Direitos da Personalidade: Elementos objetivos e subjetivos da individualidade - identidade e identificação
A autora disserta sobre o tema sob uma ótica dual: jurídico-psicanalítica, com a profundidade de uma reflexão filosófica. Aponta a individualidade como um bem supremo, e em prol disto, atribui ao Estado o dever de uma tutela ampla.
Como é cediço, não há na doutrina um consenso quanto às origens históricas dos direitos da personalidade. Para alguns, foi no período que intercala a Antigüidade e o Renascimento, ou seja, na Idade Média [1] que o homem, cultuando a espiritualidade por meio de uma busca interior, tomou consciência da personalidade e da necessidade de sua tutela.
Sabidamente, somos todos iguais; para os mais crentes, somos mesmo imagem e semelhança de Deus, o divino criador. E de tal maneira, por sermos iguais em constituição física e material, não podemos equivocadamente pensar que, somos todos iguais também sob os demais aspectos. Visto que, não o somos. Cada um de nós possui seus caracteres diferenciadores, quer intelectual, quer moral, ou ainda, emocional, enfim, sofremos influência multifatorial do mundo externo, no desenvolvimento de nossa personalidade.
Assim, nas palavras Carlos Antonio Fragoso Guimarães, na segunda parte de seu artigo intitulado ”A Psicologia Transpessoal” [2] a grande maioria dos teóricos da personalidade toma por fundamento básico a consciência em estado de vigília, ou consciência normal, como sendo a única possibilidade saudável de nível de percepção cognitiva. As características básicas desta consciência normal, e segundo Fadiman & Frager, é que a pessoa sabe "quem é"; possui perfeita noção de si mesma e de sua individualidade, porque há um sentido de identidade é estável. Ou seja, a pessoa tem uma idéia clara de ser e estar caracterizada por uma individualidade diferenciada do meio que a cerca.
Porém, não há como se falar em direitos da personalidade, sem antes, procurar entender, ou, ao menos enxergar a importância da personalidade, como um fenômeno individual e presente em todos os seres, e que, embora, abstrata, traz representações concretas ao mundo “real” da sociedade.
Sigmund Freud [3], após inúmeros estudos, pautou em demonstrar que parte da consciência humana é inconsciente, porque se refere a um processo psíquico cuja existência somos obrigados a supor em razão de seus efeitos, porém, do qual quase nada sabemos. E, é neste inconsciente que estão os principais determinantes da personalidade, as fontes de energia psíquica, as pulsões e os instintos.
A partir disto, temos que o Pré-Consciente é uma parte do Inconsciente, uma parte que pode se tornar facilmente Consciente, porque guarda porções acessíveis da memória, pois, é no Pré-Consciente que residem nossas lembranças recentes, e para exemplificar, quais são estas lembranças, temos: as datas comemorativas que recordamos, a noção de quais são os nossos alimentos prediletos, quais são os perfumes que nos agrada, qual é o nome da rua em que residimos, etc. Na verdade, o Pré-Consciente funciona como uma vasta área de posse das lembranças que a Consciência precisa para desempenhar suas funções.
Assim, de acordo com as observações feitas por Freud, há uma série interminável de conflitos e acordos psíquicos, e existe uma relação entre estes conflitos e acordos, com as proibições sociais vividas, porque as proibições sociais bloqueiam as pulsões biológicas e os modos de enfrentar as situações. Segundo Freud, as proibições podem ser definidas quando relacionadas com o indivíduo da seguinte maneira:
“Em benefício de uma terminologia uniforme, descreveremos como ‘frustração’ o fato de um instinto não poder ser satisfeito, como ‘proibição’ o regulamento pelo qual essa frustração é estabelecida, e como ‘privação’ a condição produzida pela proibição”. [4]
Por estas revelações, percebemos que o comportamento individual reage diferentemente, como uma resposta lógica e com nexo causal, como se o efeito no indivíduo adviesse de uma determinada reação social antecedente. E depois de Freud, o psiquiatra canadense Eric Berne criou, em 1956, a Teoria da Análise Transacional, que veio inserir um modelo de reaprendizado comportamental e, é uma Teoria da Psicologia, que distingue “o pai”, “o adulto” e “a criança” não como papéis vividos pelo indivíduo, mas sim como realidades psicológicas que envolvem pessoas reais, ocasiões reais, decisões reais e emoções reais. Hoje, esta teoria de Berne em nome da chamada individualidade, trabalha a questão da personalidade sob o aspecto do contato social e profissional, pois, evidentemente, o ser humano só se explica quando em interação com os demais. Embora, o convívio não faça o homem perder sua individualidade, é o que nos ensina Susan Polls Schutz, quando diz: “Eu sou eu, e você é você, independentemente, compartilhamos nossas vidas juntos”. Ou ainda, na verdade exposta por José Ortega Y Gasset [5], quando relaciona a postura individual à estreiteza das vivências, “eu sou eu e minhas circunstâncias” [6].
