Arguição de suspeição às autoridade policiais no inquérito policial
O Código de Processo Penal prevê a possibilidade arguir a suspeição de juízes, promotores, advogados, ou qualquer outro auxiliar da justiça, de funcionar em determinado processo, no caso de haver dúvida quanto à imparcialidade e independência com que devem atuar.
INTRODUÇÃO
Conforme brilhantemente define o doutrinador Guilherme de Souza Nucci:
“O inquérito policial é um procedimento preparatório da ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela polícia judiciária e voltado à colheita preliminar de provas para apurar a prática de uma infração penal e sua autoria. Seu objetivo precípuo é a formação da convicção do representante do Ministério Público, mas também a colheita de provas urgentes, que podem desaparecer, após o cometimento do crime. Não podemos olvidar, ainda, que o inquérito serve à composição das indispensáveis provas pré-constituídas que servem de base à vítima, em determinados casos, para a propositura da ação penal privada”.
Dessa forma constitui, basicamente, o inquérito policial em um procedimento administrativo, pré-processual, presidido por autoridade policial, que visa à apuração de infrações penais, bem como autoria, materialidade e as circunstâncias de ocorrência. O procedimento investigativo é dispensável, de tal maneira que não constitui pressuposto essencial ou fase indispensável ao desenvolvimento de uma ação penal futura.
Há divergência doutrinária quanto à importância do procedimento investigativo de tal modo que enquanto alguns demonstram a grande importância do procedimento inquisitorial outros afirmam categoricamente pela dispensabilidade do procedimento, haja vista o relativo valor probante do inquérito policial. O que de fato seria coerente, é que não devesse o juiz sentenciar tendo por sustentáculo um procedimento cuja natureza é administrativa, com a desconsideração das demais provas colhidas durante o processo penal. Até porque, claramente o procedimento exclui direitos constitucionalmente garantidos aos cidadãos, tais como o Contraditório e Ampla Defesa, pois a autoridade policial utiliza-se de critérios subjetivos e de mera discricionariedade para obter os esclarecimentos necessários para reunir provas e indícios de autoria e materialidade.
A realização do procedimento ocorre de forma tão subjetiva, que uma única autoridade reúnem-se todas as atividades do inquérito, isto é, defende, acusa e julga, sendo, por tal motivo o inquérito policial definido como um sistema processual penal de natureza inquisitiva. Tal natureza se evidencia amplamente no que tange à arguição de suspeição das autoridades policiais durante o inquérito policial, que conforme definido no artigo 107 do Código de Processo Penal, proíbe expressamente que seja oposta a tal suspeição, de tal modo que se a autoridade não se declarar como tal, nada é possível de ser feito para afastar o agente da condução do procedimento investigativo.
DESENVOLVIMENTO
O doutrinador Fernando Capez define a suspeição como sendo a exceção que “Destina-se a rejeitar o juiz, do qual a parte argüente alegue falta de imparcialidade ou quando existam motivos relevantes que ensejam suspeita de sua isenção em razão de interesses ou sentimentos pessoais".
O Código de Processo Penal prevê a possibilidade arguir a suspeição de juízes, promotores, advogados, ou qualquer outro auxiliar da justiça, de funcionar em determinado processo, no caso de haver dúvida quanto à imparcialidade e independência com que devem atuar. De acordo com o artigo 254 do diploma repressivo legal, o juiz dar-se-á a por suspeito ou poderá ser recusado pelas partes quando: I - for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles; II - se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente, estiver respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia; III - se ele, seu cônjuge, ou parente, consanguíneo, ou afim, até o terceiro grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes; IV - se tiver aconselhado qualquer das partes; V - se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes; VI - se for sócio, acionista ou administrador de sociedade interessada no processo. Ainda a suspeição pode ser arguida aos peritos, aos intérpretes e aos serventuários ou funcionários de justiça e aos jurados.
A controvérsia com relação à arguição de suspeição ocorre em razão do disposto no artigo 107 do Código de Processo Penal que dispõe que “não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal”. Diante dessa perspectiva, existindo alguma das hipóteses para que o delegado de polícia fosse declarado suspeito, e este não o fazendo, será vedado ao investigado a oposição de suspeição no âmbito do inquérito policial.
Surge aqui uma contradição
inegável e inconstitucional vez que o artigo 5º, LV da
Constituição Federal dispõe que "aos litigantes, em processo judicial
ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e
ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes".
