Tributação sobre operações envolvendo criptoativos: controvérsias acerca de sua natureza jurídica sob a perspectiva tributária

Tributação sobre operações envolvendo criptoativos: controvérsias acerca de sua natureza jurídica sob a perspectiva tributária

Aborda a relevância da definição da natureza jurídica atribuída às moedas virtuais pelo ordenamento jurídico brasileiro, para fins de definição da incidência tributária sobre suas atividades.

Em 2008, o ambiente de desconfiança por parte de investidores e agentes econômicos,  causado pela crise econômica mundial, propiciou o debate acerca de práticas adotadas por instituições financeiras e o estímulo a projetos de intervenção estatal mínima na economia. Este momento, aliado à expoente evolução tecnológica que protagoniza o século em que vivemos, ensejou a criação de uma nova moeda universal, neutra, e independente de regulação do governo ou de um banco central: o Bitcoin. [1]

Assim, em 2009, entrou em funcionamento a primeira criptomoeda do mundo, produzida a partir de códigos matemáticos  complexos em uma tecnologia distribuída, que usa a internet para a concretização do registro das operações, sem a necessidade de um intermediador, seja ele governamental ou privado. Ou seja, uma moeda independente e universal – portanto, aceita por todos –[2], que não sofre restrições do Estado.

A intenção de seu criador é que ela funcione socialmente como moeda, meio de troca, unidade de conta e reserva de valor, paralelamente à moeda oficial (de curso forçado) emitida pela autoridade monetária central do Estado Soberano. [3]

Levando em consideração o fato de a moeda ser um instrumento de extrema relevância no que tange à soberania estatal, as consequências da criação deste ativo independente se tornam pauta para discussão de todas as nações, que buscam regular as relações jurídicas decorrentes das atividades que as envolvam, de modo a preservar a atuação e regulação estatal na economia e a devida arrecadação de receita pública, além de evitar que sejam uma ferramenta para a prática de atos ilícitos.

Ainda que nenhum ativo criptográfico cumpra amplamente todas as funções do dinheiro público – quais sejam: reserva de valor, unidade de conta e meio de troca – a possibilidade de atribuição de natureza jurídica equivalente à de moeda fiduciária, às criptomoedas, gera preocupação acerca do impacto de sua valorização para a política monetária, uma vez que pode, potencialmente, afetar a inflação.

Atualmente, as criptomoedas não são comumente utilizadas como unidade de conta, em razão da volatilidade deste mercado. Ademais, como reserva de valor, moedas virtuais são altamente especulativas, não obstante o mercado de investimento no setor ocupar espaço relevante na economia atual.

Segundo dados da Secretaria da Receita Federal do Brasil, observa-se, no país, um aumento significativo do mercado de criptoativos nos últimos anos. O órgão fazendário revelou que em 2017 os clientes de exchanges superaram o número de usuários inscritos na bolsa de valores de São Paulo. [4]

Porém, enquanto meio de troca, as criptomoedas cumprem cada vez mais a função social monetária. A possibilidade de utilização de criptomoedas como pagamento em operações de compra e venda já é plausível na realidade atual do mercado.

Empresas do setor buscam soluções para efetivar a solução: como a Visa, que anunciou, em setembro de 2021, o desenvolvimento de um sistema que busca facilitar o pagamento e recebimento de valores em criptomoedas, stablecoins e moedas digitais de Bancos Centrais. [5]

A criação do Cartão pré-pago “Crypto.com Coin”, da exchange de criptomoedas Crypto.com, possibilita o pagamento de bens e serviços em moedas digitais em qualquer estabelecimento que aceite a bandeira Visa. A conversão para moedas fiduciárias é automática, de modo que o estabelecimento já recebe em reais. [6]

Pode-se dizer que o bitcoin, enquanto meio de pagamento, funciona, na prática, de forma bastante similar às moedas fiduciárias. Daí porque, coloquialmente, seria uma forma de dinheiro, com a diferença em relação às moedas fiduciárias reguladas oficialmente, por ser puramente digital e não ser emitido por nenhum governo [7].

No cenário atual da maioria dos países, as moedas virtuais não são tratadas como equivalentes às moedas fiduciárias. No Brasil, o que se tem positivado no ordenamento jurídico se mostra insuficiente para concluir o rumo que o país tomará diante do assunto.

No entanto, as normas já reguladas pelos órgãos fazendários brasileiros acerca dos tributos que recaem sobre as atividades que envolvem estes ativos digitais atribuem a estas moedas um tratamento equiparado ao de um bem, e não ao de uma moeda, meio de pagamento ou ativo mobiliário, uma vez que são tributados a título de ganho de capital pelo Imposto de Renda, diferentemente do que ocorreria caso fosse identificada natureza fiduciária das criptomoedas.

