Consórcio: A nova pessoa jurídica da administração indireta

Consórcio: A nova pessoa jurídica da administração indireta

Analisa os efeitos da lei 11.107/05, que criou nova pessoa jurídica, sobre a estrutura da administração indireta brasileira.

Introdução.

Em maio deste ano de 2005, a comunidade jurídica foi surpreendida com mais uma lei de ocasião, que criou a figura do consórcio público pessoa jurídica, subvertendo em vários aspectos o ordenamento vigente, inclusive constitucional. Além de inaugurar expressões de suposto significado jurídico – sem esclarecer em que consistem para os efeitos da lei – como, por exemplo, “associação pública”, “contrato de rateio”, “contrato de programa”, criou uma nova pessoa jurídica na administração pública indireta.

Muito embora não possamos deixar de mencionar pelo menos as inconstitucionalidades e inconsistências mais gritantes, o objetivo deste texto é mostrar como ficou – pelo menos até que a nova lei seja declarada inconstitucional, no todo ou em parte – a composição da Administração Pública indireta no direito brasileiro, sem qualquer intenção de esgotarmos a matéria.


I. Pessoas jurídicas públicas.

Qualquer estudioso de direito, ao examinar as normas mestras do direito administrativo brasileiro, vai encontrar nos bons autores que são pessoas jurídicas de Direito Público da Administração direta a União, Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Mais que isso, o rol está expresso no artigo 37 da Constituição: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também ao seguinte:...)”.

O inciso XIX do mesmo artigo 37 se refere aos entes da administração indireta, ao afirmar que “somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de atuação”.

Na mesma linha de raciocínio, estabelece também a Lei Maior a natureza jurídica das entidades que, exaustivamente arrolou no artigo 37: o artigo 173, § 1º submete a empresa pública e a sociedade de economia mista ao regime jurídico próprio das empresas privadas, a significar, portanto que as empresas públicas e as autarquias serão entidades sob regime jurídico de direito público.


II. Administração Pública Indireta

A Administração Indireta é o conjunto dos entes (entidades com personalidade jurídica) que vinculados a um órgão da Administração Direta, prestam serviço público ou de interesse público.

Como bem aponta Maria Silvia Zanella Di Pietro (1997:56), “No direito positivo brasileiro, há uma enumeração legal dos entes que compõem a Administração Pública, subjetivamente considerada. Trata-se do artigo 4º do Decreto-Lei nº 200, de 25-2-67, o qual, com a redação dada pela Iei 7.596, de 10-4-87, determina que a administração federal compreende:

I – a administração direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios.

II – a administração indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades dotadas de personalidade jurídica própria:

autarquias;
empresas públicas;
sociedades de economia mista;
fundações públicas.”

Embora o Decreto-Lei seja, em tese, aplicável apenas à União, contém conceitos e princípios que se aplicam também aos Estados e Municípios, especialmente em matéria de administração indireta.

Ainda que não fosse suficiente o assento constitucional, a matéria já havia sido tratada também na legislação infra-constitucional que, quando exteriora princípios, é aplicável a todos os entes federativos.

O recente Código Civil, no seu artigo 41, afirma que são pessoas jurídicas de direito público interno a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios, os municípios, as autarquias e ..as demais entidades de caráter público criadas por lei. Conforme o artigo 44, são pessoas jurídicas de direito privado as associações, as sociedades e as fundações.

Entretanto, também faz parte do texto constitucional a previsão dos consórcios públicos e convênios:

“Art. 241 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos”.

Como se vê, a Constituição não define o que seja o consórcio público ou convênio público e muito menos prevê que estas duas modalidades de avença possam se constituir em pessoas jurídicas.


III. A Lei do Consórcio público.

Supostamente apoiada pelo artigo 241, veio a lei 11.107, de 6 de abril de 2005 e inovou:

“Art. 1º. Esta Lei dispõe sobre normas gerais para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios contratarem consórcios públicos para a realização de objetivos de interesse comum e dá outras providências.

§ 1o O consórcio público constituirá associação pública ou pessoa jurídica de direito privado...)

Art. 6o O consórcio público adquirirá personalidade jurídica:

I – de direito público, no caso de constituir associação pública, mediante a vigência das leis de ratificação do protocolo de intenções;

II – de direito privado, mediante o atendimento dos requisitos da legislação civil.

§ 1o O consórcio público com personalidade jurídica de direito público integra a administração indireta de todos os entes da Federação consorciados.”

A lei 11.107/2005 - ou lei do consórcio público - portanto, cria, por via transversa, uma nova entidade da administração indireta, ao lado da autarquia e da sociedade de economia mista instituída por lei. E ainda inventou uma nova expressão

O consórcio público será uma entidade associativa, que tanto pode ser de direito público como de direito privado, o que ofende o significado jurídico da palavra consórcio no direito pátrio, significado este que devem ter tido em vista os redatores do Art. 241 supra citado.

A subversão ao significado da palavra fica ainda mais clara quando se a confronta com o disposto no artigo 278 da Lei de Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404, de 15/12/1976, atualizada pela Lei nº 10.303, de 31/10/2001), que afirma ser o consórcio constituído para executar determinado empreendimento, não tendo personalidade jurídica (§ 1º).

Sobre a forma de instituição, assim estabelece a nova lei:

“Art. 3o O consórcio público será constituído por contrato cuja celebração dependerá da prévia subscrição de protocolo de intenções.

Art. 4o São cláusulas necessárias do protocolo de intenções as que estabeleçam:

I – a denominação, a finalidade, o prazo de duração e a sede do consórcio;

II – a identificação dos entes da Federação consorciados;

III – a indicação da área de atuação do consórcio;

IV – a previsão de que o consórcio público é associação pública ou pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos.”

