O funcionário público visto pelo Direito Penal

O funcionário público visto pelo Direito Penal

Uma breve síntese comparativa e crítica acerca dos conceitos de funcionário público para os direitos administrativo e penal.

I) BREVE INTRODUÇÃO:

O nosso Código Penal apresenta um título exclusivo para os chamados crimes contra a Administração Pública e dentro desse rol de delitos encontramos aqueles praticados pelos funcionários com a Administração Pública. A importância de tipificar tais condutas está em manter a integridade do erário público, a honra objetiva da administração e seu perfeito funcionamento dentro da célula social.

Para tanto, o direito penal foge do administrativo na conceituação do que seria funcionário público. Aqui, o conceito é mais amplo, vasto, abrangente, ao passo que, no outro ramo do direito o raio de incidência é menor. A lei penal estabelece em seu artigo 327 que: “Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”.

Deste contexto extraímos que há três figuras da área do direito administrativo (cargo, emprego ou função pública). Convém apresentarmos leves diferenciações entre eles com objetivo de elucidar a explicação no campo penal.


II) O CONCEITO PARA O DIREITO ADMINISTRATIVO:

O agente público pode ser entendido aqui como toda pessoa física que possui a incumbência de exercer alguma atividade em prol do Estado e das pessoas jurídicas componentes da administração indireta. Damásio lembra que: “O que caracteriza a figura do funcionário público, permitindo distinção em relação aos outros servidores, é a titularidade de um cargo por lei, com especificação própria, em número determinado e pago pelos cofres da entidade estatal a que pertence” [1].

Celso Antônio Bandeira de Mello explica: “cargo é a denominação dada à mais simples unidade de poderes e deveres estatais a serem expressos por um agente” [2]. A autora Maria Sylvia Zanella Di Pietro complementa: “Com efeito, as várias competências previstas na Constituição, para a União, Estados e Municípios são distribuídas entre seus respectivos órgãos, cada qual dispondo de determinado número de cargos criados por lei, que lhes confere denominação própria, define suas atribuições e fixa o padrão de vencimento ou remuneração” [3].

O emprego público se difere do cargo pelo regime de contratação, que no cargo é por via do Estatuto dos Funcionários Públicos nos termos das Leis 1.711/52 e 8.112/90, possuindo vínculo estatutário. E no emprego, o regime de contratação e normas que nortearam os deslindes do exercício da atividade pública será a Consolidação das Leis Trabalhistas, com vínculo contratual.

A função pública realiza-se por duas formas, como elucida Di Pietro: “a função exercida por servidores contratados temporariamente com base no artigo 37, IX, para as quais não se exerce concurso público, porque, às vezes, a própria urgência da contratação é incompatível com a demora do procedimento; e as funções de natureza permanente, correspondentes a chefia, direção, assessoramento ou outro tipo de atividade para a qual o legislador não crie o cargo respectivo; em geral, são funções de confiança, de livre provimento e exoneração” [4]. Entendemos que o pensamento de Hely Lopes Meirelles merece ser lembrado: “função pública é a atribuição ou conjunto de atribuições que a Administração conferea cada categoria profissional, ou comete individualmente a determinados servidores para a execução de serviços eventuais” [5], abrangendo as atividades legislativa, executiva e judiciária do Estado.


III) A FUNÇÃO PÚBLICA NO DIREITO PENAL:

O conceito para o direito penal é mais vasto do que o delineado pelo campo administrativo, pois, consagra qualquer atividade realizada com fins próprios do Estado, independendo do recebimento de pecúnia, como bem lembra Júlio Fabbrini Mirabete [6].

O critério para o estabelecimento da realização ou não da função pública é a natureza da atividade exercida. A verificação de a atividade conter em sua essência [7] elementos de atividade também exercida pelo poder público, o que nos conduz a caracterização por extensão do conceito de funcionário público. Assim, no conceito temos, por exemplo, o vigia noturno (RF 214/278, RT 375/207, RT 370/188), o estagiário de direito em órgão público como defensoria pública (RT 550/355), Ministério Público, mesmo que sem o credenciamento junto a chefia do órgão.

