A responsabilidade civil do Estado aplicada

A responsabilidade civil do Estado aplicada

Breve estudo sobre a responsabilidade civil objetiva do Estado, trazendo à baila um interessante caso que movimentou o aparelho judiciário.

1. Introdução

Todos os manuais de Direito Administrativo tratam do tema da responsabilidade civil do Estado. Rico é o escorço histórico, diversas são as teorias, quer abandonadas, quer vigentes, e inúmeras as classificações, que buscam organizar didaticamente a matéria.

Nem sempre, contudo, ao se deparar com um caso prático, tal embasamento doutrinário é suficiente. Ressalte-se: jamais desprezível, mas nem sempre suficiente.

O presente artigo visa trazer à baila interessante questão envolvendo o tema. Ressalte-se que o objetivo é gerar discussão sobre o caso, não havendo de se falar em solução fechada, impassível de embate.


2. Breves notas sobre as teorias tocantes à responsabilidade civil do Estado

Antes de tratar da legislação pátria vigente sobre o assunto, vale mencionar, sem aprofundamento, as teorias já adotadas no Brasil, não cabendo ora tratar daquelas que jamais integraram nosso ordenamento jurídico.

Até a promulgação do Código Civil Brasileiro de 1916, leis ordinárias previam a responsabilidade solidária do Estado em caso de omissão ou abuso praticado por funcionário, no exercício de suas funções.

A partir daquele diploma, a maior parte da doutrina entendia, com base em seu art. 15, ter sido assumida a teoria da responsabilidade civil subjetiva, sendo necessária a configuração de dolo ou culpa do agente para a responsabilização civil do Estado.

As Constituições de 1934 e 1937 adotaram a sistemática anterior ao Código. Somente a partir da Constituição de 1946, a teoria da responsabilidade objetiva encontrou guarida no Brasil, onde domina até hoje.


3. Noções sobre a teoria da responsabilidade civil objetiva

Também chamada de teoria do risco, a teoria da responsabilidade civil objetiva do Estado estriba-se na tese de que, como os cidadãos compartilham das benesses oferecidas pelo Estado, devem, também, dividir os prejuízos sofridos por algum ou alguns de seus membros.

Aqui são desconsiderados os elementos subjetivos – dolo e culpa –, sendo suficiente a demonstração da existência de nexo de causalidade entre a conduta estatal e o dano sofrido pelo particular.

Note-se que a legislação pátria abraçou, sim, a teoria da responsabilidade civil objetiva do Estado, tendo, contudo, reservado o regresso sobre o servidor apenas quando caracterizada a subjetividade da responsabilidade deste, isto é, a sua atuação com dolo ou culpa.

Vale comentar, por fim, que, em caso de debilidade do funcionamento do serviço público, não é necessário invocar a teoria do risco, por restar caracterizada a culpa do serviço público. Assim, o Estado será responsabilizado pela má prestação, pela não prestação ou pela prestação tardia do serviço público.


4. Na prática...

Interessante caso bateu às portas do Juizado Especial Federal da Seção Judiciária da Bahia. Aqui não serão citados nomes ou números, haja vista que o objetivo é mergulhar um pouco nas entrelinhas da situação e da solução dada a ela.

A parte autora realizou, por intermédio de terceira pessoa, a compra de uma mercadoria, a qual lhe foi enviada pelos Correios, através de carta registrada. Percebendo a demora na chegada da mercadoria, o indivíduo buscou os Correios, quando teve a notícia de que o caminhão que trazia sua encomenda do Rio de Janeiro até Feira de Santana teria se envolvido em um acidente, tombando à beira da pista. Não se sabia sequer se o acidente teria provocado qualquer avaria no bem, porque este foi furtado por delinqüentes enquanto o caminhão permanecia virado. Pedia-se a restituição do valor desembolsado com a compra do material perdido.

À primeira vista, parece óbvio que o autor, em nada envolvido com o evento que gerou a perda do bem, merecia ser reembolsado.

Em face do desenvolvimento do estudo supra, todavia, a conclusão poderia ser diversa. Vejamos.

Em primeiro lugar, sobreleva ressaltar a natureza jurídica dos Correios, qual seja, a de empresa pública federal, pessoa jurídica de direito público, prestadora de serviço público (serviço postal). Daí se conclui ser-lhe aplicável a teoria supramencionada, da responsabilidade civil objetiva.

