Natureza do decreto presidencial que declara área de interesse social para fins de reforma agrária
Natureza exata do decreto expropriatório. Inexistência de correlação com o procedimento administrativo para aferição de produtividade de imóvel rural.
Introdução
A identificação da natureza jurídica de um instituto revela mais intensamente sua importância na definição do regime jurídico a ele incidente e na observância de suas balizas dentro do sistema positivo e de seus efeitos jurídicos. Passando pela identificação da essência do instituto e seus atributos, tal processo impõe ao operador encontre seu melhor amoldamento dentro do sistema jurídico.
O decreto presidencial que declara área de interesse social para fins de reforma agrária tem matriz na Constituição Federal e delineamento infraconstitucional satisfatório. A despeito de todo esse arcabouço jurídico evidenciar a natureza autônoma do decreto presidencial (ato declaratório, simples e discricionário), há uma tendência dos operadores jurídicos em se estabelecer liames entre este ato presidencial e o procedimento realizado pelo INCRA para obtenção do laudo agronômico de fiscalização, como se o primeiro marcasse a finalização do procedimento fiscalizatório.
O presente trabalho objetiva exatamente evidenciar a inexistência dessa correlação e de qualquer condicionamento entre os atos administrativos aqui tratados, o que se fará mediante a demonstração da exata natureza do decreto presidencial que declara área de interesse social para fins de reforma agrária.
Dos vários atos administrativos relacionados à desapropriação
A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, no plano estritamente constitucional, impõe a relativização do direito de propriedade diante do identificado descumprimento de sua função social. Num primeiro momento, a comprovação desse ilícito constitucional se realiza mediante procedimento administrativo, que apenas instrumentaliza aferição da produtividade, cumprimento aos ditamens da legislação ambiental e trabalhista e aspectos ínsitos à viabilidade técnica e econômica do imóvel para destinação a assentamentos de reforma agrária, eventualmente culminando na sua reclassificação junto ao cadastro rural mantido pelo Poder público, somente após isso exigindo regramentos pelo contraditório e ampla defesa, porquanto antes disso não potencializaria sequer ameaça a direito, na medida em que sendo direito da Administração fiscalizar, a ninguém prejudica quem seu direito exerce.
Observadas as diretrizes constitucionais, o ordenamento fixou os contornos das fases desse procedimento interno, onde são definidos os critérios para o diagnóstico inicial concernente ao cumprimento da função social da propriedade, através da aferição do GUT e do GEE, do aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, da utilização compatível dos recursos naturais disponíveis e da preservação do meio ambiente, da observância das disposições que regulam as relações de trabalho, e ainda da exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Portanto, mediante procedimento administrativo, a Administração identifica o imóvel rural vocacionado à reforma agrária, não se exigindo seja regrado por contraditório e por ampla defesa, porquanto, conforme se demonstrará, tais garantias não são ínsitas a esta fase e estarão resguardadas no processo judicial a que se refere a Lei Complementar 76/93.
Será no processo judicial regrado pelo contraditório e pela ampla defesa que se corporificará a pretensão da Administração em realizar a desapropriação do imóvel rural sobre o qual se identificou a vocação para reforma agrária. E será por ato jurisdicional, vencida a oposição individual do proprietário, que se declarará o descumprimento dos requisitos concernentes à função social, conforme explicitados nos arts. 185 da Constituição Federal e 6º a 9º da Lei nº 8.629/93, sujeitando a propriedade às conseqüências determinadas no ordenamento.
A deflagração e o desenvolvimento de tais trâmites autorizados pela Constituição Federal, regem-se pelas disposições da Leis nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, Lei Complementar nº 76, de 6 de julho de 1993, Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, Decreto nº 2.250, de 11 de junho de 1997, Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, e pelas normas de execução do INCRA.
Espécie de intervenção do Estado no domínio privado, a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária desenvolve-se mediante uma fase administrativa e uma fase judicial, sendo apenas nesta última que os atos administrativos precedentes se corporificam em materialidade de ação sob o prisma da tangibilidade patrimonial, conforme concluiu o Supremo Tribunal Federal nos autos do MS nº 24.163.
