pela inserção do trabalhador na dinâmica do empreendimento da empresa prestadora de serviço por aplicativos, evidenciando o elemento subordinação objetiva, e não raro até mesmo sob a perspectiva jurídica, pois a maioria desses trabalhadores labora sob o comando direto da contratante que determina o tipo de labor, o local em que deve ser prestado, e quase sempre tendo eles que permanecerem logados com contratante que não raro os pune em caso de descumprimento desses deveres. e, portanto, estão submetidos do poder diretivo da empresa que se apropria da sua força laboral[5]. 

Desse modo, o que se precisa perquirir é se mesmo nessa modalidade de labor, a tomadora responde subsidiariamente, por eventuais direitos do trabalhador inadimplidos pela prestadora, ainda que o labor seja prestado por regime de plataforma.

É isso que se pretende demonstrar neste modesto artigo.

Responsalidade subsidiária da tomadora de serviço em regime de plataforma digital

Deveras, e nos termos do previsto no art. 10, § 7º da Lei 6.019/74, na redação dada pela Lei 13.429/2017:

§ 7º A contratante é subsidiariamente responsável pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que ocorrer o trabalho temporário, e o recolhimento das contribuições previdenciárias observará o disposto no art. 31 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991.

Veja-se que a norma não faz distinção, nem poderia, sob pena de violar-se o que previsto nos arts. 3º, inciso IV e 5º da Lei Consolidada -0 CLT e as normas da Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho – OIT e ao constante do art. 6º, Parágrafo único da Lei Consolidada – CLT, para efeito da responsabilidade subsidiária da tomadora, se o labor é contratado pelo regime comum da Lei Consolidada – CLT ou se por meio de plataforma, apenas prevendo que o tomador será subsidiariamente responsável pelas obrigações inadimplidas pela contratada – prestadora. Por conseguinte, onde ou quando a lei não discrimina ou excepciona, não é dado ao particular fazê-lo - princípio basilar de hermenêutica jurídica.

Como averba Carlos Maximiliano [6], ao discorrer sobre o brocardo jurídico "ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus: onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir", porque quando o texto dispõe de modo amplo, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo a todos os casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral prevista explicitamente; não tente distinguir entre as circunstâncias da questão e as outras; cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem dispensar nenhuma das expressas. 

Assim, se legislador ao prever a responsabilidade subsidiária da tomadora de serviços não excepcionou ou fez qualquer distinção quanto ao tipo de trabalho ou regime contratação, não pode o julgador, enquanto intérprete aplicador fazê-lo, sob pena inovar criando uma nova norma, o que não é permitido pela ordem constitucional vigente - o art. 2º da Carta de 1988 -, além de discriminar o trabalhador apenas pelo fato de laborar sob regime de plataforma que o Estado até o momento não disciplinou por lei, devendo a norma constante do art. 10, § 7º da Lei 13.429/2017 ser interpretada teleológica e sistematicamente à luz do princípio constitucional da igualdade e não discriminação, previsto nos arts. 3º, inciso IV e 5º do Texto Maior e no Parágrafo Único do art. 6º da Lei Consolidada – CLT, este prevendo:

Art. 6º Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.

Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.

E como pondera Rodrigo Careli [7]:  as plataformas apresentam uma nova forma de organização do trabalho, mas não têm a capacidade de alterar a realidade das coisas. Uma pessoa que se ativa em uma plataforma para buscar trabalho automaticamente transforma essa empresa em intermediadora da mão de obra. O trabalhador continua sendo trabalhador, não importando o nome que se dê a ele. Se por acaso essa empresa controla a prestação desses serviços e o trabalhador não tem nenhuma autonomia em relação ao seu suposto negócio e modo de trabalhar, ela é empregadora, e o trabalhador é empregado, nada alterando o fato de o instrumento de intermediação ser digital, a empresa se dizer do ramo tecnológico e rotular o trabalhador de parceiro”.

Ora, se é contratado por interposta pessoa – prestadora – aquela que se apropria do labor e dele se beneficia - a tomadora -, responde pelo adimplemento das parcelas decorrentes do contrato de trabalho, pois, com todo respeito, está-se ante autêntica terceirização de mão de obra.

Desse modo, sendo o trabalho um valor social (art. 1º, inciso IV do Texto Maior), que dignifica o homem, como lembra o Papa João Paulo II[8], independentemente do regime em que é prestado e como o trabalhador é contratado, deve ser protegido, não podendo ser discriminado por interpretação restritiva do que previsto no art. 10, § 7º da Lei 13.429/2017 quanto à responsabilidade da tomadora em caso de inadimplemento dos direitos decorrentes do vinculo de emprego, pois a interpretação restritiva da norma viola o princípio da isonomia previsto nos arts. 3º, inciso IV e 5º da Carta Suprema e 6º, Parágrafo Único da Lei Consolidada – CLT, além de atentar contra as normas previstas na Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, nomeadamente o art. 1º, item 1, alínea “b” prescrevendo:

Para fins da presente convenção, o termo "discriminação" compreende:

a) Toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, côr, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprêgo ou profissão;

b) Qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Membro Interessado depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados. 

