Precedentes sobre escravidão e segregação racial no Direito Norte-Americano de 1839 a 1954

Precedentes sobre escravidão e segregação racial no Direito Norte-Americano de 1839 a 1954

Trata-se de uma revisão de literatura sobre os principais precedentes da Suprema Corte Norte-americana sobre escravidão e segregação racial, com ênfase na aplicação da cláusula do equal protection trazida pela Emenda XIV da Constituição Norte-americana.

A Suprema Corte norte-americana enfrentou a questão da escravidão pela primeira vez no caso United States v. Libellants and Claimants of the Schooner Amistad (1841), que teve início em 27 de junho de 1839, quando uma embarcação de nome L’amistad estava em direção a Cuba. A tripulação trazia consigo negros para serem vendidos como escravos. Os negros aprisionados em L’amistad se revoltaram e conseguiram tomar o controle da embarcação. Os negros, posteriormente, tentaram retornar para a África, mas foram capturados pela Marinha norte-americana e levados para Long Island. Em setembro de 1839, os membros sobreviventes da tripulação de L’amistad ajuizaram demandas nos EUA, nas quais alegaram ter a propriedade dos negros e das mercadorias a bordo do navio.

Quando o caso chegou ao conhecimento da Suprema Corte norte-americana, o Tribunal asseverou que os negros, em nenhuma circunstância, poderiam ser considerados mercadoria. Além disso, a Suprema Corte entendeu que as provas trazidas nos autos demonstravam que os negros capturados nunca foram escravos, nem poderiam ser considerados piratas ou ladrões. Por fim, o Excelso Tribunal norte-americano determinou que os negros fossem postos em liberdade imediatamente e mandados de volta para a África, fato que ocorreu em 1842.

Outro precedente sobre escravidão no direito norte-americano foi o caso Dred Scott v. Sanford (1857). Dred Scott era um escravo que pleiteou sua liberdade, fundamentando seu pedido no Missouri Compromise Act, uma lei que assegurava aos escravos dos novos territórios federais o direito à liberdade. A Suprema Corte norte-americana, ao examinar o caso, decidiu pela inconstitucionalidade da citada lei. A Corte entendeu, na ocasião, que o Congresso Nacional não tinha poderes para banir a escravidão, mesmo em território federal e que Dred Scott não poderia ser considerado cidadão americano, pois os negros não faziam parte do povo americano.

Em 1859, a questão voltou a ser tratada pela Suprema Corte norte-americana no caso Ableman v. Booth (1859). Em 1854, Booth, um abolicionista, foi preso por violação do “Fugitive Slave Act”, por ter ajudado a fuga de um escravo perseguido pelo policial Ableman. Booth, então, apelou para a Corte estadual de Wisconsin, que decidiu que a lei federal era inconstitucional e ordenou a soltura de Booth.

O caso então chegou a Suprema Corte dos Estados Unidos, que decidiu que os estados membros não tinham poder para rever ou declarar a inconstitucionalidade de leis e atos normativos federais. A decisão no caso Ableman v. Booth (1859) representou uma das últimas vitórias dos escravocratas contra os abolicionistas, uma vez que, apenas 02 (dois) anos depois dessa decisão, os Estados Unidos se dividiriam no confronto civil mais sangrento de sua história, a chamada guerra de secessão. O caso também representou o fortalecimento do governo federal em relação aos governos estaduais.

Para melhor entender o contexto histórico, entre 1861 até 1865, os Estados Unidos da América estiveram envolvidos na chamada guerra de secessão. Em 1863, houve a abolição da escravidão nos EUA com o “Emancipation Proclamation”, do então Presidente Abrahan Lincoln.

Com o fim da escravidão nos EUA, a luta dos negros norte-americanos passou a ser contra a segregação racial. É importante destacar que, em 1870, foi aprovado um importante mecanismo contra a discriminação, a Emenda XIV da Constituição norte-americana, cujo texto assim dispõe, in verbis:

1. Todas as pessoas nascidas e naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas a sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e dos estados em que residem. Nenhum Estado poderá fazer ou criar qualquer lei que crie privilégios e imunidades para cidadãos dos Estados Unidos; nenhum Estado poderá privar qualquer pessoa da vida, liberdade e propriedade sem o devido processo legal; nem negar para quaisquer pessoas em sua jurisdição a igual proteção das leis. (grifei).

