Moralidade, justiça e criminalidade
Controvérsias que os ramos do direito positivo e natural possuem com relação a moral, como fonte complementar de direito, na criminalidade.
Pretendemos retratar um tenebroso mural: o mundo e do submundo do judiciário, da polícia, dos causídicos. Denotar a falta de habilidade do ser humano para viver. Colocamos em destaque a Justiça. Trata-se de visão do mundo, conforme o complexo das modalidades de convivência que, a todo o momento atormentam o nosso cotidiano.
Contudo, não indicamos soluções que possam contribuir para a reversão deste quadro melancólico, pois apenas estabelecemos um patamar mínimo para reflexão, trazendo hipóteses de criminalidade que fazem parte do nosso cotidiano urbano e forense. Analisando e comparando os aspectos da nossa miséria moral como fonte de conflitos.
São as mazelas que denunciam a fragilidade do sistema judiciário e a ausência de ética e moralidade em todos os níveis das relações sociais. São contos bandidos que se mostram implacavelmente atuais.
A hipocrisia e a injustiça caminham juntas pelo que se sabe: onde há verdade, não há necessidade de justiça, pois esta se percebe como irrelevante. Destaca-se que a hipocrisia é o que sustenta e mantém nossos comportamentos e nossa intrincada cadeia de relacionamentos. Um exemplo bem contemporâneo está incrustado em nossa classe política que nunca esteve tão desprestigiada em meio a tantos escândalos e demonstrações descaradas de falta de ética. Porém, ainda assim, percebemos o reflexo de nossa sociedade nela. Por debaixo de nossas máscaras e fantasias, somos irmãos em desejos, sofremos as mesmas frustrações, sendo que as soluções que nos socorrem são bastante semelhantes. Não resta dúvida de que a violência física decorre na grande maioria dos casos daquela violência imprópria gerada pela hipocrisia incrementada em nosso trato social.
Com educação pode-se erradicar a miséria, transformando a ignorância em sabedoria, pode-se ampliar a consciência das pessoas, formando autênticos cidadãos. Quanta miséria caberá ainda neste Brasil que quer ser rico, mas é apenas mesquinho, que finge ser grande, quando grande é a sombra das lágrimas dos que choram pelos equívocos e injustiças cometidos justamente contra os mais necessitados? É na ignorância do povo onde reside a força daqueles que detêm o poder.
Procuramos incansavelmente o significado da palavra Justiça. Muitas vezes confundimo-la com o significado da expressão jurídica da lei. Deparamo-nos com o Poder Judiciário sucumbindo ante ao conflito dos termos: Justiça, Direito Positivo e Direito Natural. A velha questão que envolve o Direito Positivo e sua posição frente ao Direito Natural. De toda a forma, o ser humano perdeu o norte de suas relações. Desconhece o caminho correto que tende a levá-lo aos campos dos valores da moral, da ética e do respeito à instituição familiar.
Precisamos refletir sobre o caminho da ineficiência no qual a Justiça enveredou, pois o poder econômico e político são o diferencial que estabelece critérios para se fazer cumprir a lei, segundo a sua interpretação dentro do ordenamento jurídico.
Neste ínterim, questionamo-nos qual a responsabilidade da mídia? Quando explora a violência, por que não estabelece uma postura mais crítica em vez de se preocupar simplesmente em seguir o seu programa editorial imundo e tendencioso, uma vez que, antes de se preocupar com o problema social, admite querer alcançar tão somente o lucro. Porque querem estabelecer a ordem e a disciplina no exercício de sua missão profissional, enquanto outros fecham os olhos, estendem a mão sucumbindo à corrupção.
Que as conjecturas dêem lugar a novas idéias que efetivamente venham apontar um novo caminho para a moralidade; que a Justiça não permaneça cega na acepção da palavra, mas para aplicar a justiça; que os homens encarregados de fazer cumprir a Lei sejam inspirados pelo poder Divino para o bem do cidadão.
O processo de formação do Estado brasileiro e seus desdobramentos, de fato, contribuíram sensivelmente para o desenvolvimento e a quase impossibilidade de eliminação de determinados traços de nosso caráter que, de certa forma, explicam algumas das facetas indesejáveis de nosso comportamento social, as quais se refletem, particularmente, no plano das relações entre o Estado e a Nação, ou entre governantes e governados, como é o caso da aplicação da Justiça, bem mais do que no das relações interpessoais.
