Breves considerações sobre a imperatividade do ato administrativo e consensualidade na administração pública

Breves considerações sobre a imperatividade do ato administrativo e consensualidade na administração pública

Analisa o ato administrativo sob o viés do princípio democrático e dos instrumentos de consensualidade no âmbito administrativo.

O Estado brasileiro contemporâneo, moldado sob a denominação de Estado Social e Democrático de Direito, fundamenta-se na máxima democrática, consagrando os valores de reconhecimento dos direitos fundamentais dos homens e de proteção à dignidade da pessoa humana [1], verdadeiros substratos que constituem pedra angular e núcleo essencial da Constituição Federal.

A Carta Magna pátria apresenta-se com forte conotação principiológica, o que lhe assegura primazia no ordenamento jurídico e impõe ao intérprete do direito o exercício constante de interpretação sistemática das normas jurídicas conforme a constituição[2], retirando das disposições constitucionais seu fundamento de validade e de eficácia, inclusive no plano social. Paulo Ricardo Schier denomina esse fenômeno de “filtragem constitucional”, o qual “(...) denota a idéia de um processo em que toda a ordem jurídica, sob a perspectiva formal e material, e assim os seus procedimentos e valores, devem passar sempre e necessariamente pelo filtro axiológico da Constituição Federal, impondo, a cada momento de aplicação do Direito, uma releitura e atualização de suas normas”. [3]

Neste diapasão, é relevante sustentar a modificação do pensamento do direito administrativo, disciplina que, por ora, volta-se à preocupação com o ser humano, com o cidadão e busca consagrar uma estrutura notadamente participativa, com vistas à realização do ideal democrático e em harmonia com os princípios constitucionais que consagram o regime jurídico administrativo. Segundo o entendimento de Adriana da Costa Ricardo Schier, “o Estado Brasileiro existe para promover o desenvolvimento da pessoa humana, mediante a garantia a todos os indivíduos de um núcleo de direitos fundamentais, a partir de uma perspectiva material e, portanto, por vezes, através da ação interventiva do poder público, limitada pelo Direito. É, pois, em torno dos direitos fundamentais e, notadamente, da dignidade humana, que gira a Administração Pública”. [4]

O agir administrativo, consubstanciado na prática dos atos administrativos e voltado à satisfação do interesse público e das necessidades sociais, deve ser compatibilizado com instrumentos de participação popular, como forma de se garantir a democratização do poder. Neste sentido, as lições de Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira, citado por Rafael Carvalho Rezende Oliveira, “a participação dos privados no procedimento, ao permitir a ponderação pelas autoridades administrativas dos interesses de que são portadores, não só se traduz numa melhoria de qualidade das decisões administrativas, possibilitando à Administração uma mais correta configuração dos problemas e das diferentes perspectivas possíveis da sua solução, como também torna as decisões administrativas mais facilmente aceites pelos seus destinatários. Pelo que a participação no procedimento constitui um importante factor de legitimação e de democraticidade de actuação da Administração Pública”.  [5]

É de se ressaltar a utilização cada vez mais freqüente de instrumentos consensuais no âmbito administrativo, os quais podem coexistir com a clássica idéia da autoridade da Administração Pública, de forma igualmente consentânea com os objetivos democráticos idealizados pelo constituinte. Mencionada iniciativa é louvável nos quadros administrativos, que vislumbra uma adequada e proporcional atividade administrativa.

A respeito do tema, repisem-se as palavras de Gustavo Henrique Justino de Oliveira, no sentido de que “a expansão do consensualismo na Administração pública vem acarretando a restrição de medidas de cunho unilateral e impositivo a determinadas áreas da ação administrativa. Isso provoca o florescimento da denominada Administração consensual, e a mudança de eixo do direito administrativo, que passa a ser orientado pela lógica do consenso”. [6]

No tocante à conceituação de ato administrativo, para melhor ilustrar o presente trabalho, adotam-se as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem o ato administrativo é a “declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional”. [7]

Outrossim, convencionou-se conferir ao ato administrativo específicos atributos, verdadeiras qualidades, que o distinguem dos demais atos jurídicos, em razão da peculiar posição da Administração Pública como garantidora do interesse público. Dessa forma, o ato administrativo goza das prerrogativas de presunção de legitimidade e veracidade, de auto-executoriedade e de imperatividade, com especial destaque para esta última qualidade, sensivelmente mitigada pela adoção de instrumentos de consensualidade no âmbito administrativo.