Compete ressaltar que aquele que exerce uma atividade transitória de auxílio ao aparato estatal, o munus público, não é considerado para efeitos penais funcionário público. Assim , afastando da incidência típica está o síndico, o inventariante dativo, dentre outros que exercem essas atividades atípicas. Dessa forma manifesta-se o Supremo Tribunal Federal:

Funcionário Público – Conceito jurídico-penal – Advogado remunerado por convênio público – Exclusão do conceito- Inteligência do art. 327 do CP – “O Código Penal reelaborou o conceito de funcionário público (art. 327). Compreende quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. Cargo é lugar e conjunto de atribuições confiadas pela Administração a uma pessoa física, que atua em nome do Estado. Emprego é vínculo de alguém com o Estado, regido pelas leis trabalhistas. Função Pública, por seu turno, é atividade de órgão público que realiza fim de interesse do Estado. A advocacia não é atividade do Estado. Ao contrário, privada. Livre é o seu exercício, nos termos do Estatuto do Advogado. A advocacia não se confunde com a Defensoria Pública. Esta é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-se da orientação jurídica e defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXXIV [sic] (Const, art. 134). O defensor Público, ao contrário do advogado exerce função pública. O advogado, designado para exercer a defesa de alguém, exerce munus publicum (Lei 8.906, 14.07.1994, [sic], art. 2º, § 2º). Assim, não exercendo função pública, não é funcionário público para os efeitos penais” (STJ – HC – Rel. Luiz Vicente Cernicchiaro – DJU 03.04.1995 – RT 728/460).

A interpretação do dispositivo aparece ampliada nos termos do parágrafo 1º, do artigo 327 do Código Penal que estabelece: “Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal”. Aqui notamos a existência do termo entidade paraestatal, que para Hely Lopes Meirelles: “são pessoas jurídicas de direito privado, cuja criação é autorizada por lei específica, com patrimônio público ou misto, para realização de atividades, obras ou serviços de interesse coletivo, sob normas e controle do estado” [8]. Esse conceito abrange as entidades que compõem o terceiro setor, abrangendo empresas públicas, sociedades de economia mista, os serviços sociais autônomos, as entidades de apoio (fundações, associações e cooperativas), as chamadas organizações sociais e aquelas organizações da sociedade civil de interesse público.

A lei penal protege essas entidades justamente pela importante função social na repartição das competências do Estado, com vistas a promover as metas constitucionalmente estabelecidas. Mas há séria resistência doutrinária em se abranger os exercentes de cargo, função ou emprego nessas entidades, como leciona Fragoso porque: “realizando essas entidades serviços industriais ou comerciais que não constituem fins próprios do Estado e que não configuram função pública para os efeitos da lei, a ampliação é inadmissível” [9] e Ana Maria Babette Bajer Fernandes: “na elaboração do Código Penal não se previa o desenvolvimento ‘desenfreado’ da estrutura burocrática do Estado, repele a solução normal da interpretação progressiva, recomendando que se restrinja o conceito” [10]. Damásio filia-se a essa corrente ao discorrer: “a equiparação só alcança as autarquias (pessoas jurídicas que exerçam atividades públicas típicas), não se aplicando às sociedades de economia mista ou àquelas em que o poder público figura como acionista majoritário. Para esta corrente, o disposto no § 2º, não ampliou o rol do § 1º, tendo incidência restrita aos casos de que trata” [11].

Luiz Régis Prado ministra a seguite lição: “Contudo, há necessidade de se restringir o alcance do texto normativo tão-somente às hipóteses em que os funcionários de tais entidades figurem como sujeito ativo dos delitos considerados funcionais, inclusive no que tange à legislação penal extravagante. A própria posição topológica do artigo 327 denota a intenção do legislador de restringir tal equiparação aos moldes aqui explicitados, não podendo esta disposição ser enfocada como norma geral, conforme equivocadamente desejam alguns” [12].

No entanto, reservamos a discordar dos doutrinadores supra elencados, para permitir a aplicação extensiva quanto ao sujeito ativo somente. A tutela conferida é ofertada ao erário público e em permitir lesões as empresas de economia mista, ou empresas públicas estariamos afastando o espírito da lei em manter a salvaguarda ao dinheiro público. Ainda, a atividade conferida ao particular sempre coliga-se com o objetivo estatal, que abre ao particular envolver-se na atividade pública, para atender melhor a sociedade, servindo-a com o respeito ao princípio da eficiência. O desenvolvimento da administração pública não pode obstar a incidência da norma penal, porque se assim, fosse, estaríamos até hoje consagrando a permissão de lesões onde há a difícil reparação as células administrativas. A norma penal assimila a proteção ao erário público que legitima o particular na Ação Popular e o Ministério Público na Ação Civil Pública, senão dessa sorte, permitiriamos a punição no cível e administrativamente e dando imunidade na esfera penal.

