Responsabilidade civil durante as negociações preliminares (2024)

Responsabilidade civil durante as negociações preliminares (2024)

A responsabilidade civil segue um modelo dualista de classificação, podendo ser responsabilidade contratual ou extracontratual. Contudo, em emblemático julgado, o STJ se utilizou de um terceiro fundamento para a configuração da responsabilidade civil no âmbito de negociações preliminares.

Sabe-se que o contrato é um negócio jurídico originado de duas manifestações de vontade: a proposta e a aceitação. A primeira, também chamada de oferta, policitação ou oblação, dá início à formação do contrato e não depende, em regra, de forma especial.

Nem sempre, no entanto, o contrato nasce instantaneamente de uma proposta seguida de uma imediata aceitação. Na maior parte dos casos, a oferta é antecedida de uma fase, às vezes prolongada, de negociações preliminares caracterizada por sondagens, conversações, estudos e debates, também denominada de fase da puntuação.

Conforme leciona Flávio Tartuce, essa fase não está prevista no Código Civil de 2002, sendo anterior à formalização da proposta, podendo ser também denominada fase de proposta não formalizada, estando presente, por exemplo, quando houver uma carta de intenções assinada pelas partes, em que elas apenas manifestam a sua vontade de celebrar um contrato no futuro.

Nesta fase, como as partes ainda não manifestaram sua vontade não há nenhuma vinculação ao negócio. Qualquer delas pode se afastar, simplesmente alegando desinteresse, sem responder por perdas e danos. Mesmo quando surge um projeto ou minuta, ainda assim não há vinculação das pessoas.

Justamente por não estar regulamentado no Código Civil, não se pode dizer que o debate prévio vincula as partes, como ocorre com a proposta ou policitação (art. 427 do CC/2002). Desse modo, não haveria responsabilidade civil contratual nessa fase do negócio.

Entretanto, em que pese o fato de a fase de debates ou negociações preliminares não vincular os participantes quanto à celebração do contrato definitivo, relevante corrente doutrinária entende ser possível a responsabilização contratual nessa fase do negócio jurídico pela aplicação do princípio da boa-fé objetiva, que é inerente à eticidade, uma das diretrizes da atual codificação privada.

Segundo Carlos Roberto Gonçalves, embora as negociações preliminares não gerem, por si mesmas, obrigações para qualquer dos participantes, elas fazem surgir, entretanto, deveres jurídicos para os contraentes, decorrentes da incidência do princípio da boa-fé, sendo os principais os deveres de lealdade e correção, de informação, de proteção e cuidado e de sigilo.

A violação desses deveres durante o transcurso das negociações é que gera a responsabilidade do contraente, tenha sido ou não celebrado o contrato.

Em sua literalidade, o art. 422 do Código Civil dispõe que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Com base em uma interpretação literal do mencionado dispositivo, a fase pré-contratual não estaria abarcada pelo dever de observância ao princípio da boa-fé.

Todavia, a doutrina tem afastado a interpretação literal do art. 422, tendência esta que pode ser percebida por meio da análise dos enunciados n. 25 e 170 do CJF/STJ, que reconhecem a aplicação da boa-fé objetiva em todas as fases pelas quais passa o contrato, incluindo a fase pré-contratual, de tratativas.

Enunciado n. 25 da I Jornada de Direito Civil: O art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da boa-fé nas fases pré-contratual e pós-contratual.

Enunciado n. 170 da III Jornada de Direito Civil: A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato.

Cabe a ressalva de que a responsabilidade civil pré-contratual só ocorrerá se ficar demonstrada a deliberada intenção, com a falsa manifestação de interesse, de causas dano ao outro contraente, levando-o, por exemplo, a perder outro negócio ou realizando despesas.

Acerca da natureza jurídica da responsabilidade civil emergente em sede de negociações preliminares, cumpre destacar que o fundamento para o pedido de perdas e danos da parte lesada não é, nesse caso, o inadimplemento contratual, mas a prática de um ilícito civil, nos termos do art. 186 do Código Civil.

Segundo Carlos Roberto Gonçalves, essa responsabilidade ocorre, pois, não no campo da culpa contratual, mas da aquiliana, somente no caso de um deles induzir no outro a crença de que o contrato será celebrado, levando-o a despesas ou a não contratar com terceiro, e depois recuar, causando-lhe dano.

