Infanticídio: elemento subjetivo culposo e irresponsabilidade do agente
Inadmissibilidade do elemento subjetivo culposo para configuração do crime de infanticídio e combinação da inimputabilidade com o estado puerperal para exclusão da culpabilidade.
Trata o infanticídio de espécie de forma privilegiada do crime de homicídio. Abranda-se a pena pela morte do próprio filho, uma vez que o estado psíquico provocado pelo puerpério opera efeitos no sujeito ativo no sentido de reduzir-lhe a capacidade de autodeterminação sobre os atos que pratica.
O estado puerperal significa profunda alteração psíquica e física que provoca transtorno na mãe, sujeito ativo próprio do delito, fazendo com que a mesma se encontre em posição de incapacidade de entender o que está praticando.
Sendo assim, algumas questões se colocam: a primeira delas trata do elemento subjetivo do delito, enquanto que a segunda trata de ausência de culpabilidade em virtude da perda da capacidade de autodeterminação da mãe ou redução da sua capacidade de entender o caráter ilícito do fato.
Sobre o elemento subjetivo do delito, o tipo penal incriminador somente se configura quando o agente atua com dolo, ou seja, com a intenção de provocar o resultado ou quando assume o risco em provocá-lo. Não é possível configurar o delito, quando atua com falta de cuidado a mãe, por isso o atuar descuidado dela que imprime o resultado morte, estando a mesma sob a influência do estado puerperal, pode ocasionar o delito de homicídio culposo.
Damásio Evangelista de Jesus aduz que delito nenhum pode ser caracterizado quando atua a mãe com culpa, sob o estado puerperal, porque não seria possível exigir da parturiente, perturbada psicologicamente, que aja de acordo com as cautelas comuns impostas aos seres humanos. (Direito Penal, v.2, p.109)
Fernando Capez, combatendo tal tese, diz que o elemento subjetivo da culpa, presente no caso em estudo, traz deficiências de ordem pessoal da gestante que devem ser observadas em sede de culpabilidade, mas não no fato típico. Por isso, a mãe deveria ser responsabilizada por homicídio culposo. (Curso de Direito Penal, parte especial, v.2, p.266)
No mesmo sentido estão as lições de Nelson Hungria, quando ensina não se admitir a forma culposa no delito de infanticídio, concluindo haver homicídio culposo, caso o neonato venha a morrer por imprudência ou negligência da mãe. (Comentários ao Código Penal, v.5, p.229)
Por fim, sobre o assunto, colacionamos o posicionamento do Promotor Rogério Greco, combatendo a tese defendida por Damásio, quando aduz: “pelo que se verifica da exposição feita pelo renomado tratadista, tenta-se afastar a responsabilidade pelo delito culposo erigindo-se a existência do estado puerperal, o que, segundo entendemos, não se justifica. Pode a parturiente, ainda que influenciada pelo estado puerperal, cuja ocorrência é comum, mesmo não querendo a morte de seu filho, deixar de tomar os cuidados necessários à manutenção de sua vida, agindo, pois, culposamente, caso a inobservância ao seu dever objetivo de cuidado venha a produzir a morte de seu próprio filho.” E conclui: “Em suma, a influência do estado puerperal não tem o condão de afastar a tipicidade do comportamento praticado pela parturiente que se amolda, em tese, ao delito de homicídio culposo, embora tal fato deva influenciar o julgador no momento da fixação da pena-base, quando da análise das circunstâncias judiciais.”
Logicamente, o tema tem ponto de dificuldade justamente porque a circunstância pessoal, elementar do tipo, mistura conceitos acerca do grau de responsabilidade pessoal em sede de culpabilidade. Senão vejamos.
