Transação Penal – Uma nova leitura à luz da Teoria Geral do Processo

Transação Penal – Uma nova leitura à luz da Teoria Geral do Processo

Traz à lume novos argumentos e um posicionamento inédito ao controvertido debate sobre o referido instituto despenalizador.

A idéia do presente é proceder a uma nova leitura no que concerne à Transação Penal tendo como pressuposto que o acordado no referido instituto representa uma pena diretamente não-coercitível [1] e sem comprovação da culpabilidade. Contudo, uma pena legítima. O acordo é uma pena atribuída em face de uma acusação conhecida pelo autor do fato [2], pena que, apesar de carecer de um juízo de culpabilidade comprovado quanto à conduta do autor e o fato a ele imputado, é legitima, pois constitui uma pena consentida duplamente. O primeiro consentimento vem do Poder Constituinte Originário [3] e o segundo consentimento é fornecido pelo próprio autor do fato, que poderia ter optado pela prova da sua não-culpabilidade, mas que opta por não prová-la e ver-se livre de um processo penal e de uma possível privação de sua liberdade.

Como ponto de partida da análise pretendida, é mister que se definam os pressupostos teóricos sobre os quais o estudo da Transação Penal se realizará. Iniciando a fixação dos referidos fundamentos necessita-se afirmar e reafirmar que o instituto da Transação Penal está inserido em um contexto próprio, ou seja, especial. Este contexto próprio é o da Lei 9.099/1995 que veio instituir, em conformidade com o inciso X do artigo 24 e inciso I do artigo 98 ambos da Carta Magna, um procedimento processual pautado na Oralidade, Simplicidade, Informalidade, Economia Processual e Celeridade que, de certa forma, quebra com os procedimentos anteriormente regulados. Contudo, em momento algum a criação deste novo procedimento por meio da instituição dos Juizados Criminais pretendeu postergar o nascimento do processo e/ou restringir o exercício do direito de ação [4].

Após tal afirmação, surge a necessidade de apontar em que momento a relação processual em sede de Juizados Especiais se inicia, ou seja, a partir de quando se considera proposta [5] a ação. Nesse sentido, forçoso concluir que o direito de ação no JECrim tem o seu exercício ainda na fase preliminar. A lavratura do termo circunstanciado pela autoridade policial não é e nunca [6] será considerado o início do exercício do direito de ação. O exercício do direito de ação também no JECrirn se inicia quando a parte, seja o órgão ministerial ou o ofendido, atue de forma a dar conhecimento ao Poder Judiciário de sua pretensão face ao autor do fato. O juiz terá conhecimento do fato na audiência preliminar, ou seja, quando da audiência preliminar o direito de ação já estará sendo exercido, uma vez que o Poder Judiciário já terá notícia da vontade em se exercer o jus puniendi. Desta forma, a notícia que o Poder Judiciário terá, e, a que neste momento se refere, variará conforme as peculiaridades burocráticas de cada JECrim. Assim, a ação será considerada proposta no momento em que as partes surgirem frente ao juiz na audiência preliminar ou quando o Ministério Público ou o ofendido atue de forma que a vara do JECrim registre [7] e marque a audiência preliminar [8]. Tendo por evidente esta idéia, ainda que a audiência preliminar sirva apenas para homologar uma composição civil dos danos na hipótese do ofendido estar extraordinariamente legitimado [9], o direito de ação já estará sendo exercido desde o primeiro momento que o Poder Judiciário foi acionado. O direito de ação está em exercício ainda que só o cartório da vara tenha sido movimentado, logo o autor do fato é literalmente um réu, pois tem contra si uma imputação de um fato criminoso.

