Escravidão contemporânea: mal que subsiste à abolição

Escravidão contemporânea: mal que subsiste à abolição

Trata da escravidão sob um enfoque atual, correlacionando-a à globalização. Demonstra que a escravidão de hoje não é marcada pelo confinamento, e sim pela desvalorização do homem.

Antes de instaurar o debate principal deste trabalho, queremos, desde logo, esclarecer que, a escravidão aqui tratada, é um gênero de muitas espécies, não estando, por isto, limitada sob uma determinada forma, ou, atrelada a uma única idéia. Nossa intenção é abrir um painel expositivo, demonstrando que a “escravidão” permanece intacta até nossos dias, e mais, que dentro da conjectura societária atual, esboça novas formas e modelos.

Preliminarmente, é importante ressaltar que, a escravidão se mostra tão antiga quanto a sociedade humana, pois, utilizando-se das mais variadas formas de dominação, o homem sempre que pode, subjugou seu semelhante; como se toda sua glória e poder ensejasse para sua notoriedade, uma platéia considerável de seres servis.

Conceitualmente, mas, em sentido estrito, a escravidão pode ser definida como uma prática social, onde um ser humano detém “direito de propriedade” [1] sobre outrem. Certamente, esta é sua forma clássica. Embora, se mostre sucinta e objetiva demais, para descrever um dos piores fenômenos humanos.

Pois bem, numa visão muito mais ampla, a escravidão, hoje, se aproxima da idéia que embasa o conceito de “Castas”, na Índia. Onde, há sim uma distinção social entre os indivíduos, mas não, necessariamente, adstrita à questão da raça, como ocorreu na época da colonização do Brasil, em que os negros foram escravizados, bem como os índios o foram durante certo tempo, estes últimos, libertos tão-somente, por força da alta taxa de mortandade, o que encarecia o processo como um todo e, conseqüentemente, reduzia substancialmente o lucro.

A escravidão do homem remonta o tempo, ocorre desde os primórdios das comunidades humanas; advinda como triunfo desde as primeiras lutas, teve sua origem no direito da força. Os “Guerreiros valentes” incorporavam o patrimônio dos vencidos, bem como os próprios vencidos tornavam-se patrimônio. Talvez, nasça com ela, concomitantemente, a maior das dúvidas jurídicas, quando e onde, fomos ou deixamos de ser, sujeitos ou objetos de direito. Certamente, de forma bastante simplista, tal dúvida foi assinalada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: “Antigamente, os escravos tinham um senhor, os de hoje trocam de dono e nunca sabem o que esperar do dia seguinte”.

Assim como no sistema das “Castas”, a escravidão, hoje, se volta à distinção obtida através do “status” social. O que difere, em verdade, é que no sistema indiano há uma pseudológica religiosa, e se perfaz em justificativa. Posto que, quatro são as principais castas, e esta divisão, ou melhor, estes grupos, se dispõem de acordo com a estrutura física do Deus Brahma: A cabeça (Brahmim) representa os religiosos; os braços (Veishya) são os guerreiros e militares; os joelhos (Kshathriya) representam os nobres e os ricos; os pés (Shudra) são os fazendeiros e comerciantes. E, aqueles que não se enquadram em nenhuma destas ramificações sociais, são considerados a poeira que se submete aos pés do Brahma, e, por isto, não pertence às castas. São estes nomeados como: Parias, e compõem a escória da sociedade indiana. E, se reportamo-nos à atual cultura ocidental em que vivemos, os sujeitos que ocupam este cenário são aqueles que se encontram abaixo da linha da pobreza, desprovidos de qualquer oportunidade de participação na vida social.

Aqui cabe um parêntese para questionar esta forma diferenciada de escravidão, distante da velha idéia de aprisionamento ou confinamento. A escravidão que começamos a descrever é um critério impeditivo de expansão social, que tolhe oportunidades, que fada o indivíduo à detenção sem grades ou grilhões. E, talvez, esta obscuridade, torne esta escravidão ainda mais agressiva ou violenta, porque não aspira abolição.

A questão escravismo não se altera pela existência ou não, de um direito positivo ou positivado, tanto que, muito embora, legislação brasileira estabeleça que o empresário é o responsável legal por todas as relações trabalhistas havidas ou advindas das atividades de seu negócio. Temos também, as disposições contidas no artigo 149 do Código Penal, delito em que se descreve a conduta daquele submete alguém as condições análogas a de escravo, existente em nosso direito positivo desde o início do século passado. A extensão da legislação trabalhista no meio rural também não é recente, tendo mais de 30 anos, conforme se verifica na Lei n.º 5.889 de 08/06/1973. Ademais, foram ratificadas pelo Brasil, as convenções internacionais que tratam da escravidão contemporânea, ou seja, as convenções número 29, de 1930, e 105, de 1957 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Por fim, há ainda a declaração de Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho, datada de 1998.

E segundo o sociólogo norte-americano Kevin Bales, considerado um dos maiores especialistas no tema da escravatura contemporânea, que traça em seu livro "Disposable People: New Slavery in the Global Economy" (Gente Descartável: A Nova Escravidão na Economia Mundial), a escravidão hoje, não só existe, como também, torna-se muito mais vantajosa ao empresário do que foi outrora ao senhor de escravos.