Em interessante lição que coaduna com nosso pensar Júlio Fabbrini Mirabete explica: “Não se pode concluir que a equiparação se refere somente aos dirigentes; já no § 1º, referindo-se a lei à entidade paraestatal, abrange todas as entidades citadas, o que fica confirmado no § 2º. Embora possam não ter elas fins próprios do Estado, são constituídas, ao menos em parte, com patrimônio público, visam à realização de vários fins de interesses coletivo, e se submetem às normas e controle do Estado, justificando-se a maior proteção que a lei vai-lhes emprestando” [13].

“O empregado de empresa pública está equiparado, para os efeitos penais, ao funcionário público” (STF- RE – Rel. Alfredo Buzaid – DJU 20.08.1992, p. 7.874).

O artigo 327, § 2º, do Código Penal prevê que: “A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público”. Observa-se pela análise do tipo que houve a exclusão da autarquia revelando manifesto erro legislativo como elucida Luiz Régis Prado por proibição da analogia in malam partem, mas como o próprio autor revela, o ente público autárquico é parte integrante da administração direta também para fins penais [14], mas que não encontra fundamento legal no direito administrativo que é a principal fonte desse capítulo.

Mas, insta compreendermos que a eqüiparação se dá somente para com os crimes desse delito, aos agentes e nunca como sujeito passivo do crime porque estaremos face a aplicação de outro tipo penal que não os desse capítulo. Celso Delmanto assim ensina ao manifestar: “Ao nosso ver, o novo § 2º, deixou claro que a primeira corrente é a certa, pois limitou a causa de aumento ‘aos autores dos crimes previstos neste capítulo’, demonstrando que tanto a equiparação do § 1º como a do § 2º, devem ficar limitadas ao sujeito ativo do crime” [15]. Então dessa sorte tanto aqueles que ocupem cargos por comissão, função de direção e função de assenhoramento em sociedades de economia mista, empresa pública ou fundação estatuida pelo poder público, irão estar na aplicação da referida qualificadora, mas excluiu logicamente estes se a atuação no evento for de menor importância, como na participação ou na cumplicidade.

E no caso da autoria mediata, seria possível tal enquadramento? No caso entendemos possível a existência do planejamento criminoso, pois, a expressão autoria abarca a autoria tanto material quanto mental, justamente pela amplitude e abrangência do termo autor.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 3ª Ed. Renovar. RJ/RJ; 1991.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13a Ed.. Atlas. SP/SP. 2001.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, vol. III. 3ª Ed. Forense. RJ/RJ. 1981.

FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer. Conceito de funcionário público no direito penal. Justitia. SP/SP, nº 98.

JESUS, Damásio Evangelista. Direito Penal, vol. IV. 2ª Ed. Saraiva. SP/SP. 1989

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Ed. 18. Malheiros.SP/SP. 1993.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 5ª Ed; Malheiros. SP/SP. 1995.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, vol. III. 16ª Ed. Atlas. SP/SP. 2001.

PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. IV. 3ª Ed. RT. SP/SP. 2001.



[1] JESUS, Damásio Evangelista. Direito Penal, vol. IV. 2ª Ed. Saraiva. SP/SP. 1989; p. 101.

[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 5ª Ed; Malheiros. SP/SP. 1995. p. 417.

[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13a Ed.. Atlas. SP/SP. 2001; 427.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. Cit. p. 429.

[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Ed. 18. Malheiros. SP/SP. 1993. p. 381.

[6] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, vol. III. 16ª Ed. Atlas. SP/SP. 2001. p. 298.

[7] JESUS, Damásio Evangelista de. Op. Cit. p. 101.

[8] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit. 320.

[9] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, vol. III. 3ª Ed. Forense. RJ/RJ. 1981. p. 393/394.

[10] FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer. Conceito de funcionário público no direito penal. Justitia. SP/SP, nº 98. p. 33/35.

[11] JESUS, Damásio Evangelista. Op. Cit. P. 102.

[12] PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. IV. 3ª Ed. RT. SP/SP. 2001. p. 501.

[13] MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 299.

[14] PRADO, Luiz Régis. Op. Cit. p. 503.

[15] DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 3ª Ed. Renovar. RJ/RJ; 1991. p. 327.

Sobre o(a) autor(a)
Flávio Augusto Maretti Siqueira
Advogado, Pós Graduado pela FDDJ e Pós Graduando em Direito Penal e Processo Penal na UEL.
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