A desconsideração da personalidade jurídica à luz do novo Código de Processo Civil

A desconsideração da personalidade jurídica à luz do novo Código de Processo Civil

No CPC atual, não há uma procedimentalidade acerca da desconsideração, o que faz com que o incidente seja aplicado com esteio na jurisprudência, possibilitando também a livre interpretação do juiz. O novo codex veio suprir essa lacuna, ao estabelecer as regras processuais para a sua aplicação.

1. Introdução

​O atual Código de Processo Civil, Lei n° 5.869, foi sancionado em 1973, período em que o país enfrentava uma ditadura militar que suprimia diversos direitos e garantias fundamentais. A Constituição Federal de 1988 é um marco político que vem constituir a República Federativa do Brasil em Estado Democrático de Direito.

​Em razão de a Carta Magna ter sido promulgada após a vigência do CPC, muitos institutos processuais civis precisaram se adequar à nova realidade vigente.

​O legislador do CPC/73 foi omisso quanto à procedibilidade da desconsideração da personalidade jurídica. Não obstante, o instituto era aplicado tomando-se por base o entendimento jurisprudencial dos Tribunais, bem como a observância dos princípios gerais de direito por parte dos magistrados a quo.

​Após muito anos de discussão parlamentar, o novo Código de Processo Civil, Lei n° 13.105/2015, foi aprovado e, atualmente, aguarda a vacatio legis de 1 (um) ano para entrar em vigor a partir de março de 2016. Nele, o incidente da desconsideração, finalmente, foi regulado.

2. Pessoa Jurídica

​Na Idade Média, a Igreja Católica era uma das instituições de maior prestígio na sociedade estamental. Esta pode ser representada por uma pirâmide onde o rei ocupa o ápice, seguido do clero, nobreza e, por fim, dos plebeus.

​Como forma de assegurar o seu patrimônio, a igreja determinou que as suas terras fossem consideradas como bens da própria instituição religiosa e não como herdade dos membros que a compunha. Dessa forma, nascia-se a denominada personalidade jurídica.

​Pessoa Jurídica é uma entidade revestida de personalidade jurídica e, por conseguinte, detentora de direito e obrigações. De acordo com o Código Civil brasileiro, as pessoas jurídicas são de direito público, interno ou externo, e de direito privado.

​São pessoas de direito público interno a União, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios, os Municípios, as autarquias, as associações públicas e as demais entidades de caráter público criadas por lei. As pessoas jurídicas de direito público externo são os Estados estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público.

​As pessoas jurídicas de direito privado são as associações, as sociedades, as fundações, as organizações religiosas, os partidos políticos e as empresas individuais de responsabilidade limitada.

3. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica

​A personalidade jurídica acaba por resultar num importante mecanismo de mitigaçãoda responsabilidade daqueles que, ao constituir uma entidade dotada de direitos e obrigações, explora por ela alguma atividade.

​Essa proteção legal à pessoa jurídica é imprescindível tendo em vista que o risco inerente das operações empresariais pode prejudicar gravemente os recursos individuais dos seus sócios. Desse modo, a tutela que se dá à pessoa jurídica acaba por realizar o objetivo pessoal de cada membro, além de fomentar o empreendedorismo. As atividades empresariais são de interesse do Estado, pois geram emprego, impostos, circulação de riquezas, tecnologias etc.

​Portanto, quando um empresário individual ou um grupo de sócios constitui pessoa jurídica, o seu patrimônio pessoal, até certo ponto, não responderá pelas obrigações da entidade abstrata, sendo que esta tem vínculo jurídico próprio. Nessa mesma esteira, é o princípio da autonomia patrimonial que determina que a pessoa jurídica não deve ser confundida com aquele (s) que a compõe.

​No entanto, essas prerrogativas próprias da pessoa jurídica, tornam-na um instrumentocom potencial perigoso, para os próprios sócios ou para terceiros que com ela estabeleçam relação. Isso se dá porque podem ocorrer situações onde, por exemplo, o sócio desvia a finalidade da pessoa jurídica para cometer fraudes ou descumprir a lei.

​O Código Civil, em seu art. 186, dispõe que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” O art. 187 do mesmo livro continua o tema estabelecendo que “também comete ato ilícito o titular de direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

​Em consonância com a inteligência acima, o legislador determinou, no art. 50 do CC, que “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.” Temos, então, nesse dispositivo, a previsão da desconsideração da personalidade jurídica.

​A desconsideração da personalidade jurídica é, desse modo, uma forma de responsabilizar os sócios da entidade quando estes a utilizam com finalidade fraudulenta, para violar estatuto, lei ou para praticar ato ilícito ou abuso de poder. Quando ocorrer alguma dessas hipóteses, o patrimônio pessoal dos sócios responderá pelos obrigações contraídas em nome da pessoa jurídica.