A convicção de que o poder pertence, de direito, ao povo; este, ao escolher seus representantes, cede-lhes parte desse direito – particularmente o de criar as regras que regem as relações de dada sociedade. Os representantes, em contrapartida, assumem o dever de bem gerir a prestação administrativa, legislativa e judicial, na condução dos destinos do povo pela senda do bem-comum. O governo, portanto – aí entendido como a integração dos três Poderes - é claramente visto como um mandatário do povo – ainda que a Justiça, no Brasil, não seja eletiva – incumbido de, em seu nome, exercer adequada e honestamente o poder que lhe foi outorgado. Se não, que seja destituído, pelo voto ou pela força.
A prática de distribuir privilégios e benesses a quem integrasse a nobreza – as “famílias”, alçadas ao topo da pirâmide social pelo sangue ou pela riqueza – e de deixar à mercê do destino os incapazes de tanto. Em suma, especializaram-se os donos do poder e parceiros do rei em fazer da res publica, uma res privata, o que se poderia traduzir, em quaisquer atividades, mas particularmente na Justiça, pela máxima “aos amigos, tudo; aos indiferentes, a lei; aos inimigos, a morte”. E da parte dos menos aquinhoados, pelo dito “quem tem padrinho não morre pagão”. Curiosos, os agrupamentos sociais formados: as “famílias de bem-nascidos” - hoje “panelas”, “patotas”, “igrejinhas”, “cartórios”, “corriolas” . A plebe de mal-nascidos, buscando “padrinhos”, “pistolões”, ou o que mais que lhes permitisse vencer facilmente na vida, escapando aos enviesados e burocráticos caminhos da lei, e, quando necessário, livrando-se do longo e pesado braço da Justiça. Aqui, o poder pertencia de fato aos influentes, que o repartiam entre si mesmos e seus apaniguados. Desse conluio brotou a mais bastarda das filhas – a imorredoura corrupção. Essa, a essência do patrimonialismo.
Não é difícil entrever, nesse arrazoado histórico, as raízes de certos comportamentos. Um dos mais graves deles é a ignorância de que o ordenamento jurídico se destina não apenas a garantir os direitos fundamentais de pessoas, mas também a harmonizar seu convívio – o chamado Estado de Direito. Todavia, na busca incessante de sobrevivência, enriquecimento, poder, reconhecimento e outros anseios definidos na pirâmide social, com freqüência, desconsideramos o princípio indiscutível de que os direitos de um se encerram quando se iniciam os de outrem. Daí nascem os infindáveis conflitos e lides que compete à Justiça dirimir, et pour cause, é no seu âmbito que mais se refletem nossos vícios ancestrais. Todavia, os que a exercem, por serem igualmente humanos e, como tal, portadores dos mesmos traços, também falham com freqüência. Essa multiplicidade de equívocos – dos que procedem à margem da Justiça, dos que a demandam de má-fé, dos que a exercem mal et alii – bem caracteriza o mencionado processo de malogro de uma sociedade que perdeu a bússola moral, que permeia, um a um, são mazelas que deveríamos, desde há muito, ter extirpado, ao invés de insistirmos em justificá-las como herança patrimonialista ibérica.