Portanto, atualmente, os criptoativos são tributados na ocasião de sua alienação, a título de ganho de capital (considerado pela diferença entre o valor de alienação e o respectivo custo de aquisição) [8] pelo Imposto de Renda, segundo alíquotas progressivas estabelecidas em função do lucro. [9]

Nesse sentido, estabelece o mais recente Manual de Perguntas e Respostas do Imposto de Renda de Pessoa Física de 2021 (DIRPF):

“Os criptoativos não são considerados moeda de curso legal nos termos do marco regulatório atual. Entretanto, podem ser equiparados a ativos sujeitos a ganho de capital e devem ser declarados pelo valor de aquisição na Ficha Bens e Direitos” [10]

Além disso, em consonância com o mais recente entendimento da Receita Federal, o ganho de capital apurado na alienação de criptomoedas, quando uma é diretamente utilizada na aquisição de outra, ainda que a criptomoeda de aquisição não seja convertida previamente em real ou outra moeda fiduciária, é tributado da mesma forma que na realização. [11]

Não obstante, o ordenamento jurídico brasileiro não trata da possibilidade de ser reconhecida sua natureza enquanto moeda estrangeira – hipótese de incidência do IOF-câmbio nas referidas operações.

A incidência do IOF sobre operações com títulos e valores mobiliários, por sua vez, pode se enquadrar nas operações envolvendo criptoativos como os tokens digitais, uma vez que podem ser reconhecidos como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), nos termos do art. 2°, IX, da Lei n° 6.385/76.

Não obstante a Receita Federal ter esclarecido que os criptoativos não são considerados ativos mobiliários nos termos do marco regulatório atual, a CVM elucida, por meio de Ofício Circular, que as operações conhecidas como Initial Coin Offerings (ICOs) podem ser compreendidas como captações públicas de recursos, tendo como contrapartida ao investidor a emissão de ativos virtuais, também conhecidos como tokens ou coins. Dessa forma, a depender do contexto econômico de sua emissão e dos direitos conferidos aos investidores, determinadas ICOs podem se caracterizar como ofertas públicas de valores mobiliários, e, portanto, tais ativos virtuais podem se enquadrar na definição ampla de valores mobiliários positivada no inciso IX do art. 2o, da Lei no 6.385/1976, sujeitando-se à legislação e à regulamentação específicas. [12]

Vale ressaltar que há ICOs que não se encontram sob a competência da CVM, por não se configurarem como ofertas públicas de valores mobiliários. [13]

Mesmo diante das disposições supracitadas acerca da tributação sobre os criptoativos, o estudo de tal ferramenta ainda se demonstra insuficiente, de modo que sequer se sabe categorizá-la ao certo quanto à sua natureza jurídica, a fim de que seja dada a orientação adequada no âmbito do direito tributário para todas as funções que exerce.

O tema é controverso, se fazendo necessária a análise não só os pressupostos teóricos fundamentais, mas do cenário fático no qual está inserido o uso das moedas virtuais, para que, diante de sua função social, seja atribuída a natureza jurídica que adequará este ativo digital às categorias previstas na legislação tributária.

Sob a ótica da Fazenda Pública e da legislação tributária, é incontroverso o fato de que o crescimento exponencial e incontrolável do uso desse tipo de ativo digital faz surgir a necessidade de regulação por parte dos órgãos públicos, haja vista os princípios da legalidade e da segurança jurídica, além da consequente perda de receita pública ocasionada por um bem, moeda, mercadoria ou commodity sem regulação tributária própria.

Porém, o cenário atual leva a crer que os órgãos fazendários e financeiros não têm condições de uniformizar o tratamento a ser atribuído a essas moedas virtuais enquanto não for definida sua natureza jurídica.

Portanto, diante do atual contexto normativo brasileiro, pode se dizer que os criptoativos podem ser equiparados a ativos financeiros, sujeitos, portanto, à tributação sobre ganho de capital pelo Imposto de Renda. Além disso, as criptomoedas não são consideradas mercadorias, não estando, portanto, sujeitas à tributação pelo ICMS. Porém, há uma lacuna jurídica no que tange às operações em que os criptoativos são usados em atividades sobre as quais incidiria o IOF.

Dessa forma, ao tributar as criptomoedas como espécie de ativo financeiro, bem ou propriedade, a título de ganho de capital, ignora-se sua modalidade fiduciária.

Este cenário favorece a situação regular dos usuários que investem em criptomoedas, mas obsta a daqueles que usam como meios de pagamento, tendo em vista o elevado encargo de conformidade envolvido no rastreamento do custo de aquisição de cada criptomoeda utilizada pelo usuário, de modo que este dever instrumental acaba sendo muito oneroso ao contribuinte.

Outra dificuldade a ser enfrentada ao tributar as atividades envolvendo moedas virtuais se refere à sua valoração, uma vez que seu valor de mercado é volátil e não passível de controle pelas autoridades públicas. Ademais, sua cotação, por não ser oficial, pode variar conforme a exchange utilizada.

As dúvidas e dificuldades normativas a serem enfrentadas pelo contribuinte ao utilizar as criptomoedas, seja como investimento, seja como moeda de troca, podem desestimular tais operações, no caso de agentes mais conservadores, e prejudicar o desenvolvimento desta tecnologia, uma vez que o ordenamento jurídico não é claro quanto ao reconhecimento da capacidade dos criptoativos de se tornarem mecanismos tradicionais de pagamento.