O saudoso mestre Hungria afirma que o delito de infanticídio encerra um caso especial de responsabilidade diminuída, que importa, conceitualmente, uma pena grandemente diminuída em relação ao homicídio doloso. Salienta o autor: “a identificação de tal caso está subordinada à averiguação de que o estado puerperal, ou seja, o estado consequente às dores do parto, ou de excitação e angústia por este produzidas, aliado ao psiquismo particular (não anormal) da parturiente, contribuiu no ato voluntário da occisão do infante.” (Comentários ao Código Penal, v.5, p.216)
Sendo assim, surge interessantequestão: seria possível aplicação conjunta do art.123 c/c o art.26 ou art.26, parágrafo único, todos do Código Penal?
Respondem afirmativamente Nelson Hungria, Aníbal Bruno, Rogério Greco, E. Magalhães Noronha, dentre outros.
Nelson Hungria afirma que, quando o parto é apenas o mordente de uma predisposição psicopática, ou um motivo de agravação ou recrudescência de uma psicopatia em ato, é possível a combinação das normas apontadas, aquela do tipo penal incriminador e esta confirmatória da ausência ou diminuição da culpabilidade.
Isso porque, a influência do estado puerperal pode coexistir com a regra geral sobre a imputabilidade restrita, quando há causas outras, como a preexistência de doença mental da parturiente, ou acarretamento, por si mesmo, ainda que em mulheres mentalmente sãs, uma perturbação psíquica patológica, de modo a anular ou reduzir sobremaneira, de todo, o entendimento e a vontade da parturiente, será esta uma irresponsável ou semi-inimputável, nos termos do art.26 ou de seu parágrafo único, do Código Penal.
Ainda, nesse sentido são as lições de Rogério Greco com base na doutrina de Frederico Marques. A parturiente que se encontra abalada de tal maneira que seja inteiramente incapaz de entender a ilicitude do fato por ela praticado, ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, será tratada como inimputável, afastando-se, consequentemente, sua culpabilidade, bem como a própria infração penal, conceituada a culpabilidade no ínterim do conceito analítico do delito.
Portanto, a maioria dos doutrinadores admite tal possibilidade, sendo possível o reconhecimento da influência do estado puerperal e também da inimputabilidade ou semi-inimputabilidade da parturiente.
Por isso, acredita-se que Damásio ecoa voz isolada com a posição supramencionada.
Damásio afirma que não cometerá crime algum a mãe que, sob a influência do estado puerperal, de forma culposa, pratica ato que promove a morte do próprio filho, porque o puerpério, por si só, retiraria por inteiro a capacidade de a mesma empreender a conduta diligente que dela era esperada. Ao passo que a doutrina majoritária caracteriza tal fato como sendo o delito de homicídio culposo, desde que o puerpério não seja tão influenciador de sua conduta a ponto de retirar a capacidade de autodeterminação dela.
Haveria, na hipótese, o injusto penal de homicídio culposo, podendo ser afastada a imputabilidade pela transitoriedade da doença mental, excluindo-se ou reduzindo-se a culpabilidade.
O ponto de vista do professor Damásio faz indicar que o fato culposamente praticado por uma mulher influenciada pelo estado puerperal seria suficiente a caracterizar hipótese de incapacidade mental, portanto seria inimputável a pessoa dela. Caso fosse desse jeito, o infanticídio, ainda que praticado na forma dolosa, faria incorrer o sistema penal em odiosa função de responsabilidade objetiva de tal pessoa, configurando-se versari in re illicita – nítida presunção de dolo e culpa.
Ademais, salienta-se a possibilidade de aplicação do perdão judicial - instituto extintivo de punibilidade – ao caso em exame, uma vez que matar de modo culposo o próprio filho autoriza ao magistrado deixar de aplicar pena, quando as consequências da infração atingirem o próprio agente, sobremaneira, de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária. Inteligência do Art.121, §5º, c/c Art.59, todos do Código Penal.
Sendo assim, diante do exposto, concluímos a indicar que não há previsão legal do delito de infanticídio culposo, logo, caso a mãe provoque no filho o resultado morte em razão de negligência, praticará o delito de homicídio culposo. Em ambas as hipóteses, caso o estado puerperal seja suficiente a retirar do agente a capacidade de se autodeterminar diante do evento, excluída estará a culpabilidade, por causa da inimputabilidade.