Violência doméstica e familiar contra a mulher: considerações sobre a efetividade das medidas protetivas e a vedação à aplicação da Lei 9.099/95

Violência doméstica e familiar contra a mulher: considerações sobre a efetividade das medidas protetivas e a vedação à aplicação da Lei 9.099/95

Analisa-se a constitucionalidade do tratamento especial dado à violência doméstica e familiar contra a mulher pela Lei 11.340/06, enfatizando a vedação prevista no art. 41 em cotejo com a efetividade das chamadas medidas protetivas de urgência.

Um valioso instrumento de proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar é o referente à possibilidade de concessão das medidas protetivas de urgência previstas nos artigos 22, 23 e 24 da Lei 11.340/06.

A ofendida, quando busca a intervenção policial, deve ser informada pela autoridade respectiva sobre a existência legal de medidas destinadas à sua proteção e questionada se deseja solicitá-las ao juiz (art. 11, inc. V). Em caso afirmativo, deverão ser indicadas as providências almejadas conforme instrução da autoridade policial, sendo devidamente confeccionado o expediente na forma estabelecida pelos §§ 1º e 2º do art. 12 da Lei, o qual será remetido em apartado no prazo de 48 horas ao Poder Judiciário.

Para a concessão das medidas pleiteadas, o relato da vítima registrado na ocasião em que fora ouvida pela autoridade policial assumirá importância ímpar, pois neste momento é impossível admitir a colheita de outros elementos de convicção para a instrução da solicitação. Isto se deve porque a urgência na tramitação do pedido está diretamente ligada às peculiaridades apresentadas pela situação de violência doméstica e familiar e na efetividade das providências no sentido de garantir a integridade física, psíquica e patrimonial da ofendida.

A narrativa da vítima é dotada de presunção juris tantum de veracidade, pois é suficiente para a concessão das medidas de proteção, todavia, posteriormente, poderá ser refutada pelos dados extraídos com o normal prosseguimento das investigações. Assim, tanto é possível a impugnação pelo conjecturado agressor bem como o advento de provas capazes de repelir o suposto enredo responsável pela concessão daquelas providências.

Tem-se visto na prática que as medidas protetivas de urgência representam a manutenção da tranqüilidade e integridade da vítima. A garantia de que o agressor observará a determinação judicial está no fato de que poderá ser conduzido ao cárcere, preventivamente, caso haja descumprimento. Esta possibilidade decorre da previsão estipulada no inciso IV, do artigo 313, do Código de Processo Penal, acrescentado pela Lei 11.340/06:

“Art. 313. Em qualquer das circunstâncias previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos:

(...)

IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.”

São raros os casos em que a prisão cautelar do autor do fato é motivada pela inobservância das regras estipuladas para as medidas protetivas.

Tanto para o cumprimento inicial da determinação judicial, como na hipótese de o agressor se recusar a afastar-se do local de convivência com a ofendida (art. 22, II), quanto para evitar que aquela decisão seja desrespeitada poderá ser utilizada a força policial (§ 3º, art. 22).

Em boa parte dos casos de revogação do provimento judicial de concessão de medidas protetivas a própria ofendida é quem informa ao magistrado a desnecessidade de perduração. Tal conduta permite inferir que, apesar de verdadeiro seu relato inicial, as medidas cumpriram o objetivo de resguardar sua integridade.

A eficácia prática dos provimentos de urgência acaba por demonstrar que a severidade registrada no art. 41 da Lei 11.340/06 [1] viola hialinamente a Constituição Federal. Tratar desigualmente os desiguais com a finalidade de manter o equilíbrio entre os gêneros motivou o advento do Diploma em comento, entretanto, a isonomia pretendida é conspurcada quando há desproporção entre a orientação legislativa e o resultado obtido.

Aquele enunciativo legal veda a aplicação da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados) aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Preferiu, portanto, o legislador proibir a integral incidência da Lei 9.099/95 ao invés de delimitar os institutos que seriam inaplicáveis.

Tal postura confronta com as justificativas que embasaram criação de Lei específica para os delitos de menor potencial ofensivo. Se os institutos despenalizadores (composição civil dos danos, transação penal e suspensão condicional do processo) caracterizam-se como medidas suficientes à retribuição estatal para aqueles apontados como autores de infrações de menor potencial lesivo, inexiste justificativa plausível para que tais providências não sejam aplicadas aos crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher. Não deixam de representar a pequena potencialidade ofensiva as infrações abrangidas pela Lei 11.340/06.

