Competência “ratione personae” - Parlamentares Federais

Competência “ratione personae” - Parlamentares Federais

O foro por prerrogativa de função constitui uma proteção à própria sociedade, no sentido de evitar que os seus representantes eleitos não sejam submetidos a um julgamento tendencioso ou arbitrário, que poderá tanto favorecê-los como aviltá-los em seus direitos fundamentais.

1. INTRODUÇÃO

Segundo as palavras do Eminentíssimo ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Carlos Ayres Britto: “O parlamentar é, por definição, aquele que parla, que faz uso da fala, é quem se comunica, em suma, com a população e presta contas a ela de seus atos, de maneira permanente.” [1]

No Brasil os parlamentares federais são os membros que compõem o Congresso Nacional, a saber, os Deputados Federais (representantes do povo) e os Senadores (“representantes” dos Estados Federados).

Aos parlamentares federais é conferido o foro por prerrogativa de função. É o que dispõe a Constituição Federal, em seuArt.102, inciso I, alínea b, segundo o qual: “compete ao Supremo Tribunal Federal, processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República”.       

2. CONTEXTO HISTÓRICO

Iniciemos dizendo que o denominado foro por prerrogativa de função, que é também chamado de foro especial, ou foro privilegiado, não constitui nenhuma extravagância jurídica, tampouco uma inovação constitucional, como querem fazer crer alguns veículos de comunicação. O instituto tem previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro desde a primeira Carta Magna, a Constituição do Império (1824), a qual, ainda a época da escravidão, não admitia que um político ou pessoa da nobreza fossem julgados seguindo o mesmo rito processual que os cidadãos comuns. A Constituição posterior, Republicana (1891), da mesma forma dispunha que algumas pessoas, em razão dos cargos que ocupavam, detinham a prerrogativa de serem julgadas por Tribunais Superiores estando sujeitas, portanto, a decisões colegiadas. Decisões estas que, em tese, conteriam menos vícios do que aquelas proferidas por juízes monocráticos (de primeiro grau).

Tal prerrogativa perpassou-se ao longo do tempo, estando expressa nas constituições de 1934 (da chamada Era Vargas), de 1937 (Estado Novo), de 1946 (“Nova República”).Se fazendo presente, inclusive, nas constituições autoritárias de 1967 e 1969 (Emenda Nº 01), as quais foram outorgadas sob a égide do Regime militar que perdurou de 1964 a 1985.

Por fim, mesmo com o advento da Constituição Federal de 1988, o chamado foro especial não foi extinto. Ao contrário disso, o instituto teve a sua abrangência ampliada pelo constituinte originário, até por razões óbvias, considerando-se o fato da Carta de 1988 ter primado pelo zelo à democracia e às liberdades individuais, em face das já tão bem conhecidas violações e arbitrariedades praticadas durante o Regime militar que a antecedeu.

3. A PRERROGATIVA DO FORO ESPECIAL

É pertinente salientar que a prerrogativa não consiste em um privilégio à pessoa (considerada em sim mesma), mas sim em uma proteção ao cargo ocupado.

É que, em um Estado Democrático de Direito, como é o nosso, muitos são os poderes que permeiam a sociedade. Dentre outros, destacam-se os poderes econômicos, políticos, sociais, midiáticos e tecnológicos. Esses poderes, não raras vezes, acabam por influir no ânimo do julgador.

Desta forma, concede-se aos ocupantes de tais cargos a prerrogativa de serem processados e julgados por um Tribunal superior, pois há a presunção de que os membros dessa corte, por se tratarem de julgadores mais experientes,sejam menos suscetíveis ao desvirtuamento e ao erro que podem decorrer de pressões externas.

É em respeito também ao princípio da Isonomia material, o qual dispõe, conforme leciona o mestre Ruy Barbosa (inspirado em Aristóteles) que se deve: “tratar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades, para igualá-los no plano da lei”, que o instituto da prerrogativa prevalece até os dias de hoje. É bem de ver que quando ocupa um cargo eletivo, o parlamentar torna-se um “desigual” para os efeitos processuais penais.

4. LIMITES A PRERROGATIVA

A partir das afirmativas acima elencadas surge-nos uma questão de grande monta.Qual o limite dessa prerrogativa? Vale dizer, em que momento o foro especial alcança o seu fim?

Em um primeiro momento, a teoria adotada era a da “perpetuatio jurisdictionis”, segundo a qual a prerrogativa em favor da função se protraia no tempo, mesmo após a cessação do mandato. É o que se apreende através da Súmula 394 do STF (atualmente cancelada), o enunciado determinava que: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.[2]

A título de exemplo, se um deputado federal cometesse um crime em 2010, sob a vigência do mandato, e a ação penal fosse iniciada apenas em 2014, após o fim do mandato, o Supremo Tribunal Federal continuava sendo o foro competente para o julgamento da lide.

