Imunidade parlamentar à prisão e mutação constitucional

Imunidade parlamentar à prisão e mutação constitucional

Após ter ganhado ênfase nos meios de comunicação pelo ineditismo do fato, a prisão do Senador da República Delcídio do Amaral desencadeou vasta discussão jurídica a respeito da imunidade à prisão dos membros do Parlamento.

INTRODUÇÃO

A questão que se propõe a abordar neste ensaio, embora com objeto rigorosamente definido, é de extrema importância por fazer parte de um tema mais amplo, a evolução das relações institucionais.

Após ter ganhado ênfase nos meios de comunicação pelo ineditismo do fato, a prisão do Senador da República Delcídio do Amaral desencadeou vasta discussão jurídica a respeito da imunidade à prisão dos membros do Parlamento.

Em meio a esse cenário e diante da realidade hodiernamente vivida na luta contra a corrupção, movimento que, ao que tudo indica, tende a direcionar a trajetória do Brasil, mostra-se oportuna a análise da prerrogativa estampada no art. 53, §2º, da Constituição da República de 1988 à luz da maturidade social no momento político atual para fins de examinar a possibilidade de sua mutação constitucional.

DESENVOLVIMENTO

O Documento Político de 1988, enquanto conjunto de normas fundamentais e estruturantes do Estado brasileiro, ao tratar da organização do Poder Legislativo estabelece aquilo que a doutrina convencionou chamar de Estatuto dos Congressistas, consistente num plexo de normas que regulamentam a atividade parlamentar, conferindo prerrogativas aos membros do Legislativo e estabelecendo-lhes limitações. Neste enredo, a Lei Fundamental prescreve em seu art. 53, §2º que “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”, estabelecendo assim a imunidade parlamentar contra a prisão, também conhecida como freedom of arrest.

O debate acerca da garantia em questão, em que se busca engajamento, foi suscitado pelo Ministério Público Federal na Ação Cautelar n.º 4039 perante o Supremo Tribunal Federal, a qual tem por objeto, dentre outros, o pleito de prisão preventiva do Senador da República Delcídio do Amaral, sob o fundamento, em suma, da relatividade da imunidade parlamentar à prisão. Com efeito, os argumentos lançados para a construção do relativismo da norma constitucional em questão chamam a atenção para o ponto em destaque neste trabalho: a mutação constitucional da norma que prevê o freedom of arrest.

A constatação de que as Constituições sofrem processos informais de transformação se deu na Alemanha pela percepção de Paul Laband de que a Constituição Alemã de 1871 frequentemente era alvo mudanças quanto ao funcionamento das instituições do Reich sem que houvessem reformas constitucionais.[1]

As mutações constitucionais, que, na lição de Mendes[2], não se confundem com a interpretação constitucional por serem fenômeno mais complexo que esta e que decorrem de fatores variados e não de simples modificações do significado do texto, enquanto fruto da atuação do poder constituinte difuso, “nada mais são que as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação”[3], as quais podem ter por fator de propulsão: uma prática estatal que não viola formalmente o Documento Político; a impossibilidade de se exercerem determinados direitos estatuídos constitucionalmente; uma prática estatal contraditória à Lei Fundamental; ou a interpretação da Constituição.[4]

Não obstante as mutações propiciem a alteração do Documento Político por imposição da realidade fática, com fundamento nos trabalhos de Hesse sobre a força normativa da Constituição, Souza e Deocleciano[5] reconhecem que a força normativa se concretiza também pela preservação da identidade da Lei Fundamental, que se dá através da atualização de seu texto a fim de atender à vontade social atual.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal não se olvida da possibilidade de mudança silenciosa da Constituição. Neste sentido, no julgamento do HC 91361 restou reconhecida a sujeição do Documento Político a alterações informais decorrentes de novas situações sociais, econômicas, jurídicas, políticas ou sociais, legitimando-se, ainda, a interpretação como veículo idôneo à ocorrência do fenômeno.

Quanto à possível mutação da norma do art. 53, §2º, da Lei Fundamental, tem-se que na petição que dá origem à Ação Cautelar n.º 4039 a Procuradoria Geral da República desenha com maestria a alteração das circunstâncias fáticas regulamentadas pela regra em questão. Da concatenação das ideias apresentadas extraem-se os seguintes pontos que retratam o estado das relações fáticas regidas pela norma constitucional ao tempo da edição da Constituição: (i) no nascimento do Documento Político de 1988 era necessário que se conferisse proteção constitucional extraordinariamente densa aos congressistas diante do risco ainda presente do retorno do regime autoritário; (ii) na ocasião da criação da Carta Política atual “a presunção do constituinte era a de que a conduta dos congressistas seria marcada por honradez e honestidade muito acima da média nacional”. Da mesma forma é possível retirar a constatação do estado atual da realidade fática regulada pela norma constitucional em tela: (i) com o assentamento da democracia a garantia parlamentar deixou de resguardar o Estado brasileiro de um possível retorno do regime autoritário para dar base à criação de uma casta hiperprivilegiada impunível; (ii) o engajamento de parlamentares em organizações criminosas e sua atuação acintosa em prol das atividades ilícitas desempenhadas pela organização destoam da honradez e honestidade esperadas dos representantes populares.