Para que coubesse dentro do Código Civil, o artigo 16 da nova lei alterou o artigo 41, para incluir no inciso IV um pedúnculo: o inciso, que se referia às autarquias apenas, ficou com a redação: “as autarquias, inclusive as associações públicas”. Isto sem tocar o inciso V do mesmo artigo: “as demais entidades de caráter público criadas por lei”.

Mais uma espantosa contradição dentro da própria lei nova: significa que as associações públicas são espécie do gênero autarquia. A ser assim, só podem ser criadas por lei, como exige o artigo 241, XIX, da Constituição e não através de contrato, como quer o artigo 3º da nova lei.

Se erros houve, não foi por falta de aviso dos melhores juristas. Maria Silvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo – 13. ed. – São Paulo: Atlas, 2001 – PP 288-289), já em 2001 alertava:

“O consórcio administrativo, da mesma forma que o consórcio de empresas, não adquire personalidade jurídica. As entidades se associam, mas dessa associação não resulta a criação de nova pessoa jurídica (....). Quanto a criar uma sociedade, civil ou comercial, com o fim específico de administrar o consórcio, não há fundamento legal no direito brasileiro, se essa entidade for privada. Estaria havendo uma terceirização da gestão pública. Ora, se o consórcio administra serviços públicos e se utiliza de bens do patrimônio público, não há como fugir ao regime jurídico publicístico, especialmente no que diz respeito à observância dos princípios constitucionais pertinentes, como exigência de licitação para celebração de contratos e concurso público para seleção de pessoal. A melhor solução é a de criar-se uma comissão executiva que vai administrar o consórcio e assumir direitos e obrigações (não em nome próprio, já que a Comissão não tem personalidade jurídica), mas em nome das pessoas jurídicas que compõem o consórcio e nos limites definidos no instrumento do consórcio.”


Miguel Reale e as inconstitucionalidades.

O grande jurista brasileiro, um dos poucos reconhecidos mundialmente, Miguel Reale, em fundamentado parecer elaborado ainda da fase do projeto (Disponível na Internet: http://www.miguelreale.com.br/parecer.htm, acesso em 25 de agosto de 2005), aponta ainda outras deficiências, que chegam às raias da inconstitucionalidade: 1. invasão da competência privativa dos Estados membros para, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações e micro-regiões, de conformidade com o que institui o § 3º do Art. 25 da Lei Maior; 2. poder de cobrar e de arrecadar tarifas e outros preços públicos pela prestação de serviços, à margem de autorização legal específica (Art. 2º, § 2º); 3. promover desapropriações ou instituir servidões que sejam consideradas necessárias ao desempenho de suas finalidades, nos termos de anterior declaração de utilidade ou necessidade pública ou de interesse social. (...) Ante tal configuração jurídica, parece-me que o Projeto analisado extrapola, a olhos vistos, do disposto no Art. 241 da Constituição Federal, ao referir-se este a “consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados”. 

A criação, para tal fim, de uma pessoa jurídica de direito público, equiparável às autarquias e sociedades de economia mista instituídas por lei, afigura-se-me inconstitucional.

O Projeto examinado cria, a bem ver, uma associação que vem alterar o sentido de nosso federalismo, o qual se distingue pela existência de três entes com competências distintas, cujo relacionamento recíproco a própria Carta Magna disciplina, representando os projetados “consórcios públicos” um adendo inadmissível ao que a Constituição dispõe.”

E, mais adiante:

“Finalmente, cumpre salientar o erro do Projeto em pauta no que se refere às associações civis (Arts. 32 e 42 e seus parágrafos). Fica patente a ignorância da radical alteração introduzida pelo novo Código Civil, ao distinguir entre sociedade e associação, aquela sempre de conteúdo e fim econômico, e esta não. Por tal razão, as associações civis são disciplinadas em Capítulo especial, no qual é estatuído, no Art. 53, que “constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos. Por isso, uma associação civil não poderia jamais ser convertida em um “consórcio público”, nem poderia este ser disciplinado “pela legislação que rege as associações civis” (Art. 32 do Projeto). EM CONCLUSÃO, o Projeto de Lei, que pretende instituir “consórcios públicos”, fê-lo extrapolando do Art. 241 da Constituição federal, visto criar uma instituição jurídica anômala, à qual é conferida competência equiparável à dos três entes que compõem nosso sistema federativo, o que conflita com as diretrizes de nossa Carta Magna.” (Miguel Reale.


Conclusões.

Até o advento da nova lei, consórcios intermunicipais (que são os mais comuns) sempre foram acordos de cooperação para organização e prestação de serviços públicos, não sendo forma de pessoa jurídica, mas uma parceria para dar cumprimento às obrigações do estado. Também não foram formas de terceirização, concessão ou autorização de serviço público, já que os serviços continuavam sendo prestados pela Administração direta.

A lei 11.107, de 6 de abril de 2005, ou lei do consórcio público, criando a figura do consórcio pessoa jurídica fez com que Administração indireta brasileira ficasse composta de: a) autarquias; b) empresas públicas; c) sociedades de economia mista; d) fundações públicas e ... consórcios públicos!

Pelo menos por enquanto.

Sobre o(a) autor(a)
José Eduardo de Alvarenga
Advogado, Professor e Palestrante. Mestre em Direito Político e Econômico. Procurador do Estado de São Paulo, aposentado. Professor convidado da FGV-DIREITO-RIO. Autor de Novo Código Civil - Direito Empresarial e Terceiro Setor...
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