Entretanto, em agosto de 1999, através de uma Questão de Ordem suscitada no Inquérito 687-SP, a sobredita Súmula foi cancelada, por unanimidade, em sessão plenária do STF. Durante o julgamento, com maestria advertiu o Ministro Sidney Sanches que “a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo.” [3]

Com o cancelamento da súmula, portanto, a prerrogativa cessa simultaneamente com o fim do mandato, remetendo-se os autos ao juiz de primeiro grau. Entendimento esse que, com as devidas vênias, nos parece ser o mais adequado sob a ótica jurídica, posto que, como fora bem dito, a proteção se destina tão somente ao exercício do cargo, e não a pessoa que o ocupa. Cognição contrária levaria a crer que determinados cidadãos, apenas pelo fato de terem possuído, em algum momento, um mandato pura e simplesmente eletivo, adquiriram “ad eternum” privilégios especiais em detrimento dos cidadãos comuns. O que destoaria completamente do que se entende por Isonomia Material.

Ora, cessado o mandato legislativo, cessa também a condição que diferencia o parlamentar do cidadão comum. Devendo aquele, assim como este, ser julgado segundo as regras de competência definidas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal, que a todos são impostas, não havendo o que se aventar em foro por prerrogativa de função.

5. LEI Nº 10.628, DE 24.12.2002

A posição firmada pelo Supremo causou certa paúra aos parlamentares, os quais objetivando a ressureição da Súmula 394, aprovaram a Lei nº 10.628/2002, que acresceram ao Art. 84 do CPP, os §§ 1.º e 2º. Hugo Nigro Mazzilli pontua acertadamente a questão dizendo:

Revogada a Súmula 394, o Presidente da República, os parlamentares se sentiram como na história do rei que fica nu...Antes protegidos por uma regra de foro por prerrogativa de função, que concentrava o poder de investiga-los e processá-los nas mãos do Procurador-Geral da República e dos altos tribunais (cujos integrantes são nomeados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado, podendo o Procurador-Geral ser reconduzido indefinidamente), de uma hora para outra essas autoridades passaram a tornar-se, de forma inédita, meros cidadão comuns... Que acinte! O foro especial por prerrogativa de função deixaria de existir, só porque tinham deixado de existir as funções...Então, por que não buscar por novas vias jurisprudenciais ou até por alteração legislativa aquilo que o STF lhes tinha dado por meio da Súmula 394, e depois, infelizmente, negado quando revogada a referida súmula?[4]

Esses dispositivos legais tornavam a perpetuar a jurisdição por prerrogativa de foro. Um verdadeiro retrocesso e desrespeito acerca do entendimento já cristalizado pela Corte máxima deste país.

A CONAMP – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – ajuizou, em 27.12.2002, ação direta de inconstitucionalidade[5] tendo como objeto justamente os nefastos §§ 1.º e 2.º do art. 84 do CPP, acrescentados pela Lei n. 10.628/02, eo STF, em setembro de 2005, de modo louvável, declarou a inconstitucionalidade [6]dos acréscimos feitos pela referida Lei.

Destarte, o entendimento vigente é de que o fim do mandato causa fim ao foro privilegiado, devendo os autos serem remetidos ao juiz de primeiro grau.

6. CONEXÃO E CONTINÊNCIA

Cabe-nos aqui ressaltar que as regras de conexão e continência, previstas nos Art. 76 e 77 do CPP, se aplicam na competência “ratione personae”.

Assim é que, se um cidadão comum (que não detém tal prerrogativa) praticar um ou mais crimes, em conluio com um parlamentar, o foro competente para o processamento e julgamento da ação será o foro privilegiado, definido em razão da prerrogativa de função.

Tome-se para efeitos de exemplo a Ação Penal 470, caso que ficou conhecido como Mensalão. Nesta Ação, cidadãos comuns praticaram crimes em conjunto com deputados federais e, pela regra da conexão, estão sendo processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal.

7. CONCLUSÃO

Em suma, é razoável afirmar que o foro por prerrogativa de função constitui uma proteção à própria sociedade, no sentido de evitar que os seus representantes eleitos não sejam submetidos a um julgamento tendencioso ou arbitrário, que poderá tanto favorecê-los como aviltá-los em seus direitos fundamentais, como o contraditório e a ampla defesa, o que ocasionaria um dano inestimável às bases sociais democráticas.

Entretanto, essa prerrogativa não pode, em nenhuma hipótese, ser perpetuada, sob pena de se lacerar o próprio Princípio da Isonomia, o qual é fundante em todo e qualquer ordenamento jurídico que se esteja alicerçado em bases democráticas sólidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 19. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2012.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 12. Ed. rev. atual e ampliada. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

MAZZILLI, Hugo Nigro. O Foro por Prerrogativa de Função e a Lei n. 10.628/2002.

BRITTO, Carlos Ayres. AgRgREspe nº 20.859/RS. DJ 25/5/2006.

[1]AgRgREspe nº 20.859/RS. DJ 25/5/2006

[2]http://www.dji.com.br/normas_inferiores/regimento_interno_e_sumula_stf/stf_0394.htm

[3] SÚMULA 394: CANCELAMENTO - Inquérito 687-SP (QO)

[4]MAZZILLI, Hugo Nigro. O Foro por Prerrogativa de Função e a Lei n. 10.628/2002.

[5]ADIn n. 2797.

[6]http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=395710

Sobre o(a) autor(a)
Gabriel Vieira Rodrigues Ferreira
Gabriel Vieira Rodrigues Ferreira Graduando em Direito pela Universidade Católica de Santos
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