Procedimento administrativo para obtenção do laudo de vistoria prévia e o decreto presidencial declaratório
Atendendo à base legal aplicável à espécie, os atos mais relevantes do procedimento administrativo INCRA são os seguintes:
a) deflagração do procedimento administrativo, por provocação ou de ofício (art. 1º da NORMA DE EXECUÇÃO/INCRA/SD/Nº 35, DE 25 DE MARÇO DE 2004 e art. 1º do Decreto nº 2.250/97);
b) notificação (comunicação) encaminhada ao proprietário, preposto ou representante, pessoalmente ou por edital, cientificando da realização de vistoria prévia para levantamento de dados e informações (art. 2º, §§ 2º e 3º da Lei nº 8.629/93 e art. 3º da NORMA DE EXECUÇÃO/INCRA/SD/Nº 35/2004), com antecedência mínima de 3 dias (art. 26, §2º, da Lei nº 9.784/99);
c) realização da vistoria, consubstanciada no laudo agronômico de fiscalização, elaborado na forma estabelecida no Manual para Obtenção de Terras e Perícia Judicial, Módulo II, com foco na aferição do cumprimento de sua função social, conforme definido nos arts. 2º e 9º da Lei n° 8.629/93, acompanhado, conforme o caso, de parecer sobre a viabilidade técnico-econômica e ambiental de sua exploração via reforma agrária, tomando-se por base as condições de uso do imóvel nos doze meses inteiros imediatamente anteriores ao do recebimento da comunicação prevista no art. 2º, §§ 2º e 3º, da Lei nº 8.629/93 (art. 4º da NORMA DE EXECUÇÃO/INCRA/SD/Nº 35/2004);
d) identificação dos valores do Grau de Utilização da Terra - GUT e Grau de Eficiência na Exploração – GEE, com base nos elementos coligidos no Laudo Agronômico de Fiscalização, seguindo-se atualização dos dados cadastrais e classificação fundiária do imóvel rural (art. 4º, §4º, da NORMA DE EXECUÇÃO/INCRA/SD/Nº 35/2004);
e) encaminhamento ao proprietário, preposto ou representante legal, através de correspondência com aviso de recebimento – AR, da Declaração para Cadastro de Imóvel Rural - DP “ex officio”, bem como ofício informando a situação cadastral encontrada, sendo-lhe concedido, a partir do seu recebimento, o prazo de 15 (quinze) dias para interposição de impugnação administrativa e recursos (art. 5º da NORMA DE EXECUÇÃO/INCRA/SD/Nº 35/2004, e art. 3º, II, 26 da Lei nº 9.784/99);
f) finalização do procedimento administrativo, após o resultado das impugnações e recursos, com a efetiva atualização dos dados cadastrais e (re)classificação fundiária do imóvel rural (art. 5º da NORMA DE EXECUÇÃO/INCRA/SD/Nº 35/2004).
O procedimento administrativo, portanto, finaliza com a efetiva atualização dos dados cadastrais e a classificação fundiária do imóvel rural, podendo ou não - se, notificado, o proprietário impugnar a reclassificação - iniciar-se um processo administrativo, que a seu tempo finalizaria após o resultado das impugnações e esgotados os recursos.
Os atos praticados pelo proprietário no curso desse procedimento que culmina com a reclassificação cadastral objetivam auxiliar na sua instrução.
Tanto é assim que o legislador constitucional não impôs a obrigatoriedade do precedente processo administrativo de aferição da produtividade, mas a determinação do ajuizamento da ação judicial com contraditório especial (cognição exauriente), previamente instruída com o decreto presidencial (art. 184, §§2º e 3º).
Portanto, será através do processo judicial regrado pelo contraditório e pela ampla defesa que os indícios da improdutividade econômica e da inadequação ambiental e trabalhista, refletindo presunções diagnosticadas administrativamente, ganharão certeza jurídica (reconhecimento jurisdicional) de que a propriedade rural efetivamente não atendeu aos requisitos concernentes à função social, conforme explicitados nos arts. 185 da Constituição Federal e 6º a 9º da Lei nº 8.629/93, e, por isto, há de se sujeitar às conseqüências determinadas no ordenamento (desapropriação mediante pagamento em títulos da dívida agrária).
O laudo agronômico de fiscalização, portanto, é ato inquisitorial preparatório que resulta na efetiva atualização dos dados cadastrais e (re)classificação fundiária do imóvel rural, a servir de elemento orientado a nortear a Administração Pública ao ajuizamento de ação de desapropriação mediante pagamento prévio e em dinheiro, tratando-se de propriedade produtiva; ou em títulos da dívida agrária, se identificada a improdutividade.
Inexistência de correlação entre o procedimento administrativo INCRA e o decreto presidencial.
De plano se verifica que o decreto que declara a área de interesse social para fins de reforma agrária não é ato que integra o procedimento administrativo INCRA, pois este, como dito, culmina na atualização dos dados cadastrais e na classificação fundiária do imóvel rural. Nesse sentido trilhou o próprio STF, quando do julgamento do MS nº 20.741.
O decreto, portanto, cuja natureza de ato complexo opera apenas na relação Presidente da República/Ministro de Estado (já que subscrito por ambos), é ato autônomo em relação ao procedimento INCRA, que apenas declara o interesse social sobre o imóvel (MS 24.163: “...apenas formaliza a declaração de interesse social, ...”), ontologicamente desconectado do resultado do procedimento administrativo de levantamento de dados e classificação fundiária, e exterioriza a pretensão da Administração Pública em trazer o bem de raiz para a órbita e categoria de imóvel vocacionado à reforma agrária. Assim se afirma a partir da verificação de que o interesse social pode preexistir à constatação de ser o imóvel descumpridor da função social, ou subsistir mesmo diante dos impedimentos à desapropriação-sanção, no primeiro caso à declaração de interesse social somando-se a tangibilidade do mesmo pela desapropriação, no segundo caso, inviabilizando-se a desapropriação-sanção, não, contudo, a aquisição ou desapropriação a outro fundamento.