Mais precisamente, a análise transacional é um método sistematizado de examinar essa transação em que “eu faço alguma coisa a você e você me faz alguma coisa em resposta”. Logo, sinteticamente, a análise transacional trabalha com o processo humano interativo, porém, evidenciando que há no indivíduo uma natureza múltipla, e que num dado momento qualquer delas se evidencia, ou seja, “o Pai, o Adulto ou a Criança”, e uma destas três respostas, que são sempre psicológicas, se exterioriza sob forma de comportamento ao estímulo transacional. Noutras palavras, no convício social, o processo transacional é interativo, e o estímulo de contato com os demais traz à tona do indivíduo uma de suas performances psicológicas. Que, embora, pareça ser meramente comportamental, não o é. Porque entre a ação e a reação existe um intercâmbio significativo, um nexo causal explicativo, que, por conseguinte, singulariza o modo de reação. [7]
Desta forma, compreendemos que o indivíduo tem o direito de ser ele mesmo, e de manter íntegra a estrutura de seu pensamento, e, ao no mesmo passo, manter respeitado todo o conteúdo de suas experiências pessoais, bem como, o direito de manter incólume a importância e dimensão que elas possuem em seu íntimo. Porque merecem respeito às suas ideologias, às suas crenças. Em outras palavras, o indivíduo tem o direito de viver a vida de acordo com suas escolhas, razão pela qual, a personalidade tem a proteção integral do Estado, porque é elemento da essência que torna o ser humano único.
De sorte, através da personalidade o indivíduo é compelido a atender tendências naturais, e as maneiras pelas quais são atendidas estas tendências é que se diferenciam as pessoas. O indivíduo precisa de equilíbrio com o meio em que vive para gerir harmonicamente o peso de suas tendências e as exigências sociais. Donde, de modo geral, o ser humano só pode ser entendido como uma conjugação singular de seu patrimônio genético e as influências ambientais sofridas no decorrer de sua vivência. Em outras palavras, o indivíduo é aquilo que trouxe para a vida com aquilo que a vida lhe deu.
Carnelutti nos lembra que, o primeiro princípio que deve ser observado pelo o direito é aquele capaz de reconhecer nossas distinções. Sim, as distinções que existem em cada um de nós, bem como em todos os outros indivíduos, considerando que, tanto nós como eles, somos elementos de um mesmo grupo, e ainda, que este “grupo humano” compõe a sociedade. Assim, ainda que num dado momento, a avaliação possa ser meramente física, no entanto, para a ciência jurídica deva sempre se estender, alcançando outras diferenças, ou seja, aquelas de ordem psíquicas e psicológicas, e, neste contexto, estão os caracteres de nossa personalidade. Assim, preleciona Carnelutti, in verbis:
“Partir do princípio de que os homens são diferentes entre si: uns mais fortes que outros, uns mais jovens que outros, uns mais inteligentes que outros, uns mais bonitos que outros, uns mais bons (Sic) que outros; nunca é idêntica a medida do mais ou do menos. Há entre eles, ainda nas sociedades primitivas, indivíduos privilegiados que exercem naturalmente sobre os outros a função de chefe ou cabeça (líder ou dirigente)”. [8]
Desta forma, temos também como objetivo dissertar sobre estes elementos diferenciadores ou distintivos. Ressaltando que, alguns destes elementos se inserem na esfera de nossa identidade, e outros, tão-somente, são conhecidos ou reconhecidos por serem meio (instrumento) de nossa identificação. De sorte, o nosso primeiro passo será distinguir a identidade da identificação. A primeira é um caractere de nossa personalidade, relaciona-se com nossa história de vida e, é influenciada pelo mundo que nos rodeia, mais precisamente, pelo conceito que erigimos dele. Noutras palavras, nossa identidade é formada intrinsecamente por nossos aspectos pessoais e, ao mesmo passo, é modelada pelo plano contextual, que descreve um cenário específico de dois elementos: o temporal e o social.