A imperatividade apresenta-se como a qualidade pela qual o ato administrativo se impõe a terceiros, independentemente de sua concordância. Trata-se do denominado “poder extroverso” do Estado, expressão revelada por Renato Alessi, a qual, segundo Ney José de Freitas, “permite ao Estado emitir provimentos que escapam da esfera jurídica do emissor e projetam-se, desse modo, na esfera jurídica de terceiros, constituindo-os, de logo, em obrigação”. [8]

Explicite-se que o Estado é o único ente legitimado a valer-se dessa prerrogativa de constituir unilateralmente obrigações em relação a terceiros, mesmo quando estes não estejam diretamente vinculados ao ato.

O atributo da imperatividade, em que pese constituir-se em legítimo meio de ação estatal, deve ser compatibilizado com os instrumentos consensuais de atuação do Poder Público. É bem verdade que a imperatividade não existe como forma de legitimar abusos por parte da Administração; ao contrário, sua utilização há de ser justificada em consonância com os valores e princípios que norteiam o agir administrativo e que se encontram consagrados no texto constitucional. Conforme aduz Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “a participação e a consensualidade tornaram-se decisivas para as democracias contemporâneas, pois contribuem para aprimorar a governabilidade (eficiência); propiciam mais freios contra o abuso (legalidade); garantem a atenção a todos os interesses (justiça); proporcionam decisão mais sábia e prudente (legitimidade); desenvolvem a responsabilidade das pessoas (civismo); e tornam os comandos estatais mais aceitáveis e facialmente obedecidos (ordem)”. [9]

A partir deste contexto, imperioso se faz ressaltar e concordar com a conclusão registrada por Marcus Vinicius Corrêa Bittencourt, segundo a qual “torna-se viável, portanto, a utilização harmônica de instrumentos de autoridade ou de consensualidade pela Administração Pública para melhor adequação das atividades administrativas, que devem estar em sintonia com a correta missão de um Estado Democrático de Direito. É certo, assim, que constantemente se verifique o uso proporcional de tais providências, buscando alcançar as metas públicas da maneira menos onerosa ao cidadão”. [10]

À guisa de conclusão, infere-se que o tema da imperatividade do ato administrativo oxigenado em sua aplicação pelos instrumentos de consensualidade é matéria candente no contemporâneo direito constitucional-administrativo. Em verdade, medidas consensuais e participativas devem ser eficazmente implementadas e adotadas pelo Poder Público, com vistas a democratizar a Administração Pública, bem como a incentivar o espírito crítico e cívico dos cidadãos.

Referências Bibliográficas

[1]  Nesse sentido, o princípio da dignidade da pessoa humana apresenta-se como “direito individual indisponível, intimamente ligado à autonomia e autodeterminação de cada pessoa, mas também relacionado à igualdade entre os homens e à garantia de um mínimo vital. Trata-se de limite e tarefa de persecução estatal porque, ao mesmo tempo em que estabelece a defesa dos direitos individuais, especialmente da liberdade física e intelectual, a dignidade da pessoa humana, também funciona como dever do Estado guiar-se visando garantir a cada um o pleno exercício da dignidade e o mínimo para viver”. GEBRAN NETO, João Pedro. A aplicação imediata dos direitos e garantias individuais: a busca de uma exegese emancipatória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 49.

[2] CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991. p. 45-46.

[3] SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999. p. 104.

[4]  SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. A participação popular na administração pública: o direito de reclamação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 77.

[5] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Democratização da administração pública e o princípio da participação administrativa. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, n. 8, p. 909-919, ago./2006.

[6] OLIVEIRA, Gustavo Justino de. A arbitragem e as parcerias público-privadas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, n. 2, maio/jun./jul. 2005. 

[7] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 13. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 343-344.

[8] FREITAS, Ney José de. Ato administrativo: presunção de validade e a questão do ônus da prova. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 96.

[9] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 41.

[10] BITTENCOURT, Marcus Vinicius Corrêa. Poder extroverso e consensualismo na atividade administrativa. 

Sobre o(a) autor(a)
Christiane Sans Vinoski
Bacharel em Direito pela UFPR, Pós-Graduanda em Direito Administrativo pelo IDRFB e Servidora Pública Federal do TRE/PR, em Curitiba
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