Hoje, os escravos são extremamente baratos e abundantes, e assim descartáveis. Historicamente, o investimento de comprar um escravo incentivava ao “senhor” lhe fornecer um padrão do mínimo de cuidados, assegurando assim, um escravo saudável o suficiente para trabalhar e gerar lucro. Hoje o interesse não está em “possuir” escravos, somente em controla-los, sendo interessante explora-los pelo período em que eles próprios se mantiverem rentáveis. (tradução nossa).

Essa “Gente Descartável” descrita por Bales, vive e participa de uma nova escravatura que se processa como forma de adaptação à globalização. A nova escravatura coloca pessoas ao subjugo de forças econômicas e sociais que a sustentam, desde a corrupção dos governos locais até à cumplicidade das grandes organizações nacionais ou multinacionais.

E tal apontamento, não difere daquilo que nos é dito por Manuel Giraldes em seu artigo: Escravatura Global:

Porque, antes, o escravo era um ‘bem’ caro e raro, e por isso mesmo merecedor de certos cuidados. Mas, nos tempos que correm, a própria lei da oferta e da procura se encarregou de baratear e de desvalorizar o “produto”. Com a explosão demográfica, o aumento da pobreza e da exclusão social geradas pelo sempre crescente alargamento do fosso que separa ricos e pobres, o torrencial fluxo de imigrantes que se sujeitam a tudo para tentarem encontrar na metade abastada do mundo um modo qualquer de subsistência, “matéria-prima” não falta. E se o escravo moderno enfraquece ou adoece, arranja-se outro. Que as prateleiras dos armazéns globais estão cheias de gente desesperada”.

E, ratificando esta colocação, temos Gerhard Grube , quando nos diz:

Justiça social e escravidão são antônimos. São inversamente proporcionais. Por um pode-se medir o outro. Ausência de escravidão só com igualdade social plena. Escravos só deixarão de existir quando deixarem de existir aqueles que promovem injustiça social. Direta e indiretamente. [...] Alguém, tirado à força de seu meio, obrigado a trabalhar sem remuneração e impedido em sua liberdade é, sem dúvida nenhuma, um escravo. [...] Mas nem sempre isto é tão evidente. É difícil definir escravidão. A característica mais importante deve ser a coação, explícita ou velada. Mesmo quando não existe impedimento de ir e vir ou de fazer o que quiser. [2]

Todavia, este modelo social não é uma expressão de vanguarda, pois, já se fazia evidente durante o período medieval, conforme a descrição de papéis e afazeres da sociedade feudal feita por J. Isaac, onde nos diz que: “A sociedade feudal é fundada na desigualdade. E nela há três tipos de homens: Os nobres combatem, os camponeses trabalham e o clero que reza”. [3]

De tal modo, percebemos que escravidão, sob qualquer foco, não é uma problemática atual, tampouco, inteiramente social; há sempre um estreitamento entre as questões sociais e as políticas, e a convergência de ambas à cidadania.

Indaga-se, pois, no que consiste a escravidão vivida em nossos dias? Se tomarmos a palavra, afastada de todo e qualquer neologismo, encontramos uma semântica que aponta para: subjugo, servidão, sujeição e tirania. E, a partir daí, insurge-se uma nova perquirição: Somos todos inimputáveis à esta patologia sócio-cultural? De pronto, surge uma resposta, e, embora, imediata, nada leviana: Não!

Ora, se a realidade do mundo globalizado nos impõe uma universalidade de oportunidades, ao mesmo passo, impõe também, o ranço e o mofo da escravidão. Seria duvidoso pensar que, o “dumping” (colocar no mercado exterior produtos com preço abaixo daquele praticado dentro do país de origem) ou o “underselling”(venda no mercado externo ou interno de produtos abaixo de seu valor de custo, até angariar o domínio da praça de atuação), ou ainda, o preço predatório (configuração extremada de concorrência desleal, que promove a venda de produtos por um preço impraticável).

E, embora, estas sejam práticas desleais, totalmente, repreensíveis sob o ponto de vista do comércio exterior, são também, inegavelmente, muito empreendidas pelo bloco dos “Tigres Asiáticos” (Japão, China, Formosa/Taiwan, Cingapura, Hong kong e Coréia do Sul), especialmente, a China, entusiastas deste acesso à aldeia global, abarcam o mundo com seus produtos manufaturados, a preços módicos e famélicos, e porque não dizer: vis. Torna-se propício, novamente, indagar: Como se consegue tamanha proeza, sem que para isto, haja falta ou inobservância dos padrões trabalhistas internacionalmente reconhecidos; sem que haja exploração do trabalho infantil ou utilização do trabalho escravo[4]; onde a jornada habitual de trabalho ultrapassa o limite de 12 horas diárias, incluindo os finais de semana. E, a realidade que agora pontuamos, retrata um país, que de acordo com relatório elaborado pelo governo chinês e publicado pelo jornal oficial China Daily, vislumbra o percentual de 13% dos assalariados que recebem menos do que o salário mínimo estabelecido pelo governo, e 8% de trabalhadores que jamais recebem seus salários ou que os recebem fora do prazo previsto[5], sim, previsto, mas, não contratado. Porque sabidamente, num país que possuí um contingente demográfico de 1 bilhão e 313 milhões de habitantes (estimativa para Julho de 2006), totalizando 22% da população mundial, a mão-de-obra subcontratada e clandestina encontra-se em crescimento, fator que contribui para a discriminação no campo da remuneração e todas as demais condições de trabalho.

