Uma visão crítica da pena privativa de liberdade
Promove uma visão crítica da pena privativa de liberdade, avaliando o cumprimento e a eficácia de suas funções essenciais.
I - Da pena privativa de liberdade
O nosso ordenamento jurídico possui mais de 260 infrações no Código Penal, além das 50 contravenções previstas na Lei, punidas com pena privativa de liberdade, fora os inúmeros mandados de prisão preventiva ou provisória, diante do caos em que se encontra o sistema carcerário brasileiro.
Os estudiosos da área vêm propondo mudanças, como a busca de medidas alternativas, procurando novos meios de execução da pena, evitando a privação de liberdade, resguardando-a, somente, para aqueles casos considerados estritamente necessários, como em delitos graves e para condenados de alta periculosidade.
Ao pretendermos uma abordagem crítica acerca da problemática da pena privativa de liberdade procuramos especular se esta cumpre os fundamentos que a justificam e sua real eficácia no plano atual.
II - Das teorias da pena
As teorias absolutas, retribucionistas ou de retribuição, negam os fins utilitários da pena , dando-lhe o caráter estritamente retributivo. Predominante até meados dos anos 60, deduz em síntese que a pena serve como retribuição do mal causado, ou na visão de Kant, o “restabelecer a justiça” e de Hegel, “a afirmação do direito”.
As teorias relativas, utilitárias ou instrumentais, surgiram num momento posterior e vislumbram na pena a idéia de prevenção, funcionado como instrumento de justiça para sociedade. Deduzindo a prevenção geral e especial.
Dentre estas, a idéia presente na Teoria da prevenção geral negativa, baseada em Feurbach (coação psicológica), “sustentado que o efeito persuasório ou intimidativo da pena, só pela sua existência, já intimidaria as pessoas, já consistiria uma ‘ ameaça’ preventiva [1].
A teoria funcionalista da prevenção geral positiva, também chamada teoria da prevenção integração, sustentada por Jackobs e Hassmer, reza que a pena estando integrada no ordenamento jurídico, enseja a confiabilidade depositada pela sociedade no funcionamento do sistema, sendo condutas diversas, encarada como disfuncionalidade.
A teoria da prevenção especial , derivada de Von Lizt, aborda dentro de uma perspectiva positiva que a pena apenas pode servir de instrumento educativo para ao infrator, evitando que este retome a delinqüência; e na perspetiva negativa, finalizando que a pena possui uma função neutralizadora e intimidativa sobre o delinquente. O Projeto Alternativo Alemão, em meados da década de 60, utilizou esta teoria como ponto de partida, mudando a política criminal internacional.
E por último, as Teorias Mistas, que conjugam o caráter retributivo e utilitário da pena, na medida que permite a reeducação do delinqüente e serve de elemento intimidativo aos demais membros da sociedade.
César Barros Leal, em sua obra “Prisão: um crepúsculo de uma era” [2], enumera as funções da pena privativa de liberdade: retribuição , intimidação, ressocialização e incapacitação, uma vez que a clausura impede de cometer novos delitos .
III - Eficácia da pena privativa de liberdade
Deduzidas as considerações acerca das funções preconizadas pelas teorias que visam fundamentar a pena, passaremos a análise da eficácia de sua aplicação diante da nossa realidade.
Daniel W. Van Ness [3] (in Crime and victims. Illionois: Intervarsity Press, 1986 apud César B.LEAL op.cit, p.121), questiona: “Quem é vitimizado pelo crime? Você como vítima, que pode perder a vida, a saúde, a propriedade ou a paz de espírito. Você como ofensor, que pode receber uma sanção injusta que o conduza a uma prisão superlotada. Você como pagador de impostos , que paga mais e mais , a cada ano, por um sistema ( presidial) que não está cumprindo sua função.”, nos fazendo avaliar se a pena privativa de liberdade realmente cumpre o seu caráter de retribuição.
A retribuição direta ao mal causado pelo infrator àquele que sofreu o dano, acontece de fato? E quanto aos casos de impunidade? A pena privativa de liberdade deveria ter âmbito de retribuição “ampliado”, uma vez que não repara os danos causados à sociedade, nem mesmo aos cidadãos, que se vêem obrigados, mesmo de forma indireta, a sustentar através do pagamento de impostos, quem lhe agrediu, o que é injusto. E a sociedade, além de conviver com a criminalidade, fica com o ônus de ver os condenados tornarem-se reincidentes, sustentando assim um sistema ineficaz.
As estatísticas demonstram que a maioria dos criminosos são cidadãos sem antecedentes criminais e se compararmos com os altos índices registrados de reincidentes, concluiremos que a sociedade têm contribuído para criar marginais e a pena não vem cumprindo o seu fim retributivo.