Assim, reconhecemos que a identidade é uma necessidade básica e essencial do ser humano, tanto do ponto de vista singular quanto na órbita da identidade coletiva. Lembrando que, a identidade coletiva não é única, ao contrário, se perfaz de várias e distintas coletividades. Diríamos que, cada conjunto de seres, cada corporação, cada grupo ou organização social mostra-se como um subgrupo da categoria genérica: coletividade. Nós, individualmente, podemos fazer parte de várias identidades coletivas, razão pela qual, insistimos em dizer que sofremos influências advindas destas nossas participações que se polarizam entre tantas outras, estabelecidas pelo do organograma indivíduo-grupo-sociedade.
Outro aspecto importante da identidade individual é suas concepções variadas, experimentadas pelo intercâmbio efetivado nas relações intersubjetivas, posto que, o indivíduo reconhece a inteireza sua identidade, no entanto, na interação social pode ser reconhecido pelos demais, de maneira diversa daquela obtida a nível pessoal, podendo ainda, ser reconhecido por inúmeras formas diferentes, considerando o número de identidades individuais que compõem a identidade coletiva. Noutras palavras, o olho interno com que me vejo, não retrata o olhar de quem me olha, porque a subjetividade de cada um de nós, cria a diversidade de nossas opiniões.
Logo, posso eu, me identificar como alguém bom, generoso; posso ser identificado por outrem como alguém egoísta e ruim, e, posso ainda, ao interagir com um terceiro ente, ser observado por este, como alguém amável e solidário. Cada qual, observa e constrói o mundo sempre tomando por base seus apontamentos pessoais e internos, particulares, peculiares, individuais em essência. Isto resume nossa identidade, reconhecer-se e ser reconhecido, parafraseando Maslow que alçou o reconhecimento pessoal e social ao “status” de necessidade fundamental do homem.
Para Luhmann, “é lamentável, sobretudo que, sob o título ‘sujeito’, a conexão entre a auto-referência e sentido não é mais pensado com suficiente rigor. Antes, uma teoria do sujeito deve ser orientada com base na coerência do sistema auto-referencial. Conseqüentemente, a ela não mais pode ser dado aquilo que carece de sentido”. [9]
Segundo María Elena Riveros em um trabalho sobre a identidade, apresentado no Seminário “Problemas de la cultura Latinoamericana", nos transcreve os ensinamentos de Erich Fromm sobre o tema: "Esta necessidade de um sentimento de identidade é tão vital e imperativa, que o homem não poderá estar são se não encontrar algum modo de satisfazê-la”. Acrescenta, Riveros, a identidade é uma necessidade afetiva (sentimento), cognitiva (consciência de si mesmo e da relação de proximidade com pessoas diferentes) e ativa (o ser humano tem que ‘tomar decisões’ fazendo uso de sua liberdade e vontade).
Diante do exposto, reconhecemos que o nome civil é bem mais que um mero instrumento de identificação pessoal, porque traduz a personalidade de seu titular, e neste aspecto torna-se um elemento inserto em seu ser, podendo até revelar traços de seu caráter, podendo emoldurar sua dignidade, e ainda, o põe à mostra ao mundo e a sociedade. E de tal sorte, o nome é ao mesmo tempo, no convívio social, o ponto chave de nossa identidade e identificação. E no âmbito psíquico, o indivíduo sente e se ressente das significações que este nome possa conter. Sim, como dito anteriormente, o mecanismo racional reconhece nas palavras um significado, real ou abstrato, e pelo prisma da subjetividade, tal significado oscila dentro dos limites daquilo que possa ser bom ou ruim, pois, estará sempre sujeito à análise interna feita e obtida em cada um de nós.
