Transação penal: pena sem processo?

Transação penal: pena sem processo?

Há muita divergência na doutrina e jurisprudência em relação a "pena" aplicada pelo Ministério Público e aceita pelo autor do fato na audiência preliminar de transação penal. Na verdade, o Legislador quis dizer medida penal e não pena.

INTRODUÇÃO

Considerada por grande parte da doutrina como um marco no direito penal-processual brasileiro, a Lei n.º 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais, realmente introduziu um novo paradigma na ordem jurídico-penal nacional: o da justiça criminal consensual. Fruto da feliz previsão constitucional do artigo 98, inciso I, da Constituição de 1988, os Juizados Especiais Criminais forma criados com competência para a conciliação, o julgamento e a execução de infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo.

O legislador pátrio instituiu a transação penal, tida como verdadeiro mitigador do princípio da obrigatoriedade da ação penal, visando permitir a realização de política criminal mais eficaz.

O objetivo maior da transação penal é a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.


CONCEITO E DISPOSITIVO LEGAL

A Transação penal está consagrada no art. 76 da Lei 9099/95, o qual dispõe: “havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal publica incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Publico poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta”. Antes do oferecimento da denúncia, portanto, na fase administrativa ou pré-processual, o Ministério Público poderá propor um acordo, transacionando o direito de punir do Estado com o direito à liberdade do "autor do fato", desde que presentes os pressupostos objetivos e subjetivos previstos na lei para a oferta.

Sergio Turra Sobrane define a transação penal como “o ato jurídico através do qual o Ministério Publico e o autor do fato, atendidos os requisitos legais, e na presença do magistrado, acordam em concessões recíprocas para prevenir ou extinguir o conflito instaurado pela prática do fato típico, mediante o cumprimento de uma pena consensualmente ajustada” (SOBRANE, Sérgio Turra. Transação Penal. São Paulo: Saraiva, 2001.)


ÂMBITO DE APLICAÇÃO: INFRAÇÕES DE MENOS POTENCIAL OFENSIVO

Nos termos do art. 61, da Lei 9.099/95, “consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos dessa Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial”.

Com o advento da lei 10.259, de 12 de julho de 2001, houve sensível modificação na conceituação legal das infrações penais de menor potencial ofensivo. Nos termos do art. 2, da lei 10.259/2001 “Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa”.


NATUREZA JURÍDICA DO INSTITUTO

A transação penal possui natureza dupla. Ao mesmo tempo em que é um instituto de Direito Processual Penal, uma vez que por meio dela se compõe a lide subjacente, é também um instituto de direito material, visto que os ajuste entre as partes, homologado pelo juiz, implica a extinção da punibilidade do fato típico e antijurídico, não se admitindo mais sua discussão. (SOBRANE, Sérgio Turra. Transação Penal. São Paulo: Saraiva, 2001.)

Discute-se na doutrina e jurisprudência, se a transação penal constitui uma faculdade do Ministério Publico ou um direito subjetivo do autor do fato, quando presentes os requisitos específicos para sua aplicação.

O instituto da transação penal trata-se de direito subjetivo do infrator só este pode dele dispor, aceitando ou não a proposta transacional, desde que presentes os requisitos exigidos pela lei.


A POLÊMICA DA CONSTITUCIONALIDADE DA TRANSAÇÃO PENAL: PENA SEM PROCESSO?

O direito ao devido processo legal vem consagrado pela Constituição Federal no art. 5º., LIV e LV, ao estabelecer que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal e ao garantir a qualquer acusado em processo judicial o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Quando o legislador, no art. 76 da Lei 9.099/95, fala em aplicação imediata da pena, ele não quis dizer pena mas sim “medida penal” pois só é possível aplicar uma pena no Brasil depois de instaurado o devido processo legal. Na transação penal o autor do fato aceita a proposta do Ministério Público para não ser processado, portanto não houve processo. Então o que ele aceitou não foi uma pena, mas uma “medida” a ser cumprida para que se evite um processo. Nesse novo modelo, não existe acusação, ou seja, o autor do fato não reconhece sua culpa ao aceitar a proposta feita pelo Ministério Público, apenas conforma-se com uma medida penal para que não venha a ser acusado e processado criminalmente.