Entre as excludentes da responsabilidade civil objetiva, citadas pela doutrina, encontram-se o caso fortuito, a força maior e o fato de terceiro.

Em sua contestação, a ECT caracterizou o acidente ocorrido como força maior, por entendê-la, à luz das lições de Hely Lopes Meireles, como evento humano, que, por imprevisível, quebra o nexo entre a conduta e o dano, mesmo sem questionar a ocorrência deste.

Em que pese a maior parte da doutrina apregoar a definição supra como caso fortuito, e não força maior (vinculando esta a ações da natureza), note-se que o resultado seria o mesmo: esvaziamento da responsabilidade do Estado, restando sem restituição o prejuízo sofrido pelo indivíduo.

Quanto às excludentes supramencionadas, mister se faz afastá-las. Ora, a atividade de transporte traz consigo o risco de acidente, notadamente em face das estatísticas que assustam os condutores de veículos automotores nas estradas brasileiras. Por outro lado, também, não há de se falar em caso fortuito ou força maior sem a imprevisibilidade que lhes é típica.

Haveria, contudo, outra excludente a se aventar, qual seja, o fato de terceiro, perfeitamente caracterizado na ação dos delinqüentes que levaram as mercadorias presentes no caminhão tombado.

Dessa, sim, é difícil se desvincular. Afinal, a jurisprudência pátria tem defendido, ao tratar da responsabilidade civil em relação à atividade de transporte, que o nexo de causalidade entre a conduta e o dano é rompido quando da atuação de delinqüentes, o que ocorre mais freqüentemente em ônibus em viagens intermunicipais, cujos passageiros acabam sendo vítimas de assalto.

O detalhe é que a atividade dos Correios não se restringe ao transporte, antes cuidando do serviço postal, constituído pelo “recebimento, expedição, transporte e entrega de objetos de correspondência, valores e encomendas, conforme definido em regulamento” (art. 7º da Lei nº 6.538/78).

A conservação do bem, indispensável para a entrega deste, está inserida, por óbvio, nos deveres da empresa pública.

Eis, então, o raciocínio jurídico empregado na solução da questão: demonstrada a previsibilidade do evento acidente, esvaziados estão a força maior e o cão fortuito. Restaria afastar a excludente fato de terceiro. Ora, a jurisprudência tem se posicionado no sentido de caracterizar a ação de delinqüentes como fato de terceiro quando a ação daqueles é, por si só, determinante para a ocorrência do dano, o que não se verificou no caso em tela.

No caso, a ação de delinqüentes só foi viabilizada pelo acidente, de forma que cabe à ECT, responsável pelo acidente, responsabilizar-se, também, pelos furtos, por ter falhado em sua obrigação de vigilância da mercadoria sob sua guarda.

Em resumo: se o veículo tivesse sido vítima de cilada, idônea para fazê-lo parar e, então, ser assaltado, estaria demonstrada a ocorrência de fato de terceiro, retirando dos Correios a responsabilidade pelo dano sofrido pelo autor. Na hipótese, contudo, a ação dos delinqüentes só foi possível por causa de uma evento anterior, o acidente e conseqüente tombamento, pelo qual a empresa pública federal é responsável, diante da sua previsibilidade. Intocável permanece, assim, sua responsabilidade.


5. Conclusão

Conforme esclarecido na introdução, não se há de desprezar a importância das conceituações trazidas pela doutrina pátria sobre a responsabilidade civil do Estado. A solução de problemas aparentemente simples, contudo, demanda aplicação de conceitos não encontrados nos mais abalizados manuais jurídicos... Trata-se da experiência de vida, da busca da justiça que, em que pese ser o alvo do ordenamento jurídico, por vezes é esquecida pelos operadores do direito, ávidos por obter respostas objetivas e explícitas no frio texto legal.

Em momentos como tais, exalte-se o equilíbrio dos fios grisalhos e das famílias ajustadas: a visão de mundo de quem não busca, no direito, fonte de enriquecimento (o que nada tem de ilícito, a priori) ou de vaidade, mas instrumento de concreção do ideal de justiça, tão pouco valorizado nesta geração.


6. Bibliografia

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo : Atlas, 2001.

STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial: doutrina e jurisprudência. 4. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999.

Sobre o(a) autor(a)
Alzeni Martins Nunes Gomes
Funcionário Público
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