Ao que pertine à identificação, esta é sempre limitada; sim, há uma limitação evidente, posto que, não alcança as características de ordem emocional ou psicológica, noutras palavras, não guarda qualquer vinculação com a personalidade do indivíduo. A identificação pode se afigurar por diversas formas e maneiras; podendo ser: física, biológica, genética; assim, pode ainda, seguir distintos critérios, entre eles: médicos, anatômicos, estéticos, etc. Podendo ser verificada por exames, laudos, documentos ou evidências notórias. Por exemplo, podemos ser identificados pelo tipo sanguíneo, pelas impressões digitais, pelo código do DNA, pelo tom da fala, pela aparência física, pelas cicatrizes ou sinais visuais estampados na pele, ou, simplesmente, pelo número de nossa cédula de identidade, que na verdade, trata-se de número de Registro Geral de Identificação. Mesmo porque, verificamos que, a identidade refere-se à personalidade, ou seja, a tudo àquilo com o qual o indivíduo se identifica internamente, sendo, portanto, reflexiva do “eu”.
Desta forma, observamos que, todas estas formas de identificação, aqui expostas, são utilizadas com habitualidade; cada qual em sua circunstância específica, cada qual cumprindo a sua finalidade de “reconhecimento individual” na vida civil. Neste aspecto, poderíamos afirmar que, a identidade é o “auto-reconhecimento ou reconhecimento da individualidade”, enquanto a identificação é o “reconhecimento social e de interesse público”, no sentido de que está atrelado ao poder público, que habilita os mecanismos aptos e hábeis à identificação dos elementos que compões a sociedade. E com isto, consegue estabelecer a segurança das relações jurídicas que se desenvolvem entre eles. De sorte, os registros e assentamentos, bem como, os outros meios supramencionados utilizados para a identificação, servem ao Estado para determinar quem são os sujeitos de direitos e obrigações, podendo individualizá-los juridicamente sempre que necessário
Concluímos, portanto, a personalidade é uma organização dinâmica, com traços interiores oriundos dos genes, e, com características advindas do exterior, àquelas às quais se submeteu no decorrer da vida e por percepções de seu cenário social. Não obstante, pode ser definida ou traduzida como uma essência que surge da combinação bio-psico-social. O indivíduo é o resultado do conjunto de elementos caracterizadores de sua personalidade, e, tais elementos por magnânimos da pessoa humana, devam ser tutelados pelas normas jurídicas de forma ampla e irrestrita.
[1] Na Idade Média, Santo Tomás de Aquino distinguia três espécies de leis: a lex aeterna ou razão divina, que governa o mundo; a lex naturalis, inserida por Deus no coração do homem e feita sob medida para a natureza deste, e, finalmente, a lex humana, criada pelo homem conforme os preceitos da lei natural. Na civilização bizantina o Imperador Justiniano é um importante marco, porque no período entre 533 a 565 compilou-se a seu mando o Direito Romano, e foi na parte das Institutas que se discutiu os princípios fundamentais do Direito.
[2] Percepção e Consciência, João Pessoa, Paraíba: Persona, João Pessoa, 1996.
[3] Sigmund Freud nasceu no dia 06 de maio de 1856, na pequena cidade de Freiberg, na Morávia (antiga Tchecoslováquia). Em 1896, Freud usou pela primeira vez o termo Psicanálise para descrever seus métodos, e tornou-se a ciência do inconsciente. As idéias de Freud se tornaram parte da herança comum da cultura ocidental. Todos nós devemos a Freud a revelação do mundo que repousa sob a nossa consciência. Freud faleceu em 1939.
[4] Trecho extraído da obra de Sigmund Freud – “O futuro de uma ilusão” (1927) – ES, XXI, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1969.
[5] Grande filósofo e ensaísta espanhol, criador da doutrina do racio- vitalismo, foi um dos mais profundos investigadores dos problemas do homem e da sociedade, nasceu em Madrid em 9 de maio de 1883 e, faleceu em 18 de outubro de 1954.
[6] Unas lecciones de metafísica. Madrid: Alianza Editorial, Madrid, 1986.
[7] HARRIS, Thomas A. As Relações do Bem-estar Pessoal. Tradução: Edith Arthens, 3ª ed., São Paulo: Círculo do Livro, 1975. p.34.
[8] CARNELUTTI, Francesco. Como nasce o Direito. Tradução: Ricardo Rodrigues Gama. 1ª Edição. São Paulo: Russell, 2004. p.18-19.
[9] Luhmann, N.Soziale Systeme. Grundriss einer allgemeinen Theorie. Ffm. 1984. n° 29. p.108.