Violência doméstica e familiar - Breves comentários ao Art. 7º da lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha)

Violência doméstica e familiar - Breves comentários ao Art. 7º da lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha)

Analisa a natureza jurídica e as formas da violência doméstica e familiar, decorrentes da interpretação do artigo 7º da Lei 11.340/06.

Este artigo se trata de uma lei que ainda está em concretização. Deste modo, enseja muita controvérsia quando lida apressada ou descuidadamente. A polêmica se instaura quando tomamos uma postura meramente legalista, sufragando cegamente o princípio da isonomia, ou igualdade, fora de seu contexto fático. Taxamos, assim, num primeiro momento, a lei 11.340/06 de inconstitucional, o que não se deve admitir, sequer em hipótese.

Não podemos olvidar que, segundo o magistério de Pedro Rui da Fontoura, Porto Promotor de Justiça de Lageado, comarca do Rio Grande do Sul, em singelo artigo [ANOTAÇÕES PRELIMINARES À LEI 11.340/06 E SUA REPERCUSSÃO EM FACE DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS] que cito adiante, a violência contra a mulher “nas classes sociais mais desfavorecidas é resultado do baixo nível educacional, de uma lamentável tradição cultural, do desemprego, drogadicção e alcoolismo (...)” e conclui “(...) o Direito pouco fez para transformar esta realidade cultural, de modo que também a impunidade se erige como um dos fatores criminógenos da violência familiar”. Nesta ótica, seguindo o “telos” da lei 11.340/06, qual seja, desmantelar uma realidade posta, uma lamentável realidade cultural (inculta), e consolidar a justiça em bases concretas, em face de uma situação específica e sem dúvida “peculiar”: a opressão da mulher. No socorro desta intenção, legítima, uma norma também específica e “peculiar”. Daí a intenção da lei em comento, assim evidenciada, não é outra senão contrapor o Direito, ainda que de forma tardia, à esta referida realidade, e neste sentido deve ser interpretada toda a lei 11.340/06, isto é, lançando mão em todo o trabalho hermenêutico ou interpretativo que possa surgir, para materializarmos sua função teleológica, o seu “telos” ou intenção que é, acima de tudo, extinguir a mácula social que constitui a violência domestica e familiar contra a mulher brasileira.

A Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, em seu art. 7º tece algumas considerações e estabelece critérios objetivos para categorizar o que seja a violência doméstica e familiar contra a mulher. Porém, podemos adequá-los a uma classificação técnica, onde as formas principais serão divididas em dois grupos, a saber: o grupo da “vis corporalis” e o da “vis compulsiva”. Em língua vernácula, a violência corporal e a psicológica, sendo esta última, sem dúvida, uma inovação no ordenamento jurídico pátrio uma vez que, como se verá adiante, nunca até então a violência ou grave ameaça foram sempre consideradas, para efeitos penais, expressões sinônimas. Ademais, não podemos reputar a classificação exaurida, posto a existência da expressão final do caput, “entre outras” (formas de violência), como ressalva de implicações extensivas, querendo significar, a princípio, que as formas descritas nos incisos subseqüentes são exemplificativas, isto é, existem outras formas de violência que a lei não menciona.

São portanto sinônimos perfeitos da expressão “violência” e “grave ameaça”, respectivamente, “vis corporalis” e “vis compulsiva”. Ainda que a existência de violência abstrata seja considerada uma forma de violência, preferimos outra terminologia, já existente, neste sentido a grave ameaça, e o fazemos para acentuar suas dessemelhanças e caracterizar a violência de natureza exclusivamente abstrata como, simplesmente, ameaça.

Assim, violência, strictu sensu, ou “vis corporalis”, será designada como constrangimento físico, no qual se subtrai os meios de defesa que poderiam ser opostos ao agressor, bem como as ações que dificulte ou paralise a possibilidade de defesa, tolhendo-se a liberdade de movimentos. Ocorre neste caso a lesão corporal, as vias de fato, ainda que a primeira não seja imprescindível para a caracterização da violência. Há que se observar, contudo, as peculiaridades caracteriológicas ou simplesmente a personalidade da vítima, atendo-se a sua idade, sua condição, compleição física, seu temperamento, sua conduta social etc,. para extrair destes fatores a convicção de que a ação do acusado posso ter causado à vítima o temor eficaz que respalde a noticia criminis e posteriormente a denúncia.