Por outro lado, para os usuários adeptos ao mercado das moedas virtuais, a falta de uniformidade e clareza na normatização não impede que as atividades sejam exercidas, fato demonstrado pelo crescimento deste mercado nos últimos anos. Ao invés disso, limita o exercício das atribuições dos órgãos fazendários.

Devido às características fundamentais das moedas virtuais, como a confidencialidade decorrente da criptografia, a descentralização e a autonomia, as autoridades fazendárias podem encontrar dificuldades no que tange à fiscalização das atividades que envolvam este tipo de ativo, corroborando para a prática de operações ilícitas envolvendo criptoativos.

Não obstante, é suposta a prevalência do interesse em romper os obstáculos estabelecidos pela tecnologia, a fim de regulamentar tais atividades, tendo em vista que a operacionalização destes ativos financeiros pode se dar por exchanges fora do Brasil, de forma tão acessível quanto seria pelas exchanges nacionais, tendo em vista o ambiente virtual em que se encontram estas “moedas”, que usam a internet para a concretização do registro das operações.

Portanto, a vedação, ou até mesmo a limitação do uso das criptomoedas não se demonstra eficaz do ponto de vista fático, o que vem se comprovando com as diversas tentativas de normatização da situação no âmbito do poder legislativo e da organização interna da Fazenda Nacional.

Diante do volume crescente de transações e do potencial a ser explorado no mundo das moedas virtuais, a regulamentação torna-se imprescindível para garantir adequada incidência tributária das operações e a segurança jurídica das transações criptografadas, evitando o mercado paralelo não regulamentado pelo Estado, comprometendo a atividade tributária diante das diversas lacunas existentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] NIK, Markin. O que pode causar uma nova crise financeira? São Paulo. 20 set. 2016. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/moedas-sociais/. Acesso em: 06/09/2022.

[2] NEVES, Barbara das; CÍCERI, Pedro Bitor Botan. A Tributação dos Criptoativos No Brasil: Desafios das Tecnologias Disruptivas e o Tratamento Tributário Brasileiro. Revista Jurídica da Escola Superior de Advocacia da Oab-Pr, Paraná, v. 3, n. 3, p. 125-163, dez. 2018. Disponível em: http://revistajuridica.esa.oabpr.org.br/. Acesso em: 06/09/2022.

[3] MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro. Perspectivas jurídicas das criptomoedas: desafios regulatórios no Brasil. In: PARENTONI, Leonardo (Coord.); GONTIJO, Bruno Miranda; LIMA, Henrique Cunha Souza (Orgs.). Direito, tecnologia e inovação. Vol. 1. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

[4] BRASIL. CONSULTA PÚBLICA RFB No 06/2018. Disponível em http://receita.economia.gov.br/sobre/consultas-publicas-e-editoriais/consulta-publica/arquivos-eimagens/consulta-publica-rfb-no-06-2018.pdf/view. Acesso em: 06/09/2022.

[5] TOLOTTI, Rodrigo. Visa cria sistema que interliga blockchains para pagamentos com diferentes criptomoedas. InfoMoney. Publicado em 30/09/2021. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/mercados/visa-cria-sistema-que-interliga-blockchains-para-pagamentos-comdiferentes-criptomoedas/. Acesso em: 06/09/2022.

[6] ALVES, Paulo. Exchange Crypto.com lança cartão de criptomoedas Visa no Brasil. InfoMoney. 12/11/2021. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/mercados/exchange-crypto-com-lanca-cartao-decriptomoedas-visa-no-brasil/. Acesso em: 06/09/2022.

[7] ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. 1a edição. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2014, p. 15.

[8] BRASIL. Receita Federal do Brasil. INSTRUÇÃO NORMATIVA SRF Nº 84, DE 11 DE OUTUBRO DE 2001. Art. 2º. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=14400&visao=anotado. Acesso em: 06/09/2022.

[9] BRASIL. Perguntas e Respostas IRPF 2022. Pág. 255. https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-deconteudo/publicacoes/perguntas-e-respostas/dirpf/pr-irpf-2022.pdf/view. Acesso em: 06/09/2022.

[10] BRASIL. Perguntas e Respostas IRPF 2022. Pág. 189. Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/ptbr/centrais-de-conteudo/publicacoes/perguntas-e-respostas/dirpf/pr-irpf-2022.pdf/view. Acesso em 06/09/2022.

[11] BRASIL. Receita Federal do Brasil. SOLUÇÃO DE CONSULTA Nº 214, DE 20 DE DEZEMBRO DE 2021.Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/solucao-de-consulta-n-214-de-20-de-dezembro-de-2021-369759276. Acesso em: 06/09/2022.

[12] BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Ofício Circular CVM/SRE 01/18. 27/02/2018. Disponível em: http://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/oficios-circulares/sre/OC_SRE_0118.html. Acesso em: 06/09/2022.

[13] Idem.

Sobre o(a) autor(a)
Maria Luiza Prado Faria
Advogada
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