Vale lembrar, também, por importante, que embora ainda não exista Normativa da OIT a respeito do trabalho em plataforma, referida Organização publicou um novo relatório sobre Lei e Prática intitulado Realizing Decent Work in the Platform Economy[9], no qual assinala “um marco crucial no processo que pode levar a uma nova norma internacional do trabalho sobre trabalho decente na economia de plataformas. Ela será discutida nas Conferências Internacionais do Trabalho de 2025 e 2026”, a evidenciar que se encontra preocupada com os direitos dos trabalhadores por essa nova forma de labor, que foi sobremaneira acentuada com e depois da pandemia da covid-19. 

Por último, mas não menos importante, a Lei 13.429/2017 visou não apenas disciplinar o trabalho temporário, mas também aquele prestado pelo regime de terceirização. Tanto assim, que consta de sua ementa:

Altera dispositivos da Lei n o 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros (sem destaque no original).

Ora se nenhuma norma deve ser interpretada divorciada se sua vocação institucional (finalidade), interpretar-se o contido no art. 10, § 7º da aludida Lei, viola não apenas sua vocação institucional – finalidade ou objetivo – mas também a própria intenção do legislador = mens legis[10] – o que, com todo respeito, fere também o que previsto nos arts. 8º do Código de Processo Civil e 5º da LINDB, este prevendo que:

Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. (destaquei).

Afinal, e como lembra, mais  uma vez,  Carlos Maximiliano[11]: Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém.

Para o aludido jurista, tudo é passível de interpretação, desde a busca pela significação de conceitos e intenções, fatos e indícios, até mesmo o silêncio.

E no caso da reponsabilidade subsidiária da tomadora, na hipótese de contratação de trabalhador por interposta pessoa, com transferência de parte da atividade econômico-produtiva da tomadora, caracterizado o regime de terceirização, inclusive, quando o labor é contratado e prestado por meio de plataformas, pois a norma de regência não faz nenhuma distinção nem excepcionou quanto a forma ou o regime de contratação ou da prestação laboral.

Assim, demonstrada a escolha pela empresa do regime de trabalho – por aplicativo de plataforma no seu exclusivo interesse – responde subsidiariamente pelas obrigações inadimplidas pela prestadora, até mesmo por culpa in eligendo e in vigilando pelos danos sofridos pelo trabalhador em face do inadimplemento dos direitos oriundos do contrato de trabalho pela prestadora, nos termos do previsto no art. 942 e 927 do Código Civil e 223-E da Lei Consolidada – CLT, aplicáveis por analogia, nos termos autorizados pelo art. 8º do aludido Diploma consolidado  - CLT.

Notas

[1] GODINHO DELGADO, Mauricio. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2019, p. 540 e seguintes.    

[2] GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Manual de Direito do Trabalho, 8ª edição. São Paulo: Editora Método, 2015, p. 209.

[3] JORGE NETO, Francisco Ferreira et al. “A terceirização, o Direito do Trabalho e a Lei 13.429/17”. Disponível em: < https://genjuridico.jusbrasil.com.br/artigos/456>. Acesso em 25.07.2024.

[4] ÁLVAREZ, Eduardo. “Tercerización, Descentralización productiva y Derecho de Trabajo”. In: Revista Derecho del trabajo, 2012, citado por Daniel Alejandro Ponce. Disponível em: < file:///D:/Ponce,%20Daniel%20Alejandro.pdf>. Acesso em 25.07.2024.

[5] LIMA FILHO, Francisco das C. “Relação de emprego por aplicativos de plataformas digitais”. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-jan-20>. Acesso em 25.4.2024. 

[6] MAXIMILIANDO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 17ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 247.

[7] LACERDA CARELI, Rodrigo. “O TRABALHO EM PLATAFORMAS E O VÍNCULO DE EMPREGO: DESFAZENDO MITOS E MOSTRANDO A NUDEZ DO REI”. Disponível em: <https://sistemas.trt3.jus.br/bd-trt3/bitstream/handle/11103/70552/Revista%20TRT>. Acesso em 21.07.2024.

[8] PAPA JOÃO Paulo II. Carta Encíclica “LABOREM EXERCENS”. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091981>. Acesso em 21.07.2024.

[9] Disponível em: <https://www.ilo.org/pt-pt>. Acesso em 21.7.2024.

[10] DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 3ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. vol. J-P. p. 275. 

[11] MAXIMILIANDO, Carlos. Ibidem. 

Sobre o(a) autor(a)
Francisco das C. Lima Filho
Francisco das C. Lima Filho Desembargador do TRT24a Região, Mestre e doutro em Direito Social UCLM - Espanha.
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