Certo que a violência perpetrada no seio familiar pode causar sérios prejuízos ao relacionamento entre os conviventes, principalmente, com a estigmatização das vítimas como seres inferiores e que são obrigadas a submeterem-se aos abusos e obstinações dos companheiros. Portanto, merece o tratamento especial dado pela Lei 11.340/06 a violência doméstica e familiar praticada contra a mulher, conquanto que respeitados os limites impostos pelo princípio da proporcionalidade. Por este motivo é que na seara penal remanesce o critério adotado pela Lei 9.099/95, em seu art. 61, para indicar as infrações de menor lesividade.

Ora, ao Direito Penal somente é permitido atuar em campos não satisfatoriamente tutelados pelos demais ramos do Direito. A Lei 11.340/06 não é restrita à matéria criminal. Ela concilia os diversos segmentos, apresentando diretrizes suficientes à proteção da mulher. As medidas protetivas de urgência (natureza mista), como a “restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores” (inerente ao Direito de Família) e a “suspensão da posse ou restrição do porte de armas” de fogo (Direito Administrativo), tornam desproporcional a atuação do Direito Penal manifestada no art. 41 da referida Lei.

O cuidado especial à mulher, proporcionado pelas medidas protetivas de urgência, confere o equilíbrio entre os gêneros masculino e feminino pretendido pelo legislador. A norma do artigo 41 rompe a isonomia outrora conferida, extrapolando os limites da sensatez jurídica no trato da mulher vítima de violência doméstica e familiar.

As medidas protetivas de urgência devidamente concedidas persistem enquanto não superada a condição a que ficaram atreladas de acordo com o determinado no provimento judicial. É comum fixar na decisão que as medidas perduram até que a ofendida comunique ao juiz a desnecessidade. Assim, a aludida decisão não se auto-revoga com a mera finalização do trâmite processual, vale dizer, se na sentença o contrário não constar as medidas protetivas continuarão em plena vigência.

Dessa forma, com maior razão, há de se reconhecer a aplicabilidade dos institutos despenalizadores nos episódios acobertados pela Lei Maria da Penha. Afinal, por quais motivos não pode o agressor, submetido aos rigores do ato judicial de deferimento das medidas protetivas de urgência, ser ‘beneficiado’, v.g., pela transação penal? Nenhuma justificativa é capaz de sustentar a tese de que a ação penal movida contra o ofensor, tendo em vista a suposta prática de infração cuja pena máxima não ultrapassa dois anos, atingirá um resultado mais eficaz se conduzida até o fim ordinariamente previsto. A prolação de um édito condenatório em tal hipótese apenas refletirá o que poderia ter sido alcançado com a realização da transação [2], pois, na maioria dos casos, raramente cumprirá o condenado uma pena privativa de liberdade porque se não configurada a hipótese de substituição por restritiva de direitos [3] certamente restará a concessão do sursis (art. 77, CP).

Entretanto, em sentido oposto manifesta-se considerável parte da doutrina e da jurisprudência. Eis o pronunciamento do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás:

“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI 11.340/06. INCONSTITUCIONALIDADE NÃO CARACTERIZADA. COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS. INOCORRÊNCIA. Nosso Egrégio Tribunal de Justiça vem proclamando a constitucionalidade dos dispositivos questionados (artigos 33 e 41 da Lei n. 11.340/06). O primeiro apenas definiu como competente a vara criminal para julgamento das causas decorrentes da pratica de violência doméstica e familiar contra a mulher, enquanto não estruturados os juizados especializados. O segundo, embora rigoroso, vale-se do principio da isonomia, e não da igualdade literal, ou seja, preconiza que se deve tratar desigualmente os desiguais. Referida Lei, na realidade, confere tratamento diferenciado a indivíduos que se encontram em situação de desigualdade, na exata conformidade dos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Conflito julgado procedente.” (TJ/GO; Seção Criminal; Conflito Negativo de Competência 656-7/194; Proc. 200802216174, Relª. Drª. Camila Nina Erbetta Nascimento e Moura, DJ 199 de 17/10/2008)

A inconstitucionalidade do dispositivo ora analisado foi muito bem enfocada, e com maior amplitude nas razões esposadas, por Rômulo de Andrade Moreira (2007, online):

“Entendemos tratar-se de artigo inconstitucional. Valem as mesmas observações expendidas quando da análise do art. 17. São igualmente feridos princípios constitucionais (igualdade e proporcionalidade). Assim, para nós, se a infração penal praticada for um crime de menor potencial ofensivo (o art. 41 não se refere às contravenções penais) devem ser aplicadas todas as medidas despenalizadoras previstas na Lei nº. 9.099/95 (composição civil dos danos, transação penal e suspensão condicional do processo), além da medida "descarcerizadora" do art. 69 (Termo Circunstanciado e não lavratura do auto de prisão em flagrante, caso o autor do fato comprometa-se a comparecer ao Juizado Especial Criminal).