A grave ameaça, strictu sensu, ou “vis compulsiva”, deve ser tida como, por exclusão, toda violência ou ameaça onde inexista a violência corporal. Assim, a gravidade da ameaça pode se configurar por palavras de tom acentuado, gestos ou palavras que inibam a liberdade ou resistência da vítima.

O incido I do art. 7º diz expressamente que a violência física será, para efeitos da lei em análise, entendida como qualquer conduta que ofenda integridade ou saúde corporal da mulher.

Encontramo-nos diante da caracterização da primeira classificação técnica de violência contra a mulher, qual seja, a “vis corporalis” ou lesões corporais que, de plano, subsume todo o rol de condutas elencados no artigo 129 do Decreto-Lei 2.848/40 (Código Penal), atentando a modificação atinente ao §§ 9º e 11 do referido artigo, transcritas no artigo 44 da presente Lei.

O crime de lesões corporais é definido como já foi afirmado no comentário ao caput, a ofensa a integridade corporal, trazendo danos fisiológicos de qualquer ordem, por outro lado, pode acolher a gravidade em várias graduações, aumentando-se a pena de 1/3 (um terço) se resultar a morte. Deve-se ater que na seara da presente lei a palavra da vítima tem acentuada relevância para informar à apuração da responsabilidade criminosa do infrator. No que tange as modificações operadas pela novel lei nos dispositivos indicados supra do Código Penal, serão anotados no comentário do artigo 44 da presente lei.

Adiante temos no inciso II do art. 7º a violência psicológica, que será entendida como qualquer conduta que cause à mulher dano emocional e diminuição da auto-estima bem como as ações que visem degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, pela via da ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

Eis aqui a “vis compulsiva” ou violência psicológica, expressa em todas as suas nuances. Verifique-se que o inciso não faz questão de forma para classificar a conduta como violenta em sentido estrito, bastando a ocorrência de coação em qualquer grau para enquadrar a conduta do acusado ao tipo, que remete aos incisos II e III do art. 5º da Constituição Federal de 1988 que dispõe, litteris:


Art. 5º (omissis):

(...)

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.”


Considera-se, assim, grave ameaça toda e qualquer interferência dolosa ou coação moral, seja no comportamento ou mesmo liberdade de crença ou convicção da vítima, ainda que haja ausência de agressão física para o fito pretendido pelo sujeito ativo, v. g., agressor.

Neste sentido, a simulação de emprego de arma de fogo, ainda que desmuniciada, ou ainda o uso de réplica idônea para subjugar a voluntariedade da vitima não descaracteriza a ameaça grave, pois atinge o propósito do tipo, qual seja, a intimidação, incutir o medo, assim eliminando a resistência da vítima.

O inciso III do art. 7º trata da violência sexual contra a mulher e abrange condutas que atentam diretamente contra a sua liberdade sexual, adquirindo precedentes de importância sem igual no contesto da presente lei.

Podemos dividí-lo, pela sua extensão, em três partes. Primeiramente (a) “a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força”. Em segundo lugar (b) a “que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação”. E finalmente (c) a “que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”.

a) Esta “forma de violência” caracteriza atentado a liberdade sexual strictu sensu. Nela poderemos subsumir as condutas tipificadas nos artigos 213 à 216-A do Código Penal. O estupro, considerado crime hediondo, ainda que em sua forma simples, não necessita de existência de lesões corporais graves ou morte. O atentado violento ao pudor, ou assédio sexual são exemplos também desta forma de violência. Não há que se cogitar da argüição de “obrigações conjugais” ou “exercício regular do direito” quando da relação forçada entre marido e mulher vez que, pela simples concomitância de casamento, não se submeterá a mulher inteiramente a mercê dos caprichos sexuais do esposo, ainda que a cópula intra matrimonium seja dever recíproco dos cônjuges, como querem alguns defensores ultrapassados da velha moral machista, entre eles alguns magistrados que, estribados no art. 23, III, permitem tais abusos inadmissíveis. O congresso sexual, ainda que no âmbito do matrimônio, exige como requisito primordial o consentimento de ambos os envolvidos.