Quem demarcou esta questão, precisamente em 2005, foi Marcos S. Jank:

Pouca gente sabe que não há livre mobilidade de pessoas do campo para as cidades na China, já que o governo coíbe a migração ao não garantir direitos sociais àqueles que não têm permissão de trabalho”. [6]

A colocação de Jank nos abre uma fresta para a lamentável visão, de que existem sentimentos nacionais de rejeição à livre circulação de trabalhadores. Ou seja, não só um bloqueio de liberdade de ir e vir, nem só um cerceamento de possibilidades empregatícias; estamos tratando de uma violação aos direitos humanos, quando, sabidamente, a liberdade de trabalho ultrapassa as fronteiras do positivismo legal para aportar os ditames e regras de um direito jusnaturalista. Sim, é o um homem cidadão do mundo, mas o caso em tela, nos impulsiona a dizer que, na pior das hipóteses, deveria ao menos, possuir uma plena cidadania em seu país de origem.

Hoje, nossa experiência de vida se funda nos escombros e se estabelece no rescaldo de todas as revoluções históricas, passando, inclusive, pela balela do homem visionado pelo liberalismo, sendo um ser ilusório, por vezes, um ilusionista, desnorteado entre o “ser” e o “dever ser”. Não somos senhorio de direitos, tal e qual pregava o iluminismo, tampouco, participante vivazes da sociedade que nos sitia, mais que tudo, não alcançamos a igualização; e, desproporcionalmente, há sempre alguns mais iguais que outros. O mundo, agora, se divide em Blocos, Comunidades, e diante dessas gigantescas “tribos”, o cidadão universal se esvai. Percebemos que não se trata de um, ou mais um êngodo havido entre os homens. Nossa experiência atual aponta uma simbologia e uma realidade divergente e díspar do imaginário humano. É a falácia do bem comum?

Estamos falando de tempos modernos, embora, nos pareça tão atual a explanação de Aristóteles enquanto definia a distinção existente entres os homens na Grécia antiga, em que fazia uma diferenciação na composição das esferas sociais, calcado em uma lógica expositiva de uma realidade fragmentada, diante das diversas esferas sociais, grupos ou as estirpes. Embora, os anseios vividos por Aristóteles, viriam, posteriormente, nos definir a democracia como: “governo dos homens livres”. Sim, tão livres, a ponto de experimentarem uma soberania popular oposta e antagônica àquilo que em outros períodos históricos teria sido Império ou Reino.

Concluímos convictos de que, a escravidão permanece intacta, e assim estará, enquanto o número de propriedades expressarem a representarem valores humanos; estará vigente, sempre e quando, o homem for impedido de ascender socialmente; enquanto for marcado como gado pelo estigma que o fada ser àquilo que foram seus antepassados; estará à vista e à mostra no poderio econômico-financeiro que suplanta talentos; far-se-á evidente na essência ainda faminta do homem que trabalha tão-somente pela troca injusta do alimento; mas, acima de tudo, lançará ao rol dos culpados aquele que, diante de melhor “sorte”, encilha seres de sua própria espécie, para um galope alucinante, pelos campos verdes: do poder, das posses e privilégios.



Referências bibliográficas


[1] “Direito de propriedade é a faculdade de adquirir e usar as coisas como próprias, segundo Deus e segundo as leis”. (Afonso X, o Sábio).


[2] GRUBE, Gerhard. “Escravidão”, in Centro de Mídia Independente – CMI/Brasil, 08/01/2005.


[3] ISAAC, Jules ; ALBA, André. Curso de História - Idade Média. São Paulo: Mestre Jou, 1967. p. 7.


[4] Resolução legislativa do Parlamento Europeu sobre as perspectivas das relações comerciais entre a União Européia e a China (2005/2015), de 13 de Outubro de 2005 – Bruxelas – Artigo 49, parte final: Requer ainda à China que adapte medidas para combater eficazmente quaisquer formas modernas de escravatura, de trabalho infantil e de exploração, sobretudo de exploração das mulheres no trabalho, por forma a que sejam respeitados os direitos fundamentais dos trabalhadores e eliminada a possibilidade de "dumping" social.


[5] Fonte de dados estatísticos: Revista Fórum - De Publisher Brasil.


[6] In China – Os segredos de seu crescimento – “O Estado de São Paulo” – 04.01.2005, p. A2.

Sobre o(a) autor(a)
Suzana J. de Oliveira Carmo
Funcionária do Tribunal de Justiça de São Paulo, Especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional – ESDC/SP.; Especialista em Direito Processual Civil pela Coordenadoria Geral de...
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