O caráter intimidativo que fundamente a pena de prisão, não tem da mesma forma se apresentado eficaz, tanto no plano preventivo, tendencioso a afastar o criminoso do convívio da sociedade, intimidando-o a cometer novos delitos, ao experimentar a dureza da pena; como no plano geral, criando como dizia Feuerbach uma “coação psicológica” na sociedade. Diante do descrédito na justiça, a sociedade assiste diariamente uma imensidão de crimes serem cometidos e ficarem impunes. A impunidade sem dúvida é uma das causas que contribuem para o aumento da criminalidade.
A prevenção é melhor que a punição, entretanto pouco ou nada se tem feito. O perigo de se encobrir a real verdade dos fatos, distorcendo-os, tirou da nossa sociedade, o grande êxito da prevenção, regredindo em atitudes deploráveis, em idéias mistificadas. Tais idéias, atualmente difundidas nos meios de comunicação de massa, advogando medidas de extrema severidade, incrementando as penas, restringindo e suprimindo as garantias do acusado. O Prof. Damásio E. de Jesus [4] , diz que “Incursionando no rumo da Corrente de Lei e Ordem, a legislação criminal está colhendo o fracasso dos frutos de uma evolução no sentido de humanização, que hoje corre risco. A norma penal resguardando somente aqueles bens considerados fundamentais , não pode ser absoluta, devendo-se resguardar para o direito penal aquelas condutas de maior gravidade, substabelecendo aos outros ramos do direito, certas condutas, é o princípio da intervenção mínima e subsidiária, atualmente esquecido. Criminalidade não se combate com aumento de pena”.
Beccaria em sua monumental obra, Dos Delitos e Das Penas [5], ao cuidar dos meios de prevenção do crime, enfoca um interessante aspecto, sobre o qual embora sutil, podemos estabelecer um paralelo com a realidade brasileira: “os homens escravos são sempre mais debochados, mais cobardes, mais cruéis do que os livres(...). Mas os escravos , satisfeitos com os prazeres do momento, procuram no ruído do deboche uma distração para o aniquilamento em que se vêem mergulhados”. A diferença social, as condições de pobreza e miséria que se encontram uma parte da sociedade brasileira, transformam estas pessoas em “escravos debochados”. Na lição de Zaffaroni [6] , uma sociedade sem valores morais,apática, de famílias desestruturadas, que parece ter se acostumado com a violência, altamente difundida na mídia:” o desprezo que os ‘seriados ‘dos últimos anos demonstram pela vida humana, pela dignidade das pessoas e pelas garantias individuais , não é simples produto do acaso, mas uma propaganda em favor do reforço do poder e do controle social verticalizado-militarizado de toda sociedade.
Antônio García - Pablos de Molina [7], diz que prevenir significa intervir na etiologia do problema criminal, neutralizando suas causas,devendo -se desenvolver programas de médio e longo prazos, e a prevenção deve ser contemplada como social e comunitária, pela constatação de que o crime é um fenômeno social . Trata-se de um compromisso solidário da comunidade- não só do sistema legal e de suas repartições oficiais - que mobilizam todos os integrantes para solucionar seus conflitos dolorosos; exige ainda prestações positivas, no sentido de neutralizar as situações carenciais. Procurando uma estratégia coordenada e pluridirecional , orientados por programas selecionados para todos e cada um deles( espaço físico, habitat urbano, grupo de pessoas com risco de vitimização, etc) . E a prevenção da reincidência, iniciando com a revisão dos valores sociais proclamados e praticados.
E quanto a ressocialização, uma das finalidades da pena, altamente difundidas pelas escolas humanistas, será que tem cumprido o seu fim?
Mais uma vez utilizamos as palavras do Mestre Zaffaroni: “A prisão ou cadeia é uma instituição que se comporta como uma verdadeira máquina deteriorante ; gera uma patologia cuja principal característica é a regressão. O preso ou prisioneiro é levado a condições de vida que nada tem a ver com as de adulto; se priva de tudo que usualmente faz o adulto ou que conhece. Por outro lado, se lesiona sua auto-estima de todas as formas imagináveis: perde a privacidade e seu próprio espaço, submetendo a tratamentos degradantes.” Demonstrando que a regressão acaba por atingir o condenado, contribuindo para reincidência.
Luís Flávio Gomes [8], ao cuidar da ressocialização, traz um título bastante interessante :O Modelo ou Paradigma ressocializador, dizendo que o modelo ressocializador , em virtude da orientação humanista, altera o centro de gravidade do debate sobre as funções do sistema ; do efeito preventivo-dissuassório passa-se para seu um pacto positivo e ressocializador na pessoa do condenado. O homem , pois , e não o sistema , passa ocupar o centro da reflexão cientifica : o decisivo , acredita-se não é castigar implacavelmente o culpado(...) O paradigma ressocializador destaca-se , ademais, por seu realismo. Não lhe interessam os fins da pena, muito menos o delinqüente abstrato, senão o impacto real do castigo, tal como e cumprido, no condenado concreto do nosso tempo; não lhe importa a pena nominal que contemplam os códigos, senão a que efetivamente se executa nos atuais sistemas penitenciários .Significa, pois , um notável giro para o concreto, o real, o histórico, o empírico, no momento de avaliar a efetividade do sistema e a qualidade da sua intervenção no problema criminal(...) Referido realismo implica ponderar com rigor as investigações empíricas em torno da pena privativa de liberdade convencional, com efeito estigmatizante, destrutivo e, com freqüência , irreparável, irreversível, cabendo salientar a gravidade dessa denúncia.”.Relatando o debate doutrinário sobre a ressocialização do delinqüente, que provocou na doutrina penal atitudes dispares, uns entendendo como ‘uma desejada alternativa ao retribucionismo’, afirmando algumas correntes que trata-se de mera utopia, um mito, um engano ou simplesmente ‘uma declaração ideológica’, dentro da radical defesa da não intervenção do Direito Penal . Questiona, outrossim, a origem de opiniões tão dispares, diante de uma questão nuclear, fundamental como a ressocialização.