Tal
direito é visivelmente violado no caso do inquérito policial pois o delegado de
polícia, que investiga o suspeito no procedimento administrativo, mesmo
apresentado os requisitos que implicariam em suspeição, não há previsão legal
para que terceiros insurjam contra tal “vício” visando restaurar a legalidade e
a rigidez de seu direito.
O ordenamento jurídico, portanto, ao mesmo tempo em que atribui um direito, impede que seu titular o exerça, caso não lhe seja reconhecida espontaneamente a suspeição pelo delegado de polícia.
Ainda que doutrina e jurisprudência entendam, majoritariamente, que à fase de inquérito policial não se aplicam garantias do contraditório, ampla defesa não se pode elidir garantias como as da imparcialidade do agente encarregado do procedimento inquisitorial.
Fato é que em face da nova realidade constitucional, inaugurada em 1988, momento histórico amplamente diverso do momento de edição do Código de Processo Penal, parece incompatível a tese veementemente sustentada, de que seria inaplicável o contraditório e a ampla defesa inquérito policial.
Fundamental destacar que ainda que em sede de investigação criminal, é imprescindível o tratamento digno, inerente à pessoa humana, de modo garantir a investigação proporcional, e sem que haja juízo de conveniência e oportunidade em face de questões subjetivas do agente encarregado da investigação policial.
Importante salientar que o dentre os princípios regentes do processo penal, o da Verdade Real determina que o Estado só interessa punir aquele que tenha sido autor da infração e por isto, parte-se em busca da verdade do que realmente aconteceu, não se satisfazendo o processo penal com verdades formais. Assim, a imparcialidade é um dos caminhos garantidores do alcance dessa verdade. A suspeição de uma autoridade policial não argüida por ela é fato que pode ser impeditivo ao alcance da real verdade dos fatos.
Considerando à ausência de princípios constitucionais basilares do Estado Democrático de Direito, que dá condição as partes de se defenderem, além de seu forte teor discricionário, o comparativamente o inquérito policial apresenta pequeno valor probatório. Segundo o entendimento de Fernando Capez:
"O inquérito policial tem conteúdo informativo, tendo por finalidade fornecer ao Ministério Público ou ao ofendido, conforme a natureza da infração, elementos necessários para a propositura da ação penal. No entanto, tem valor probatório, embora relativo, haja vista que os elementos de informação não são colhidos sob a égide do contraditório e da ampla defesa, nem tampouco na presença do juiz de direito. Assim, a confissão extrajudicial, por exemplo, terá validade como elemento de convicção do juiz apenas se confirmada por outros elementos colhidos durante a instrução processual".
A
impossibilidade de argüição de suspeição de autoridade policial, explicita o
caráter inócuo do inquérito, uma vez que sendo conduzido por alguém que não
possa ser estritamente imparcial na busca por uma verdade, dificilmente poderá
se aproximar da verdade real, de modo que as provas e indícios de autoria e
materialidade possam ficar maculadas de vícios.
CONCLUSÃO
Pelo exposto, entende-se que caso o delegado de polícia condutor das investigações não se declare suspeito, deveria ser possível ao investigado opor tal exceção, de forma que a autoridade policial superior as analisasse. Essa deveria ser a disposição do Código de Processo Penal por demonstrar melhor sintonia com a Constituição Federal e consequentemente com o rol de garantias e direitos constitucionais.
A atividade investigativa deve ser realizada, portanto, de forma qualificada, razoável, sem vícios de parcialidade, para que seja legítima e obtenha o êxito desejado.
Assim, parece desproporcional, que aos juízes, promotores, advogados, ou qualquer outro auxiliar da justiça seja possível opor exceção de suspeição, e que ao encarregado do inquérito policial não seja possível. Entendo que o objetivo da exceção constitui em elidir fatores de caráter subjetivo do processo penal, inerentes a quaisquer seres humanos. A impossibilidade de fazê-lo contra o encarregado do inquérito policial, seria o mesmo que afirmar que tal situação só poderia ocorrer em uma parte da persecução penal, o que certamente é um contrassenso.
Entende-se, dessa forma ser evidente que o artigo 107 do Código Processo Penal “Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declararem-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal”, em sua primeira parte não foi recepcionada pela nova ordem jurídica constitucional vigente e inaugurada em 1988.
Espera-se que o projeto do novo Código de Processo Penal seja hábil a alterar a incompatibilidade da norma processual penal face aos dispositivos constitucionais vigentes.
Bibliografia:
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18ª edição, 2011,
Editora Saraiva, São Paulo.
Art. 107 do CPP: "Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais
nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer
motivo legal".
NUCCI, Guilherme Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 6ª edição,
2010, Editora Revista dos Tribunais.