Há também tópico de extrema relevância explorado pelo Ministério Público que certamente justifica uma releitura da prerrogativa parlamentar: o desvirtuamento do exercício do mandato legislativo consistente na sua utilização para a prática de crimes. É certo que a imunidade existe para garantir o livre exercício das funções parlamentares e não a livre prática de infrações penais por detentor de mandato legislativo, ou ainda para legitimá-lo a embaraçar ou impedir investigação contra si, de modo que, havida a subversão do exercício do mandato, ou a conduta do congressista não se enquadra à norma que garante a imunidade à prisão, ou se está diante de uma alteração da realidade fática regulamentada pela norma constitucional, o que enseja, então, a mutação constitucional.

A mudança da situação fática regida pelo art. 53, §2º, da Lei Fundamental é também admitida, ainda que implicitamente, pelo Ministro Teori Zavascki na decisão da Ação Cautelar n.º 4039 ao fazer referência ao indiciamento de vinte e três dos vinte e quatro deputados da Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia, circunstância relatada pela Ministra Cármem Lúcia em voto proferido no Habeas Corpus n.º 89417, a qual afirmou que  “a própria realidade, porém, vem demonstrando que também o sentido dessa norma constitucional não pode decorrer de interpretação isolada” para sustentar a relatividade do dispositivo constitucional em comento.

Com efeito, no citado voto a Ministra Carmem Lúcia também deixa clara a compreensão da transformação das circunstâncias fáticas sujeitas à norma contida no art. 53, §2º, da Constituição ao propor uma leitura do dispositivo à luz de outros princípios constitucionais e concluir que sua aplicação literal se opõe ao seu verdadeiro conteúdo. Neste sentido há que se destacar nas ponderações de Sua Excelência a percepção de que a aplicação isolada da regra do art. 53, §§ 2º e 3º, da Constituição da República sem se considerar o contexto institucional e o sistema constitucional como um todo traduziria a elevação da regra “acima da realidade à qual ela se dá a incidir e para a qual ela se dá a efetivar”. Além disso, o voto da ilustre Magistrada também converge para o apontamento do Ministério Público Federal feito na Ação Cautelar n.º 4039 a respeito da atual normalidade institucional e democrática ao prelecionar que “não se imagina que um órgão legislativo, atuando numa situação de absoluta normalidade institucional do País e num período de democracia praticada, possa ter 23 dos 24 de seus membros sujeitos a inquéritos e processos [...]”.

Em vista destas ponderações lançadas no leadind case, não há como negar a ocorrência de profunda mudança no prisma histórico-social em que se concretiza a norma constitucional que estabelece o freedom of arrest evidenciada pela estabilização da democracia e pelo desvirtuamento da prerrogativa parlamentar. Embora não prevista dentre as disposições constitucionais transitórias, é evidente o caráter passageiro da imunidade parlamentar à prisão, que se relativiza em grau crescente à medida em que o fantasma do regime militar se esvai e dá lugar ao exercício, cada vez mais intenso, da democracia. Aliás, as recentes manifestações populares nas ruas Brasil afora, o repúdio popular à PEC 37 e a adoção cada vez mais crescente da população ao movimento de combate à corrupção retratam quão saudável se encontra a democracia brasileira.

Além disso, a verificação de que a aplicação cega do art. 53, §2º do Documento Político se opõe ao seu verdadeiro conteúdo revela a necessidade de reconhecimento da mudança informal da Lei Fundamental para preservar sua identidade, alteração que fará com que a norma passe a contar com o seguinte conteúdo: os parlamentares não estarão sujeitos à prisão cautelar pela prática de atos no estrito exercício das funções do mandato;ou, salvo hipótese de utilização do mandato para a prática de crimes, os parlamentares não estarão sujeitos à prisão cautelar, devendo a questão ser submetida à casa respectiva para que decida sobre a prisão.