Na jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça apreciou um caso envolvendo uma empresa do ramo varejista e uma do ramo de produção de eventos, no qual foi imposta a obrigação de indenizar a parte contrária por quebra das tratativas, aplicando o regime da responsabilidade contratual, vejamos:

RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DICOTOMIA TRADICIONAL. AQUILIANA E CONTRATUAL. REFORMULAÇÃO. RESPONSABILIDADE PELA QUEBRA DA CONFIANÇA. ORIGEM NA CONFIANÇA CRIADA. EXPECTATIVA LEGÍTIMA DE DETERMINADO COMPORTAMENTO. RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL. INEXISTÊNCIA DE CONTRATO FORMAL SUPERADA PELA REPETIÇÃO DE ATOS. JUIZ COMO PERITO DOS PERITOS. COORDENAÇÃO DAS PROVAS. ART. 130 DO CPC/1973. 1. Tradicionalmente, a responsabilidade civil divide-se em responsabilidade civil stricto sensu (delitual ou aquiliana) e a responsabilidade contratual (negocial ou obrigacional), segundo a origem do dever descumprido, contrato ou delito, critério que, apesar de conferir segurança jurídica, mereceu aperfeiçoamentos, à luz da sistemática atual do Código Civil, dos microssistemas de direito privado e da Constituição Federal. 2. Seguindo essa tendência natural, doutrina e jurisprudência vêm se valendo de um terceiro fundamento de responsabilidade, que não se vincula a uma prestação delineada pelas partes, nem mesmo vincula indivíduos aleatoriamente ligados pela violação de um dever genérico de abstenção, qual seja a responsabilidade pela confiança. 3. A responsabilidade pela confiança é autônoma em relação à responsabilidade contratual e à extracontratual, constituindo-se em um terceiro fundamento ou 'terceira pista' (dritte Spur) da responsabilidade civil, tendo caráter subsidiário: onde houver o dano efetivo, requisito essencial para a responsabilidade civil e não for possível obter uma solução satisfatória pelos caminhos tradicionais da responsabilidade, a teoria da confiança será a opção válida. 4. A teoria da confiança ingressa no vácuo existente entre as responsabilidades contratual e extracontratual e seu reconhecimento se fundamenta principalmente no fato de que o sujeito que dá origem à confiança de outrem e, após, frustra-a, deve responder, em certas circunstâncias, pelos danos causados dessa frustração. A defraudação da confiança constitui o verdadeiro fundamento da obrigação de indenizar. 5. A responsabilidade fundada na confiança visa à proteção de interesses que transcendem o indivíduo, ditada sempre pela regra universal da boa-fé, sendo imprescindível a quaisquer negociações o respeito às situações de confiança criadas, estas consideradas objetivamente, cotejando-as com aquilo que é costumeiro no tráfico social. 6. A responsabilidade pela quebra da confiança possui a mesma ratio da responsabilidade pré-contratual, cuja aplicação já fora reconhecida pelo STJ ( REsp 1051065/AM, REsp 1367955/SP). O ponto que as aproxima é o fato de uma das partes gerar na outra uma expectativa legítima de determinado comportamento, que, após, não se concretiza. O ponto que as diferencia é o fato de, na responsabilidade pré-contratual, a formalização de um contrato ser o escopo perseguido por uma das partes, enquanto que na responsabilidade pela confiança, o contrato, em sentido estrito, não será, ao menos necessariamente, o objetivo almejado. 7. No caso dos autos, ainda que não se discuta a existência de um contrato formal de compra e venda entre as partes ou de qualquer outra natureza, impossível negar a existência de relação jurídica comercial entre as empresas envolvidas, uma vez que a IBM portou-se, desde o início das tratativas, como negociante, com a apresentação de seu projeto, e enquanto titular deste, repassando à Radiall as especificações técnicas do produto a ser fabricado, assim como as condições do negócio. 8. Com efeito, por mais que inexista contrato formal, o direito deve proteger o vínculo que se forma pela repetição de atos que tenham teor jurídico, pelo simples e aqui tantas vezes repetido motivo: protege-se a confiança depositada por uma das partes na conduta de seu parceiro negocial. 9. Mostrou-se, de fato, incontroverso que os investimentos realizados pela recorrente, para a produção das peças que serviriam ao computador de bordo de titularidade da recorrida, foram realizados nos termos das relações que se verificaram no início das tratativas entre essas empresas, fatos a respeito dos quais concordam os julgadores de origem. 10. Ademais, ressalta claramente dos autos que a própria recorrida estipulou quais os modelos de conectores deveriam ser produzidos pela recorrente e em que quantidade, vindo, após certo tempo, repentina e de maneira surpreendente, a alterar as especificações técnicas daquelas peças, tornando inúteis as já produzidas. 11. O ordenamento processual pátrio consagra o juiz como o perito dos peritos e a ele a lei atribui a tarefa de dar a resposta à controvérsia apresentada em juízo, não importando a que ramo do conhecimento diga respeito. Essa a lição que se extrai do artigo 130 do CPC de 1973, que atribuiu ao juiz a função de ordenar e coordenar as provas a serem produzidas, conforme a utilidade e a necessidade, a postulação do autor e a resistência do réu, podendo determinar a realização de perícia, quando necessária a assessoria técnica para auxiliá-lo no deslinde da questão alvo (arts. 145, 421, 431-B do CPC). 12. Assim, a solução apresentada à controvérsia deve ser fruto do convencimento do Juiz, com base nas informações colhidas no conjunto probatório disponível nos autos, não estando restrito a uma e qualquer prova, especificamente. 13. Recurso especial parcialmente provido, para reconhecer a responsabilidade solidária da IBM - Brasil pelo ressarcimento dos danos materiais (danos emergentes e lucros cessantes) à recorrente. (STJ - REsp: 1309972 SP 2012/0020945-1, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 27/04/2017, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/06/2017).