“Seguindo o mesmo raciocínio, em relação às lesões corporais leves e culposas, a ação penal continua a ser pública condicionada à representação, aplicando-se o art. 88 da Lei nº. 9.099/95.

“Cremos que devemos interpretar tal dispositivo à luz da Constituição Federal e não o contrário. Afinal de contas, como já escreveu Cappelletti, "a conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas." Devemos interpretar as leis ordinárias em conformidade com a Carta Magna, e não o contrário! Segundo Frederico Marques, a Constituição Federal "não só submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade, como ainda subordina todo o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que é condição de legitimidade de todo o imperativo jurídico. A conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todos."

“A prevalecer a tese contrária (pela constitucionalidade do artigo), uma injúria praticada contra a mulher naquelas circunstâncias não é infração penal de menor potencial ofensivo (interpretando-se o art. 41 de forma literal); já uma lesão corporal leve, cuja pena é o dobro da injúria, praticada contra um idoso ou uma criança (que também mereceram tratamento diferenciado do nosso legislador – Lei nº. 10.741/03 e Lei nº. 8.069/90) é um crime de menor potencial ofensivo. No primeiro caso, o autor da injúria será preso e autuado em flagrante, responderá a inquérito policial, haverá queixa-crime, etc., etc. Já o covarde agressor não será autuado em flagrante, será lavrado um simples Termo Circunstanciado, terá a oportunidade da composição civil dos danos, da transação penal e da suspensão condicional do processo, etc., etc. (arts. 69, 74, 76 e 89 da Lei nº. 9.099/95). Outro exemplo: em uma lesão corporal leve praticada contra uma mulher a ação penal independe de representação (é pública incondicionada), mas uma lesão corporal leve cometida contra um infante ou um homem de 90 anos depende de representação. Onde nós estamos!”

Consoante o objetivo proposto e delimitado pela temática selecionada, é suficiente para concluir pela inconstitucionalidade do artigo 41 da Lei 11.340/06 a manifesta desproporção entre a efetividade garantida pelas medidas protetivas de urgência, no tratamento jurídico da violência doméstica e familiar contra a mulher, e a proibição de aplicação da Lei 9.099/95, principalmente no que se refere às medidas despenalizadoras, o que transborda os latentes - mas suscetíveis de translúcida visualização - limites do princípio da isonomia (art. 5º, caput e inc. I, da Constituição Federal).

Referências bibliográficas

BRITO, Alexis Augusto Couto de. A Lei de Violência Doméstica (Lei n. 11.340/2006) e a Lei n. 9.099/95. Disponível em: <http://www.saraivajur.com.br/doutrinaArtigosDetalhe.cfm?doutrina=902>. Acesso em 14 mar. 2007.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. A Lei Maria da Penha e suas inconstitucionalidades. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1507, 17 ago. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10291>. Acesso em: 30 out. 2007.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS. Jurisprudência. Disponível em: <http://www.tjgo.jus.br>. Acesso em: 18.1.2009.

Notas

[1] “Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.”

[2] Apesar de em parte divergentes da posição sustentada neste ensaio, merecem destaques as palavras conclusivas de Alexis Augusto Couto de Brito (2007, online): “O legislador, ao proibir a aplicação da Lei n. 9.099/95, certamente faz referência a não prisão em flagrante do agressor e à transação penal, institutos nitidamente centrais do procedimento sumaríssimo, este sim o que se procurou evitar. A representação nos crimes de lesão corporal leve e culposa e a Suspensão Condicional do Processo não são parte integrante do procedimento sumaríssimo e, portanto, sua incidência não deve ser afastada da Lei n. 11.340/2006.”

“Não podemos desprezar o fato de que o conjunto de normas penais e processuais penais compõe um sistema, e funcionalmente devem ser interpretadas para que possam responder adequadamente às complexidades que decorram das relações sociais. O sistema deve ser aberto, e interpretar o art. 41 sem a visão proposta acima é mantê-lo (o sistema) fechado a tal ponto que não possa atender às expectativas sociais. A conseqüência inevitável é a criação, e não a resolução de conflitos, obviamente finalidade diversa de todo ordenamento jurídico.”

[3] Se há grave ameaça ou violência contra a pessoa resta impossibilitada a substituição de que trata o art. 44 do Código Penal, contudo, não impede a permuta por multa na forma do art. 60, § 2º, do mesmo Diploma. Vale lembrar que as formas de ‘violência doméstica e familiar’ estão elencadas no art. 7º da Lei 11.340/06 e, dentre elas, existe a violência patrimonial (inc. IV) que pode dar ensejo à substituição de penas (ex: delito previsto no art. 163, caput, do CP).

Sobre o(a) autor(a)
Thiago Amorim dos Reis Carvalho
Thiago Amorim dos Reis Carvalho. Advogado. Especializado em Direito Penal e Processual Penal.
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