​A aplicação do instituto da desconsideração não é um ato arbitrário do magistrado, pois este deverá observar os pressupostos previstos na lei. Importante também ressaltar que a sua ocorrência não acarreta a extinção da pessoa jurídica, sendo que os seus efeitos se voltam apenas para a responsabilização patrimonial, sem impedir a sua continuidade.

​Ademais, trata-se de um instituto de ordem pública, mesmo quando envolvido o interesse privado das partes. ​É imperativo frisar que a previsão da desconsideração da personalidade jurídica também se encontra em outras legislações do nosso ordenamento jurídico.

​O art. 28 do Código de Defesa do Consumidor dispõe que “o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”

​A nova Lei Antitruste regulamenta, em seu art. 34, que “a personalidade jurídica do responsável por infração de ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.”

​A Lei dos crimes ambientes prevê em seu art. 4° que “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade jurídica for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.”

​O Código Tributário Nacional, em seu art. 135, estabelece que são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes dos atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto: I) as pessoas referidas no artigo anterior; II) os mandatários, prepostos e empregados; III) os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.” O inciso I se refere à responsabilidade de terceiro, prevista no art. 134 do CTN.

4. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica no novo Código de Processo Civil

Como dito, o novo Código de Processo Civil passa a regular o incidente da desconsideração da personalidade jurídica no Título III, da Intervenção de Terceiros, Capítulo IV, art. 133 a 137.

Inicialmente, cumpre esclarecer, em apertada síntese, o que se trata de um incidente processual. O incidente processual se deflagrará sempre que já houver um processo em andamento. Não configura uma relação nova, mas tão somente a existência de uma questão prejudicial relacionado ao mérito.

O caput do art. 133 discorre que “o incidente da desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.” Anteriormente foi dito que o instituto em estudo trata-se de matéria de ordem pública. Estas são conhecidas de ofício pelo julgador. No entanto, tem-se aqui um dilema, pois a hermenêutica do artigo leva à conclusão de que o juiz não pode declarar o incidente de ofício. No CDC, porém, é possível. Outrossim, é comum, na prática, que os magistrado despachem para que a parte se manifeste sobre o interesse de requerer a desconsideração.

O pedido de desconsideração deverá observar os pressupostos estabelecidos na lei, conforme o §1° do art. 133. Este dispositivo visa evitar que o incidente seja utilizado de modo arbitrário.

O §2° do art. 133 dispõe acerca da desconsideração inversa da personalidade jurídica. Trata-se de uma nova modalidade do instituto. Significa que, quando da sua ocorrência, os bens do sócio serão alvo de responsabilização patrimonial e não a administração da empresa.

O art. 134 diz “o incidente da desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.” O aspecto mais interessante deste artigo, mencionado no período anterior, nos parece ser o seu §2° que assegura que “dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.” O referido dispositivo elide a ideia de que o procedimento da desconsideração sempre se dará em ação autônoma, pois o próprio legislador menciona que não haverá incidente se na peça inaugural a parte já pleitear o instituto. A previsão permite que haja economia e celeridade processual.

Na hipótese de o incidente ser instaurado, o distribuidor deverá ser imediatamente comunicado para proceder às anotações devidas, conforme §1° do art. 134. Além disso, ocorrendo essa situação, o processo será suspenso, situação que não ocorrerá quando a desconsideração for requerida na inicial, de acordo com a redação do §3° do art. 134.

Os princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa estão assegurados quando da instauração do incidente da desconsideração, razão pela qual o legislador determina que o sócio ou a pessoa jurídica será citado para se manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze).

A decisão interlocutória é o ato do juiz que resolverá o incidente, podendo a parte irresignada recorrer por meio do Agravo de Instrumento. Caso a decisão seja dado por relator, caberá Agravo Interno.

O acolhimento do pedido de desconsideração acarretará que, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz com relação ao requerente, nos termos do art. 137.

5. Considerações finais

A pessoa jurídica surgiu da necessidade de se atribuir direitos e obrigações a determinadas entidades, resguardando, na forma da lei, o patrimônio pessoal dos seus membros. No entanto, a possibilidade de que a personalidade jurídica fosse utilizada pelo sócio para beneficiamento da própria torpeza, fez com que o legislador adotasse medida que responsabilizasse os sócios ou empresário individual pela prática de tais atos.

A desconsideração da personalidade jurídica revelou-se um instrumento importante de combate à fraude e inobservância da lei. Sua aplicação, na vigência do Código de Processo Civil de 1973, se dá por meio de orientação jurisprudencial e por meio da interpretação do juiz de direito.

No entanto, o novo Código de Processo Civil veio regular a matéria, de modo que, ainda que se perca na celeridade, se ganhará em segurança jurídica, tendo em vista a procedibilidade e ritualismo.

6. Referências

DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2013.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 6.ed. São Paulo: MÉTODO, 2014.

OBRA COLETIVA. Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2015.

OBRA COLETIVA. Vade Mecum. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

Sobre o(a) autor(a)
Sávio Oliveira Lopes
Sávio Oliveira Lopes: Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo. Ex-Juiz leigo do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES)...
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