Pode-se contestar o exposto, afirmando que no momento em que ocorre a audiência preliminar do JECrim ainda não houve oferecimento da exordial, diferentemente do que ocorre no CPC, e, que o prosseguimento do entendimento acima acarretaria inevitavelmente na violação ao Due Process of Law, uma vez que falta ao autor do fato a imputação formal de uma conduta criminosa para que o mesmo possa ser considerado em julgamento. Contudo, tal refutação apresenta um equívoco. Equívoco este que é o de restringir o Princípio do Devido Processo Legal, pois tal entendimento tende a considerar apenas como Devido Processo Legal os procedimentos clássicos, ou seja, o processo que se inicia com o oferecimento da petição inicial formalmente constituída. O respeito ao due process of law não é alcançado só desta forma, mas sim, por meio do respeito às regras pré-estabelecidas, ou seja, juízo previamente competente, imparcial, respeito à ampla defesa e o contraditório no curso processual, dentre outras garantias.

A Lei 9.099/95 respeita todas estas garantias, só que, como já afirmado anteriormente, ela institui um procedimento próprio, ou seja, quebra com o procedimento tradicional, o que não significa qualquer violação ao devido processo e nem que este novo procedimento obrigue a que se inverta a lógica dos institutos para que se mantenha um conceito estrito do devido processo legal. O conceito estrito do devido processo legal não é aplicável ao procedimento estabelecido para o JECrim, mas sim o due process of law entendido de forma mais ampliada, ou seja, no caso em questão o aludido instituto impõe que a acusação formal se dê posteriormente ao início do exercício do direito de ação. Esta mudança de posições criada pela Lei 9.099/95 teve o intuito de beneficiar e vem beneficiando os autores dos fatos, ou seja, a parte mais fraca nesta relação processual, logo parece não haver grandes razões para se manter filiado a um conceito estrito de devido processo legal, e para salvar o novo sistema optar-se por dizer que antes da acusação formal ainda não há processo, pois o direito de ação não fora exercido. Não parece razoável tal defesa.

Adotando-se o posicionamento aqui defendido pode-se afirmar com tranqüilidade que a Transação Penal não é uma ação, pois esta última já está sendo exercida antes mesmo da propositura daquela, e sim que a Transação é uma fase do procedimento no curso processo desenvolvido no JECrim, ou seja, a Transação é uma etapa do procedimento da Lei 9.099/95. Processo este que se iniciou antes da Transação e só se concluirá posteriormente ao oferecimento desta, seja com o cumprimento do acordado e a posterior declaração judicial de extinção da punibilidade ou em razão do trânsito em julgado de sentença absolutória ou condenatória decorrida da propositura de denúncia ou queixa [10] em virtude da frustração da Transação Penal. Com base no exposto, a proposta de Transação, quando do preenchimento de todos os seus requisitos, será uma condição de admissibilidade da denúncia/queixa [11], restando assim superada a questão da natureza jurídica da proposta de Transação Penal. Em não havendo a proposta, a acusação formal também não poderá ser oferecida, e, se oferecida não poderá ser aceita, sob pena, agora sim, de violação do devido processo legal. Ou seja, há um réu sem uma acusação formal, mas tem-se um réu com uma acusação, sendo que a constatação do exercício do poder punitivo do Estado é inequívoca.

Superado este ponto, parte-se para a análise da natureza jurídica da decisão judicial que referenda a Transação Penal. Este tópico na atualidade não encontra nenhum porto seguro e as três posições que mais vêm predominando na doutrina são as de que se está de frente a uma sentença declaratória, declaratória constitutiva ou condenatória. Entretanto, não parece ser correto afirmar que se trata de uma sentença [12], pois a decisão que referenda a Transação Penal não põe termo ao processo. Este continua e só será extinto quando for proferida a sentença declaratória da extinção da punibilidade do autor do fato [13] após o cumprimento da Transação ou então com o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória ou absolutória, isto depois de fracassada a fase da Transação Penal. Isto posto, a decisão judicial que referenda a Transação Penal é uma decisão interlocutória [14], uma vez que o processo permanece em aberto, não obstante sua marcha estar suspensa, ou seja, esperando o cumprimento ou não do acordo transacionado para então poder seguir adiante, seja para que se ofereça a denúncia / queixa [15] ou para que se profira a sentença declaratória da extinção da punibilidade.