Outorgamos subservientemente o trato solene e formal aos poderosos pelo cargo ou pelo dinheiro, muito mais pelo fato de deterem o poder, do que por sua capacidade profissional ou integridade moral. Apegamo-nos bem mais à forma da lei – “vale o escrito”- do que à sua essência. Relevamos o ato ilícito, se ele denota “esperteza”, beneficia o autor e tem o doce sabor do logro impune da autoridade - esse dicotômico pai e padrasto, amado quando premia, odiado quando pune; e nessa ambivalência, ora o alijamos, ora o reconduzimos ao poder, navegando em círculos no pélago social, sem chegarmos a um porto seguro. Buscamos a vantagem pessoal a qualquer preço, sem remorsos pela inevitável desvantagem que causaremos a outrem. Exercemos o preconceito contra os mal-nascidos, tanto quanto contra eventuais bem-nascidos que com os primeiros se miscigenem ou convivam a qualquer título. Louvamos a ética do atalho, da busca de resultados sem esforço; e assim, embora deploremos no atacado a corrupção, a pirataria autoral e a sonegação tributária recorrentes nos altos escalões, não hesitamos em praticá-las no varejo, com o guarda da esquina, o camelô ou o Fisco. Clamamos contra a incapacidade do governo de pôr cobro à violência incontida das ruas e do campo, mas com esta compactuamos. Rotulamos amiúde as polícias como ineficazes e corruptas, quando a criminalidade impera; e se sua ação resulta exitosa, à conta do emprego da força, censuramo-las por supostos excessos cometidos contra marginais, antes temidos, e dos quais agora nos compadecemos. Indignamo-nos com as trocas de favores entre os poderosos, mas cuidamos sempre de nos acercar de alguns deles, para recorrermos ao mesmo expediente, em nosso benefício.
Não estão, pois, sós nos Tribunais os Juízes; para que atuem - nunca de ofício, mas quando acionados -, aplicando as leis que não lhe cabe promulgar nem sancionar, faz-se mister purificar também todos os atores correlatos – Parlamento, Polícias, Ministério Público, Serventias, Advocacias públicas e privadas. O objeto maior da trama: nós, cidadãos, e nossas instituições. Tarefa hercúlea, eis que o mal nos ronda, demonstram-no os contos que circundam nosso dia-a-dia e formam nossa história. É certo não ter esse mal a dimensão do Brasil, por ser obra de minorias; mas ecoa, em altissonante falácia de generalização, como se impresso estivesse em nossas almas. E mais o agravamos, ao tentarmos resolvê-lo, mormente pelo jeitinho, eis que, ao termo e ao cabo, invariavelmente, tanto servimos quanto saboreamos a crítica e circular iguaria napolitana que hoje nos simboliza.
Quem sabe, servir-nos-á entendermos em definitivo não haver esperanças fora do Direito e da Justiça. E quem sabe, assim pensando, seremos capazes de dar partida, aqui e agora, com empenho inabalável, à busca do futuro que espelhará nossa grandeza, lançando ao limbo da História o desânimo e a autoflagelação pelo passado que reflete nossa rudeza.
Vivemos em uma época em que dizer a verdade, falar palavras de baixo calão e mostrar a violência é considerado um ato normal. Tratar de justiça e discursar sobre política de segurança pública hoje é tema debatido por qualquer grupo social que fala sobre o tema como se fosse um PhD no assunto.
A quantidade de injustiça, seja ela social ou moral, é aqui tratada fielmente. A perplexidade de se passar por longos períodos sem que se possa perceber grandes mudanças merecedoras do acolhimento, que a tecnologia criada por nós assim deveria contemplar, mantém atualidade. Isso é o que preocupa ou nos incomoda, porque demonstra a incapacidade de lidarmos com nosso problema. Na sociedade em que vivemos hoje, não temos pais assumindo culpa pelos filhos, mas temos filhos que planejam e executam as mortes de seus pais ou de pais que matam impiedosamente seus filhos. A violência não está só na favela, na casa de pessoas pobres ou com pessoas que não tem mesmo um só centavo no bolso. A violência está no condomínio de luxo, no advogado formado, no poder público, nos homens da lei. A miséria que todos culpavam antigamente ser a causa da violência, hoje ganha outro nome: ganância, liberdade e falta de senso da realidade.
Passamos, agora, a demandar o tema com nossos próprios conceitos, fazendo as devidas referências às obras que constroem a ciência do Direito para melhor abrilhantarmos o debate.
Antes de mais nada, passamos a definir o Estado e qual é a sua função dentro de uma dada sociedade. O Estado existe como uma instituição dotada de poder, que visa à ordem e à segurança das relações jurídicas e sociais. Por outro lado, é ficção dotada de vícios, uma vez que este passa a se tornar um produto da sociedade dividida por antagonismos irreconciliáveis. É poder evocado, a fim de conciliar os conflitos entre as mais diferentes classes que a compõem. O poder exercido pelos agentes políticos da sociedade muitas vezes é confundido pelos seus próprios agentes na forma de abuso, pela especialidade de desvio do poder, no sentido de que confunde o administrador a coisa pública como coisa particular. Hoje, o complexo social que nos orienta é tido como desenvolvido, certo que a forma de dominação exercida pelo poder público é calcada na lei. Porém, fatores históricos tão arraigados em nossa estrutura política são próprios a definir ou deixar aparentar formas obscuras de dominação conceituadas por uma tradição administrativa do patrimonialismo, ou seja, presença do abuso de poder externado pelo desvio de finalidade que é desempenhado pela confusão que o agente público exerce sobre as atividades do Estado, porque este se utiliza da máquina administrativa como se sua fosse.