Posteriormente, a Suprema Corte norte-americana julgou os casos que ficaram conhecidos como Slaughterhouse Cases (1872). O caso envolvia três demandas ajuizadas por companhias de empacotamento de carne do Estado de Louisiana, que desafiaram uma lei estadual que concedeu a um único açougue o monopólio no armazenamento de carnes em New Orleans. As outras empresas existentes na região eram obrigadas a pagar uma taxa para armazenar carne. As empresas prejudicadas alegaram que a lei estadual violava a cláusula do “equal protection” trazida pela Emenda XIV.

O Excelso Tribunal norte-americano firmou o posicionamento no sentido de que a cláusula do “equal protection” representava apenas uma proteção em âmbito nacional. A Corte entendeu que a cláusula das imunidades e dos privilégios trazidos pela Emenda XIV protegia apenas os direitos dos cidadãos contra as ações do Governo Federal, não abrangendo, assim, as ações dos estados membros ou de particulares.

Um caso aparente despretensioso trouxe a discussão sobre a aplicação da cláusula do “equal protection” em âmbito estadual. Embora a questão discutida tenha sido o monopólio no empacotamento de carne, a decisão estendeu-se para outros casos e possibilitou o tratamento desigual de indivíduos por leis estaduais. Representou, infelizmente, o esvaziamento da cláusula do “equal protection” trazida pela Emenda XIV.

Outros casos interessantes sobre a Emenda XIV foram julgados conjuntamente no precedente Civil Rights Cases (1895). Tratava-se, na verdade, de várias demandas em que se examinava a constitucionalidade do Civil Rights Act de 1875. Tal norma garantia a qualquer um, seja qual fosse sua raça ou cor, o mesmo tratamento nas acomodações abertas ao público.

Os negros, em síntese, protestavam por terem sido expulsos de restaurantes, casas de espetáculos e teatros. Na opinião dos demandantes, o Governo Federal tinha a autoridade conferida pela Emenda XIV para proteger todos os cidadãos de ações públicas estaduais ou privadas contrárias a seus direitos.

Apesar da brilhante argumentação, a Suprema Corte, em decisão por ampla maioria, estabeleceu que o “Civil Rights Act” de 1875 era inconstitucional. Entendeu que a Emenda XIV não dava poderes ao Congresso norte-americano para legislar em matérias de discriminação racial. A Emenda XIV seria aplicável apenas para o Governo Federal. Como conseqüência dessa decisão, houve a expansão da segregação de negros nos espaços privados, nos empregos e na vida pública. Tal decisão também ocasionou a proliferação de locais em que somente brancos eram aceitos.

Em 1896, o caso Plessy v. Ferguson foi analisado pela Suprema Corte norte-americana. Em 1890, uma lei do Estado de Louisiana estabeleceu que as estações ferroviárias devessem providenciar vagões separados e iguais para negros e brancos. Plessy, cidadão moreno claro, resolveu comprar um bilhete de 1ª classe em um vagão destinado aos brancos. Plessy foi preso por violação da lei estadual. Então, ele ajuizou uma demanda perante uma Corte Federal, com a afirmação de que a lei estadual era inconstitucional, por ofensa às Emendas XIII e XIV. A Suprema Corte, numa de suas decisões mais contestadas, decidiu que a Emenda XIII, que aboliu a escravidão, não protegia os negros contra leis estaduais que os tratassem de forma desigual. Sendo assim, foi amplamente aceita a doutrina do “separate but equal”, ou seja, que os negros e os brancos eram iguais, mas deveriam permanecer separados. Era a pedra final do muro da segregação racial construído nos Estados Unidos.

Causa espanto que o precedente Plessy v. Ferguson (1896) veio a ser superado somente com o caso Brown v. Board of Education of Topeka (1954), em que a Suprema Corte finalmente estabeleceu o entendimento de que a doutrina do “separate but equal” feria a cláusula do “equal protection” prevista na Emenda XIV.

Por todo o exposto, nota-se que a Emenda XIV da Constituição norte-americana aprovada em 1870 deu todas as ferramentas necessárias para que não houvesse segregação racial nos Estados Unidos. No entanto, percebe-se que uma interpretação extremamente restritiva da cláusula do “equal protection” conferida pela Suprema Corte, talvez em atendimento aos anseios da sociedade conservadora da época, permitiu que a segregação racial fosse praticada de forma ostensiva até a década de 1960, quando o advento do movimento de luta pelos direitos civis liderado por Martin Luther King sedimentou as bases para o fim da segregação racial praticada naquele país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Bruno Fontenele Cabral
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