Quanto à natureza do conteúdo desta decisão interlocutória, pode-se afirmar que ela é efetivamente declaratória, pois esta decisão declara que: o autor do fato preencheu os requisitos, o Ministério Público ofereceu a Transação Penal, o autor do fato aceitou a transação penal e finalmente que o conteúdo desta Transação está em conformidade com a lei. Esta decisão não é constitutiva, pois não houve a constituição de nova situação jurídica, uma vez que o autor do fato já possuía o direito à Transação, antes mesmo à proposta, tendo em vista o devido processo legal, como já exposto anteriormente. Esta decisão também não é condenatória porque ela efetivamente não goza de força coercitiva. A Lei 9.099/95 nada fala especificamente do descumprimento da Transação, pois supõe integralmente a idéia do acordo; logo se uma das partes não cumpriu o acordo, a outra também não deverá cumprir. Aplica-se no caso a exceptio non adimpleti contractus e apenas isto, e como conseqüência do fracasso no cumprimento do acordo só restará o prosseguimento do processo, ou seja, resta apenas retomar a marcha.

No que concerne à decisão judicial que não homologa a Transação, tendo em vista todo o exposto, resta claro que esta decisão também se trata de uma decisão interlocutória. Quanto ao poder do juiz influir no conteúdo da Transação, apenas o parágrafo primeiro do artigo 76 da Lei 9.099/95 o autoriza a executar tal alteração quando se tratar de multa e tal alteração poderá apenas ser uma redução no valor da multa, nunca uma majoração e esta redução poderá ser no máximo de 50% sobre o valor acordado. Em todos os outros casos, o juiz se limitará a verificar a legalidade do conteúdo da Transação, sob pena de se estar violando o princípio acusatório.

Finalmente, analisando o tema recursos na Lei de Juizados Especiais Criminais, é mister afirmar e recordar que o artigo 92 da Lei manda aplicar as disposições do Código de Processo Penal subsidiariamente à Lei 9.099/95 onde não houver incompatibilidade. Contudo, deve-se atentar que o artigo referido impõe uma norma a ser seguida, e, não apenas, como muitos entendem, aconselha que se aplique o CPP onde parecer conveniente tal aplicação. Por conseguinte o recurso em sentido estrito previsto no artigo 581 do CPP será aplicável ao JECrim quando não confrontar com a Lei 9.099/95.

Sabendo que os recursos de apelação e embargos de declaração estão expressamente previstos na Lei 9.099/95 no que diz respeito a estes recursos e à decisão interlocutória de homologação ou de rejeição da Transação, resta afirmar que tendo em vista a natureza da decisão, o recurso cabível não deveria ser a apelação e sim o recurso em sentido estrito [16], contudo esta "apelação" continua cabível, não obstante, esta decisão não ser sentença, pois o parágrafo quinto do artigo 76 da Lei 9.099/95 é expresso no sentido do cabimento. Quanto aos embargos declaratórios, estes tecnicamente não seriam cabíveis, pois o artigo 83 da Lei 9.099/95 fala em sentença ou acórdão, todavia, como o parágrafo quinto do artigo 76 é categórico em afirmar que a decisão homologatória da Transação é sentença, não serei eu quem irá negar o exercício deste recurso por uma questão de pretender buscar uma coerência sistemática na parte recursal do Direito Processo Penal Brasileiro. Quanto ao Recurso Especial, este é incabível, vide Enunciado 203 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, pois só cabe de decisão de Tribunal em única ou última instância e a Turma Recursal não é Tribunal. Todavia, o Recurso Extraordinário é cabível para o Supremo Tribunal Federal, pois este recurso cabe contra decisão em única ou última instância, seja esta proferida por juiz ou Tribunal; tal posicionamento foi enunciado pelo STF em sua Súmula de Jurisprudência [17]. Por fim, caberá Habeas Corpus [18] para o STF e não para o Tribunal de Justiça em se tratando de ato da Turma Recursal.