Para Max Weber, Estado é uma estrutura política que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física, em determinado território. Ainda ele define que poder é a imposição de vontade, manifestada de modo institucionalizado, por meio de autoridade de quem a exerce, referindo-se às decisões concernentes à ordem social estabelecida. Por sua vez, o problema do poder é um dos mais complexos da organização social, ainda mais se analisado sob uma perspectiva genérica. O poder, na verdade, seja qual for a forma de dominação estabelecida, estabelece-se na relação entre quem o detém e quem se relaciona com aquele que o detém.
O Estado é a reunião de conceitos juridicamente qualificados que reúne o povo, o território e o exercício de poder soberano. Tal exercício de poder, em um Estado Democrático de Direito, deve ser condicionado a vontade da maioria, ainda que exercido por seus representantes eleitos. Por isso, a finalidade do Estado, nestes moldes, é fazer a prestação jurídica-administrativa alcançar o bem estar coletivo.
Entender o que é o Estado e a forma como este manifesta a supremacia de poder é relevante ao debate do tema em tela, porque a manifestação das intenções da sociedade súdita desta supremacia é estabelecida pelo incremento daquilo que lhe é ou não conveniente aceitar como proposta de regra condicionante a viabilidade da manutenção do Estado de Direito, das suas instituições jurídicas e do equilibrado convívio social.
Passamos a conceituar valores do Direito, da Justiça e do âmbito ético moral do grau de aceitação desses estamentos como reguladores da conduta social. Há e sempre houve, um mínimo de condições existenciais da vida em sociedade, que se impõe ao homem através de forças que contenham a sua tendência à expansão individual e egoísta. Tais forças ora se objetivam no aparelho intimidador do Estado, ora se impõem pela contenção mística da religião, ora se concentram na absorção autoritária de um eventual chefe. Surge aqui o Direito como ciência jurídica apta a gerar regras de condutas de forma a viabilizar o estabelecimento do equilíbrio do convívio social. É, portanto, princípio de adequação do homem a vida social. As regras abstratas têm efeito geral e coercitivo a todos, independente de sua aceitação ou não. Surge, pois, histórica disputa sobre o conceito de Justiça sob a ótica positiva do estabelecimento da lei como elemento normativo puro e seu confronto com o ideal de justiça natural focalizado individualmente pelo indivíduo em sua acepção do fato concreto de acordo com o seu juízo de valor formado pelo seu processo de socialização.
Na formidável lição deste grandioso jurista, contemplo as devidas definições dos termos agora em destaque com apoio nos trabalhos das famosas Instituições de Caio Mario da Silva Pereira. Para o renomado jurista, o direito positivo é a normação da coexistência social, em dado momento histórico, que se acha submetida à regra dirigida à vontade de todos. Por sua vez, o direito natural, numa contraposição de sentido, é o que manifestam as correntes filosóficas, no sentido de que o jurista acima do direito positivo, influindo no propósito de realizar o ideal de justiça, ditado por uma concepção de super legalidade, é o que sobrepaira a norma legislativa, é universal, eterno, integrando a normação ética da vida humana, em todos os tempos e em todos os lugares. Se alguma vez, sob o império de forças antijurídicas, declina o sentimento do justo, a humanidade supera a crise e retoma o seu caminho, procurando sempre o seu ideal de justiça, que se radica indefectivelmente na consciência humana.
Integrando a notável explanação do ideal de justiça natural, percebemos que sua percepção no seio social desviado tem a seguinte característica: imposição do movimento coercitivo da lei aos demais e aplicação aos semelhantes das benesses das garantias individualizadas pelo direito. Por isso, é importante desenvolver o debate sob a égide do, não menos importante, confronto do Direito com a moral.