De fato, não poderemos conceber a idéia humanitária da pena, sem vislumbrar o aspecto da ressocialização do condenado, os indivíduos devem possuir o direito de se ‘regenerarem”, a segregação é prejudicial à própria sociedade. Eliminar os criminosos não resolverá o problema da criminalidade.
O alto grau de reincidência serve como indicador da ineficácia do sistema. O modelo deveria se orientar no sentido de manter uma integração direta com a sociedade, permitindo ao preso retribuir o mal causado.
Neste contexto a aplicação das penas restritivas de diretos e de prestação de serviços à comunidade se demonstram coerentes, bem como a mudança dos regimes de cumprimento da pena privativa de liberdade, evitado-se o regime fechado, priorizando o aberto e semi-aberto. García- Pablos de Molina [9], se manifesta neste sentido: “a intervenção das instâncias ‘oficiais’ do controle social formal é sempre negativa, estigamtizadora, pois gera a carreira criminal do infrator, ratificando definitiva e ritualmente sua condição irreversível de ‘desviado’(...). Em boa lógica, assim, sugere-se a substituição da intervenção do sistema legal por outros mecanismos que evitam referido impacto criminógeno ou, pelo menos , que o suavize. Outra não é a origem da liberdade vigiada sob prova (probation) ou sob palavra (parole), dos sistemas de apoio ao infrator primário (advocacy), da inserção ou reinserção (reintegration), do assessoramento (couseling) e, em geral, dos institutos substitutivos (diversion): prisão de fim de semana, dia-multa, trabalho ou prestação de serviços em favor da comunidade, reparação do dano e conciliação (restitution) etc”.
E por último, o fim da pena privativa de liberdade, sob o aspecto da incapacitação, impedindo pela clausura que o condenado cometa novos delitos . Também tem se demonstrado falho e incoerente, face as estatísticas .
O crescimento carcerário comparado ao crescimento as população em geral é mais rápido. Dados fornecidos pela Folha de São Paulo, de 18-12-94 [10], demonstram que nos Estados Unidos são presas 1.600 pessoas por semana, sendo que a taxa de crescimento da população prisional é dez vezes mais rápida do que a geral. Em cada 100.00 habitantes, mais de 500 são condenados.
A segregação na história nunca foi benéfica, os anos de separação formaram grupos oprimidos em opressores, ao separar os presidiários do convívio social, ao retirar-lhes sua dignidade, negando -lhe oportunidades de trabalho, de se regenerar, estigmatizando-o como ser desmerecedor de dignidade, compreensão e respeito, estaremos transformando num novo agressor.
Tais reflexões nos levam a concluir que o atual modelo de aplicação da pena privativa de liberdade, como forma de punição dos delitos tem se demonstrado falho e insuficiente para promover os fins que enseja.
Destarte concordamos com a idéia preconizada por Ney Moura Teles [11] “a historia da pena é a história de sua limitação, de sua modificação, sempre no sentido de minorar-lhe a gravidade, os efeitos , a crueldade e os modos de execução. A história da pena de prisão, igualmente, é a história de sua humanização e seu abrandamento. A história dos sistemas penitenciários do mesmo modo, é história de sua humanização, será a de sua eliminação.” Prevalecendo a punição pela aplicação das penas alternativas e reformulação do sistema penitenciário brasileiro.
[1] MOLINA, García Pablos Antônio/ GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. São Paulo, 1997, p.337-338.
[2] LEAL, César Barros. Prisão : Crepúsculo de uma era. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p 36.
[3] Crime and victims. Illionois: Intervarsity Press, 1986 apud César B.LEAL op.cit, p.121.
[4] CONSULEX, Revista jurídica, Editora Consulex, Ano II e III.
[5] BEECARIA, Cesare, Marchesi di, . Dos delitos e das penas; trad. Paulo M. Oliveira. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
[6] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal; trad. Vania Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro:Revan, 1991.
[7] IDEM , p.337-338.
[8] IBIDEM, p.349 e seguintes.
[9] IBIDEM, p.334-335.
[10] Apud, César Barros Leal, op.cit., p.40.
[11] TELES. Ney Moura. Direito Penal. Parte Geral-II. Editora Atlas, 2ª edição.