NOTAS:

[1] A coerção se dará apenas de forma indireta com a ameaça do oferecimento da acusação formal. Maiores explicações ao longo do texto.

[2] Como se verá a seguir o autor do fato é réu.

[3] Decisão política, aqui entendida como uma das políticas criminais constitucionais.

[4] Tal afirmação tem como base a teoria abstrata da ação que separa o direito material, no caso em questão o Jus Puniendi, do direito processual. Desta forma, pode-se afirmar que a Lei 9099/95 veio limitar o direito material do Estado em punir e não o direito à prestação jurisdicional sobre o direito material (Jus Puniendi).

[5] Conforme o artigo 263 do CPC no Direito Processual Civil, a mera distribuição da petição inicial, quando da existência de duas ou mais varas na comarca, já é apta a considerar a ação proposta, ou seja, o direito à prestação jurisdicional sobre o direito material já teve o seu exercício iniciado. No que concerne ao Direito Processual Penal a idéia a ser extraída da análise dos artigos 24, 25 e 29 do CPP é a mesma, não obstante a inexistência de um artigo similar ao 263 do CPC. E para tanto se deve entender a não recepção do artigo 26 do CPP por violação ao artigo 129, I da CF.

[6] Seja pelas razões da não recepção do artigo 26 do CPP quanto à ação penal pública ou porque se for crime de ação penal de iniciativa privada esta para ser proposta dependerá da provocação do juízo pelo ofendido ou outros legitimados pela lei.

[7] Lembrar que conforme o artigo 263 do CPC a ação pode ser considerada proposta com a mera distribuição da exordial.

[8] Durante a audiência preliminar no JECrim a jurisdição está tão provocada quanto a audiência preliminar do artigo 331 do CPC.

[9] Ação Penal de Iniciativa Privada - Legitimação extraordinária do ofendido em exercer o jus puniendi. Tendo em vista o propósito do artigo em questão, não será discutida a negação, por parte da doutrina, da existência do direito de Punir pelo Estado.

[10] Queixa apenas para os que entendem ser cabível Transação Penal em sede de ação penal de iniciativa privada.

[11] Vide nota 8.

[12] O conteúdo do termo sentença utilizado é o do parágrafo 2°. do artigo 162 do CPC: ..Sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não mérito da causa.. Pode-se objetar tal escolha por se estar tratando do Processo Penal e não do Processo Civil, contudo a Teoria Geral do Processo é a mesma para ambas as disciplinas, e a sentença é um instituto jurídico que toca ambas as disciplinas, não obstante o Código de Processo Penal ser pontualmente vacilante no que efetivamente seja uma sentença.

[13] "Efetuado o pagamento, o juiz declarará extinta a punibilidade, determinando que a condenação não fique constando nos registros criminais, exceto para fins de requisição judicial.. - parágrafo único do artigo 84 da Lei 9099/95. Não obstante o caput deste artigo se referir apenas a multa, a exigência da sentença declaratória da extinção da punibilidade deve ocorrer sempre que a Transação for adimplida pelo autor do fato, independentemente do conteúdo desta transação. Será necessariamente esta sentença judicial que porá termo ao processo, igualmente ao final do processo de execução no Processo Civil, vide 795 CPC, sob pena de se ter um processo inconcluso ad eternum.

[14] Conforme o parágrafo segundo do artigo 162 do CPC "decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente".

[15] Vide nota 8 e 9.

[16] Sabe-se que o rol do artigo 581 é taxativo, mas comporta interpretação extensiva, razão pela cabe recurso em sentido estrito com base no inciso XVI.

[17] Enunciado 640 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.

[18] Lembrar que o mesmo é ação autônoma e não recurso.

Sobre o(a) autor(a)
José Danilo Tavares Lobato
Advogado
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