Em breve resumo da demanda na qual o acórdão foi proferido, a pessoa jurídica denominada como Radiall do Brasil Componentes Eletrônicos Ltda. ajuizou ação ordinária em face das pessoas jurídicas IBM Brasil - Indústria, Máquinas e Serviços Ltda e PCI Componentes S/A, para que fossem solidariamente condenadas a pagar ao pagamento de indenização por danos emergentes e lucros cessantes, referentes à produção excessiva de conectores coaxiais para atender a projeto de computação e comunicação por radiofrequência.

Por ser produtora de componentes eletrônicos de alta precisão, a Radiall do Brasil foi procurada pela IBM, no ano de 1995, por meio de engenheiro da empresa, para apresentação do projeto de seu produto de rastreamento de veículos, denominado "BIue Bird", para que produzisse os conectores coaxiais que seriam utilizados naquele equipamento. A IBM lhe informou que necessitaria de cerca de 250.000 conectores, exclusivamente desenhados para o projeto, com fornecimento inicial de 6.000 unidades e mensal de 7.500 unidades de cada tipo até o ano 2.000.

A empresa PCI Componentes S/A fora contratada pela IBM para a montagem do aparelho de monitoramento e que, em outubro de 1995, a PCI teria enviado à autora pedido de compra de 27.000 peças.

A parte recorrente narrou que, quando já estava produzindo as peças encomendadas, a corré IBM informou-lhe que deveria modificar o diâmetro dos conectores, comprometendo, desta forma, o estoque já produzido da maneira anteriormente determinada, criando, assim, um acúmulo de peças imprestáveis.

Comunicou que, em dezembro de 1996, houve reconhecimento, por parte da IBM - Brasil, de que ocorrera erros de planejamento (mudanças de engenharia no produto, assim como erros de cálculo da PCI, quanto ao número de peças encomendadas para a compra), que ocasionaram a produção a maior de conectores e que, por meio de correspondências, a IBM teria se comprometido em aproveitar o estoque das peças excedentes.

Em 1º grau, ambas foram condenadas ao pagamento de indenização por danos emergentes e lucros cessantes, valor de R$ 140 mil e R$ 300 mil, respectivamente. Entretanto, o Tribunal de Justiça do estado de São Paulo afastou a responsabilidade da IBM com base na ideia de ausência de contrato escrito com relação ao projeto de computador de bordo.

O fundamento para o desfecho conferido pelo STJ foi o da quebra da legítima expectativa. Segundo a teoria da confiança, o fato de que o sujeito que dá origem à confiança de outrem e, após, frustra-a, deve responder, em certas circunstâncias, pelos danos causados dessa frustração. A defraudação da confiança constitui o verdadeiro fundamento da obrigação de indenizar.

Por fim, conforme conclui Flávio Tartuce, na linha da doutrina e da jurisprudência, não é incorreto afirmar que a fase de pontuação gera deveres às partes, pois em alguns casos, diante da confiança depositada, a quebra desses deveres pode gerar a responsabilização civil. Esse entendimento constitui indeclinável evolução quanto à matéria, havendo divergência apenas quanto à natureza da responsabilidade civil que surge dessa fase negocial.

REFERÊNCIAS

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. III. Contratos e Atos Unilaterais. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único.12. ed. Rio de Janeiro, Forense; METODO, 2022

Sobre o(a) autor(a)
Luís Otávio Tavares Reis da Silva
Graduação pela Universidade de Taubaté, com especialização em Direito Civil e Empresarial. Experiência no Direito de Família, sob as perspectivas do Poder Judiciário, adquirida nos tempos de estágio em cartórios judiciais, bem...
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