b) O art. 228, § 2º do Código Penal cuida deste tipo de conduta. Entende-se assim o uso de outra pessoa com o fito de obter vantagem ilícita, negociando a sua sexualidade ou a troca de favores ou abuso do corpo da vítima mediante paga ou recompensa, utilizando-se para submeter a mulher ao fito, o expediente da violência ou da grave ameaça. O proxeneta, o rufião são sujeitos ativos do delito, assim o marido ou companheiro inescrupuloso pode ser também. Embora o art. 227 mencione “induzir ou atrair alguém a prostituição”, admitindo inclusive que este alguém seja homem, no contexto da lei em comento, a conduta ilícita se aplica aquele que induz (leia-se, constranja) ou atrai mulher. Há também a supressão de uso de métodos anticoncepcionais ou indução ao matrimônio. Estas condutas, entretanto, precisamente o núcleo induzir, deve ser entendido como coação, onde se suprime a possibilidade de conduta diversa da vítima.

c) Este complemento da norma parece significar um arremate sintético ao extenso conteúdo da norma, sugerindo, outrossim a existência de outras condutas, pelo fato de o legislador tomar mão de definição genérica.

O inciso IV do art. 7º cuida da violência patrimonial e refere neste sentido qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

Com a revogação nos idos de 1962, do artigo 233 do vetusto Código Civil de 1916 (que rezava, litteris: “o marido é o chefe da sociedade conjugal, competindo-lhe portanto, a gestão integral dos negócios e a representação do casal”) pelo advento do Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.161/62), introduziu-se no ordenamento jurídico o conceito de co-gestão dos negócios familiares. O referido artigo 233, após sua revogação guardava ainda na sucedânea redação o ranço patriarcal, onde a função de “chefe”, ainda reservada ao marido, seria exercida com a colaboração da mulher, foi só com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que a isonomia efetiva entre direito e garantias entre homem e mulher, elevou a condição desta última ao ansiado e oportuno patamar igualitário.

Desta forma, no âmbito da lei em evidência, é considerado abuso e violência patrimonial o arbitrarismo por parte do marido ou convivente, quanto a gestão do patrimônio, objetos ou instrumental de que faça uso a mulher para seu labor, bem como a guarda ou retenção de seus documentos pessoais, bens pecuniários ou não, da mulher.

Finalmente, o inciso V do art. 7º cuida da violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Violência moral refere-se ao dano ou tentativa de dano contra a honra ou imagem da mulher, em atendimento ao inciso X do art. 5º da Constituição Federal de 1988. Neste sentido, qualquer forma de conduta que viole sua intimidade ou idoneidade, prolatando calunias, atribuindo-lhe falsamente atos que não praticou, ou a difamando, revelando segredos ou fatos que só dizem respeito a ela mesma ou ao âmbito de sua intimidade, ou ainda, maldizendo-a, prolatando juízos excusos ou ofensivos, são harmônicos com o tipo em epígrafe.

Tais são, em linhas gerais, as definições basilares quanto a definição do que configura a violência doméstica e familiar, no âmbito da lei 11.340/06, lei que, diga-se de passagem veio um tanto quanto tarde, mas ainda assim em boa hora. Conhece-la profundamente, divulgar seu conteúdo e estuda-la é não apenas gratificante como um dever de todos, não apenas dos operadores do direito e magistrados, e é também um ato nobre de cidadania, sem a qual não se pode concretizar a meta de nossa sociedade, o implemento da justiça.

Sobre o(a) autor(a)
Emanuel Flávio Fiel Pavoni
Advogado militante na área cível, criminal e trabalhista no Município de Rondonópolis / MT e região.
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