Se é certo que a imunidade à prisão, embora recaia diretamente sobre o parlamentar, consiste na garantia de independência do Legislativo perante outros poderes,[6] [7]então certamente o modelo sugerido mantém intacta a garantia do livre exercício do mandato pelos parlamentares, pois eles estarão a salvo da prisão cautelar pela eventual prática de crimes sem vinculação funcional ou em momento anterior ao exercício do mandato. Além disso, a imprescindibilidade da submissão da prisão cautelar à casa respectiva para que decida sobre possível manutenção ou revogação/relaxamento assegura com solidez a liberdade de atuação exigida pelo cargo, sendo capaz de afastar indevida ingerência de outras instituições no Parlamento por conceder a esse Poder a prerrogativa de afastar ilegítimas investidas políticas, desconstituindo eventuais prisões abusivas.

Esta alteração, por certo, atende ao aviso de Canotilho[8] de que as transições constitucionais não devam contrariar os princípios estruturais políticos e jurídicos da Constituição, em verdade ela flui no sentido de manter a identidade do Documento Político com a forma republicana de governo por ela adotada, bem como expressa o estado evolutivo em que se encontra a República do Brasil, a qual em seu fundamento basilar anuncia a responsabilização dos governantes, em especial na seara penal. Assim a prisão cautelar de parlamentares por atos ilícitos relativos ao exercício funcional, enquanto instrumento de proteção do processo – via de responsabilização penal –, quando se mostrar necessária pela gravidade do desvirtuamento do mandato e em situações excepcionais, é inteiramente legítima.

Certamente, esta mutação constitucional, já ocorrida, mas até então não declarada, retrata a perfeita combinação que condiz com o atual estágio da democracia brasileira e da república: garantia do livre exercício do mandato parlamentar sem a criação de uma casta social impunível, assegurada a manutenção da identidade da Lei Fundamental.

Por fim, é preciso registrar que não se pode negar a mutação em vista ao argumento de que as relações sociais não estão devidamente maduras, pois esta negação olvida da boa doutrina constitucional, já que de acordo com Hesse[9] o fenômeno pode ocorrer tanto em longos períodos quanto em curto espaço de tempo. Neste sentido também são os ensinamentos de Bulos[10], que reconhece não ser absoluta a característica do longo período de tempo, aceitando a ocorrência de transições constitucionais em momentos próximos.

CONCLUSÃO

Desde sua promulgação o Documento Político de 1988 deixa clara a relatividade da imunidade parlamentar à prisão ao prever em seu art. 53, § 8º que as imunidades dos membros do Legislativo poderão ser suspensas durante o estado de sítio mediante o voto de dois terços dos integrantes da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatíveis com a execução da medida. Isso demonstra que se utilizadas para desvirtuamento da ordem pública as imunidades parlamentares podem ser afastadas.

Ademais, da mesma forma que a imunidade material – freedom of speech – socorre parlamentares apenas se o fato guardar vínculo funcional com o exercício direto da atividade parlamentar a imunidade à prisão se vincula à conduta praticada no estrito exercício do mandato.

Não é demais dizer ainda que a atuação acintosa de parlamentar a serviço de organização criminosa da qual faz parte afronta, com toda a certeza, o decoro parlamentar, cuja quebra pode levar à perda do mandato. Assim sendo, se a quebra do decoro desvirtua o mandato a ponto de autorizar sua cassação, certamente tem o condão de permitir a suspensão da garantia que protege o mandato.

É de se concluir, então, que, sem deixar de garantir o livre exercício do mandato legislativo, a norma contida no §2º do art.53 da Lei Fundamental de 1988 sofreu mudança informal em seu conteúdo em razão do avatar das relações fáticas por ela regidas evidenciado: a) na constatação de uma democracia saudável e operante; b) na verificação de uma república forte; c) no desvirtuamento do mandato parlamentar; d) na perda da identidade da Constituição neste ponto pela aplicação cega da norma.

REFERÊNCIAS

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

______, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

MATIAS, João Luis Nogueira (coord.). Neoconstitucionalismo e direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2009.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

[1] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 435.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 131.

[3] MENDES, op. cit., p. 130.

[4] DAU-LIN, Hsu. Mutación de la Contituión. Bilbao: Instituto Vasco de Administración Pública, 1998, p. 1101, apud MENDES, op. cit., 131.

[5] SOUZA, José Péricles Pereira de; DEOCLECIANO, Pedro Rafael Malveira. Mutação constitucional por interpretação: promoção ou ameaça aos direitos fundamentais?. In: MATIAS, João Luis Nogueira (coord.). Neoconstitucionalismo e direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2009, p. 262.

[6] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 534.

[7] TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 29 apud LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 370.

[8] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 232.

[9] HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, passim apud SOUZA, José Péricles Pereira de; DEOCLECIANO, Pedro Rafael Malveira. Mutação constitucional por interpretação: promoção ou ameaça aos direitos fundamentais?. In: MATIAS, João Luis Nogueira (coord.). Neoconstitucionalismo e direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2009, p. 264.

[10] BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 62.

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Altecir Bertuol Junior
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