O homem, para viver em sociedade deve pautar a sua conduta pela ética, de zoneamento mais amplo que o direito, uma vez que compreende as normas jurídicas e as normas morais, em quaisquer de suas manifestações de vontades. As ações humanas interessam ao direito, mas nem sempre. Quando são impostas ou proibidas, encontram sanção no ordenamento jurídico. São normas jurídicas, são os princípios de direito. Quando se descumprem ou se cumprem sem que este interfira, vão buscar sanção no foro íntimo, no foro da consciência, até onde não chega a força cogente do Estado. Em razão da falta de justaposição dos campos de atuação, pelo fato de não existir sempre a aprovação moral para a conduta juridicamente autorizada, distingue-se do conceito de liceidade o de moralidade, afirmando-se que a submissão à norma jurídica nem sempre implica a aprovação da regra moral. Moral e direito são ambos normas de conduta; evidentemente, têm um momento de incidência comum. Mas, analisados intrinsecamente, os respectivos princípios se diferenciam, quer em razão do campo de ação, quer no tocante à intensidade da sanção que acompanha a norma, quer no alcance ou nos efeitos desta. Se a conduta do agente ofende apenas a regra moral, encontra reprovação na sua consciência, podendo atrair-lhe o desapreço dos seus concidadãos. A regra moral é, portanto, ditada, no sentido da realização do bem ou do aperfeiçoamento individual, sem atribuir um poder ou uma faculdade; observa-se que a moral procura fazer que reine a consciência individual mais que a própria justiça, ou seja, a caridade que tende ao aperfeiçoamento individual. Ensinamentos de Ferrara Ruggiero e Mazeaud, colacionados na exposição da obra institucional do Direito Civil, vol. I, de Caio Mario.
É importante salientar que a obediência da regra moral bem acentuada em conceitos predefinidos de juízo de valor condicionante a mobilizar o sujeito a restringir cada vez mais sua conduta tendente a perturbar a ordem, sempre será de maior relevância do que a busca sancionatória da força coercitiva do Direito, a fim de estabelecer melhores parâmetros ao desenvolvimento do complexo das relações sociais. Talvez a falta deste fator, como formador da consciência coletiva, seja a principal responsável pela canalha da conduta humana desapercebida de bondade coletiva, desvinculada da formação econômica do indivíduo.
Em 1766, escreveu Cesare Beccaria, que o termo direito não contradiz a palavra força. O Direito é a força submetida a leis para proveito da maioria. Compreendendo por justiça os liames que prendem de modo estável os interesses particulares. Se tais liames se partissem, não existiria sociedade. É preciso que se evite ligar a palavra justiça à força física. A justiça é pura e simplesmente o ponto de vista debaixo do qual os homens olham as coisas morais para o bem estar de cada qual, não se pretendendo aqui dizer da Justiça Divina, que é de outra natureza, tendo relações imediatas com os castigos e as recompensas de uma vida futura.
Por isso, concluímos que não é suficiente o rigor da norma jurídica, a fim de se evitar o crime nosso de cada dia, sejamos ricos ou pobres. Cabe, aqui, a consciência coletiva arraigada de fortes valores morais e ético, tendentes a abolir a nossas condutas desviadas.
Daremos, agora, um enfoque criminológico, certo que a introdução de Cesare Beccaria, embora bastante distante sob um aspecto temporal, apresenta-se inabalavelmente atual. O mencionado enfoque será embasado na implementação das finalidades sociais do Estado de direito como fator inibidor da prática de infrações penais.
A primeira promoção do Direito como ciência, tendente a abolir os conflitos sociais, deu-se por meio do Direito Penal, uma vez que este cuida de condutas mais perturbadoras da ordem social. O aspecto da criminologia visa agrupar no segmento penal outras ciências como sociologia, psicologia e os princípios gerais de Direito e de Segurança Pública como fatores determinantes a descortinar as origens e causas do crime, a relação do criminoso com a vítima, ou qual é o nosso papel frente à questão criminal que envolve a Segurança de todos, enquanto preventa pela responsabilidade social.