Portanto, os protagonistas dessa transação penal, com base no acerto de vontades, buscam a evitar o processo. De um lado, o Ministério Público abre mão da persecução penal e de outro lado, o autor do fato evita o processo preferindo se sujeitar a uma medida penal que, em sendo cumprida, permitirá a extinção da punibilidade.

A pena aplicada na transação penal não tem caráter de punição, mas sim de uma medida penal aceita voluntariamente pelo autor do fato para evitar o processo, sem admissão de culpa ou de responsabilidade civil. Se no sentido de punição se tratasse, só poderia ser aplicada depois do devido processo legal. Tanto é assim que a própria lei n. 9099/95 estabelece que a aceitação, pelo autor da infração da proposta do Ministério Publico de imediata aplicação de uma medida restritiva de direitos ou multa não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de 5 (cinco) anos.(art. 76, par. 4º).

Na lição de Julio Fabbrini Mirabete: “ Não se viola o princípio do devido processo legal porque a própria constituição prevê o instituto, não obrigando a um processo formal, mas a um procedimento oral e sumaríssimo (art. 98, I, CF/88) para o Juizado Especial Criminal e, nos termos da lei, estão presentes as garantias constitucionais de assistência do advogado, de ampla defesa, consistente na obrigatoriedade do consenso e na possibilidade de não aceitação da transação. Trata-se da possibilidade de uma técnica de defesa concedida ao apontado como autor do fato. (MIRABETE, Júlio Fabbrini. Juizados especiais criminais: comentários, jurisprudência e legislação. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1998.)


NATUREZA JURÍDICA DA DECISÃO QUE HOMOLOGA A TRANSAÇÃO

Conforme o modelo garantista, no Estado Democrático Brasileiro não é possível uma sentença penal condenatória sem o devido processo legal, tornando certa a autoria e a materialidade do fato imputado. Já a sentença penal homologatória é fruto de consenso, de acordo entre Ministério Público e autuado, antes da propositura da ação penal, sem julgamento do fato que originou o termo circunstanciado.

Sem o devido processo legal, a sentença que aplica pena restritiva de direitos ou multa, com base no art.76, não tem caráter nem condenatório nem absolutório, mas simplesmente homologatório da transação penal, declarando uma situação jurídica de conformidade penal bilateral. Não gerando reincidência, registro criminal ou responsabilidade civil (art.76-§§ 4º e 6º).

Sempre que as partes transigem, pondo fim à relação processual, a decisão judicial que legitima jurisdicionalmente essa convergência de vontades, tem caráter homologatório, jamais condenatório. (BITTENCOURT, Cezar Roberto. Juizados especiais criminais e alternativas à pena de prisão. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,1996.)


DESCUMPRIMENTO DA TRANSAÇÃO

A conversão imediata da medida restritiva de direitos aplicada em pena privativa de liberdade viola flagramente direitos constitucionais fundamentais como o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.

Assim, se o suspeito descumpre injustificadamente a medida não pode de imediato ser preso, pela conversão da pena acordada em privativa de liberdade. A condenação, ou o reconhecimento de culpa não foi objeto do acordo. A extinção da punibilidade somente ocorre com o cumprimento da pena aceita livremente pelo autor do fato, implicando o seu descumprimento a rescisão do acordo penal, razão pela qual só resta ao Ministério Público iniciar a persecução penal, na forma do art. 77da Lei 9.099/95, oferecendo a denuncia, ou requisitando as diligências que entender necessárias.

A doutrina tem-se inclinado no sentido de execução da pena, o que não encontra respaldo na lei, nem ao menos, na lógica jurídica. Logo, como se pode pensar em executar, na forma da lei de execuções penais - como querem crer alguns doutrinadores-, se ainda não existe condenação, e, mais, não se pode nem ao menos falar em culpa, já que a própria Constituição Federal assim assegura no art. 5º, LVII, sendo intuitivo que a execução de uma pena no juízo criminal pressupõe a formação de um juízo anterior de culpabilidade.


CONCLUSÃO

É proibida, no Direito brasileiro, a aplicação de qualquer pena sem a prévia realização de um processo. Esse é o significado da regra nulla poena sine judicio, tradicional em nosso sistema e em todos os que adotam o princípio maior do devido processo legal. Portanto, a pena só é aplicada depois de o réu ter respondido a um processo- crime democrático, em que a sua culpa tenha restado caracterizada.

Sobre o(a) autor(a)
Luiza Helena Almeida
Estudante de Direito
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