A Carta de lei maior definiu como sendo segurança pública o dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, a fim de se proteger integridade física e moral do indivíduo, bem como seu patrimônio. Não obstante, a transformação do Estado social em Estado policial foi a mola propulsora do processo de inflação legislativa que nos aflige atualmente. O Direito Penal simbólico se transformou na ferramenta preferida de nossos governantes, sendo utilizado com a finalidade de dar uma satisfação à sociedade, em virtude da criminalidade.
Na importante lição de Dulce Chaves Pandolfi, identifica-se que no Brasil, passados vários anos do fim da ditadura militar, muitas são as dificuldades para consolidação de uma sociedade democrática. Se, no campo político, os avanços foram grandes, em outras áreas as mudanças foram bem menos significativas. A nova ordem social não conseguiu reverter a acentuada desigualdade econômica e o fenômeno da exclusão social que se expandiu por todo o país. Se, formalmente, pela Constituição de 1988, a cidadania está assegurada a todos os brasileiros, na prática, ela só funciona a uma minoria. Sem dúvida, existe um déficit de cidadania, isto é, uma situação de desequilíbrio entre os princípios de justiça e solidariedade.
As desigualdades sociais, certamente, intensificam o crescimento da criminalidade aparente, ou seja, a criminalidade violenta, urbana, que faz com que seja derramado sangue quando de suas ações. Certo que este contingente de fatores criminológicos robustecem infrações penais cometidas por pessoas que pertencem às classes sociais mais baixas. Normalmente, o tráfico de drogas ou o crime patrimonial violento. A outra criminalidade, tida como oculta, infinitamente pior do que a aparente, não diz respeito ao Estado Social: a criminalidade organizada cujos autores intelectuais fazem parte das camadas sociais mais elevadas, que ocupam os noticiários dos jornais na qualidade de membros respeitáveis e admirados da nossa sociedade, que por um erro de cálculo, vez por outra, caem suas máscaras em público.
O penalista Rogério Greco escreve, em sua obra Direito Penal do Equilíbrio, que o comportamento do funcionário público corrupto, geralmente intocável, é infinitamente mais grave que a conduta do homicida. Como a corrupção não sangra, a sociedade tolera mais o corrupto do que o homicida. Aqui, são cifras colocadas em um pedaço de papel, que apontam o quanto o Estado e a coisa pública são lesados, enquanto, em seu detrimento, voltamos mais atentamente os olhos ao ladrão de galinhas. A final de contas, quando pertencemos a classe de maior poder aquisitivo e político, observamos no corrupto a nossa própria imagem. Quando este é preso, é como se um dos nossos fosse levado pelo sistema policial, que, no Brasil, age, quase que exclusivamente, contra as classes inferiores.
Para o renomado autor, é possível reduzir a criminalidade aparente a partir do momento em que o Estado assumir a sua função social, diminuindo o abismo econômico existente entre as classes sociais. No que diz respeito à criminalidade mais requintada praticada por classes sociais mais nobres, a questão em jogo é de caráter moral, não tendo o Estado condições para impor tais atributos às pessoas que não pensam em seu próximo, que não se preocupam com o bem estar coletivo.
Em nosso encerramento, fundamental a compreensão do tema, colacionamos o pensamento de Vicente Garrido, em sua obra ‘Princípios de Criminologia’:
“O incremento da delinqüência é somente um sintoma a mais das deficiências na organização da sociedade humana. O crescimento econômico desordenado e os sucessos técnicos não tem eliminado a delinqüência, senão que a tem fomentado. Uma sociedade dominada pelo egoísmo desenfreado, pela luta para triunfar, ainda que para isso tenha que se pisar nos demais, tem muita delinqüência. O egoísmo e agressividade dominantes nessa sociedade tem a forma de corrupção, delitos contra o meio ambiente, mas também delitos contra qualquer vizinho. Como podemos conseguir o cumprimento básico das normas de convivência, sem cair em um sistema opressivo e policial? clama-se por um equilíbrio cívico entre os grupos sociais. Do mesmo modo, dever-ser-á buscar um equilíbrio na política criminal, a liberdade individual e os interesses da sociedade. Equilibrar estes extremos é uma questão política, sendo o papel dos criminólogos não defender suas convicções ideológicas pessoais, senão aportar informação confiável sobre as diversas estratégias de controle.”