Tanto é assim, que o decreto poderá, inclusive, preceder ao procedimento administrativo INCRA de verificação de produtividade e classificação do imóvel rural, mediante simples juízo de conveniência e oportunidade em declará-lo de interesse social, porquanto nem a simples decretação implica em inexorabilidade da desapropriação e nem a legislação específica reguladora da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária determina o momento específico para a expedição do decreto declaratório (pois não poderia a lei substituir-se ao juízo de conveniência e oportunidade do administrador); não vedando assim sua antecipação ao procedimento INCRA e inclusive permitindo-a, pois apenas impõe deva o mesmo preceder ao ajuizamento da ação de desapropriação, em consonância com o artigo 184, § 2º da Constituição Federal.
O decreto, portanto, poderá – a lastro de juízo de conveniência e oportunidade - ser expedido antes ou após a finalização do procedimento administrativo INCRA, conquanto obrigatoriamente antes do ajuizamento da ação de desapropriação.
É de se reafirmar, portanto, que essa faculdade discricionária da Administração expedir o decreto antecedentemente ao procedimento administrativo INCRA é plenamente autorizada pela ordem posta.
Inicialmente porque, nos termos do artigo 5º da Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, à míngua de regramento específico, está autorizada a aplicação subsidiária das normas legais que regulam a desapropriação por utilidade pública aos casos de desapropriação por interesse social.
Pois bem. No regime jurídico da desapropriação por utilidade pública, o direito da Administração ingressar no imóvel sobrevém ao decreto presidencial declaratório, conforme disposto no art. 7º do Decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941.
A mesma conclusão advém da leitura dos dispositivos específicos condizentes com a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, haja vista que, nos moldes do § 2º do art. 2º da Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, com redação trazida pelo art. 4º da Medida Provisória nº 2.183-56, de 24 de agosto de 2001, a União, através do órgão federal competente, mediante prévia notificação, poderá ingressar no imóvel de propriedade particular para levantamento de dados e informações.
Por seu turno, o art. 2º, § 2º da Lei Complementar nº 76, de 6 de julho de 1993, legitima expressamente o órgão agrário federal a promover a vistoria e avaliação do imóvel logo em seguida à declaração por interesse social1.
Fica, pois, plenamente perceptível que esse dispositivo da LC nº 76/93, sobrepondo-se em cronologia, hierarquia e especificidade aos demais, e sem lhes ser contrario, admite tanto a concentração da vistoria (rectius: aferição da produtividade) e da avaliação do imóvel em um único procedimento, quanto a realização desses atos em duas etapas, em qualquer das hipóteses autorizando sua realização em seguida ao decreto, e não necessariamente como ato preparatório deste. Conclusão, aliás, firmada pelo STF no MS nº 23.744.
Há de se admitir, por isso, que no plano lógico e ontológico a declaração de interesse social precede e independe da aferição do cumprimento da função social da propriedade, sendo esta apenas uma condição de procedibilidade da ação de desapropriação-sanção, e não pressuposto da validade daquele, tanto que - a teor do Decreto nº 433/1992 - o imóvel produtivo pode ser adquirido por compra, se, persistindo o interesse social, vier a eclodir impeditivo constitucional da desapropriação- sanção.
Nesta linha de argumentação, conclui-se que, segundo juízos de conveniência e oportunidade próprios, a solicitação de edição de decreto presidencial declaratório de interesse social para fins de reforma agrária poderá preceder ou suceder ao procedimento administrativo de vistoria de apuração do cumprimento da função social, de forma a revelar a inexistência de correlação entre esses atos.
Aliás, como ato de império que é, a expedição do decreto somente está a depender do juízo de conveniência e oportunidade da Administração, com vistas à necessidade ou utilidade pública, ou, como no caso, ao interesse social.
Portanto, de acordo com o artigo 184, § 2º da Constituição Federal, a Lei Complementar nº 76, de 6 de julho de 1993, apenas assentou determinação no sentido de que a desapropriação será precedida de procedimento administrativo e de decreto declarando o imóvel de interesse social, mas não a de que o decreto seria necessariamente precedido do procedimento administrativo, e nem de que o procedimento administrativo deva obrigatoriamente configurar um processo, já que processo a LC 76/93 garante e materializa na ação judicial (cuja natureza é de ampla cognição, ex vi dos MS-STF nº 22.688, 23.135 e 24.272), podendo, pois, o decreto anteceder ao procedimento, desde que aquele não seja suprimido.
Decerto por isso, em seu artigo 9º, observe-se, consignou a LC 76/932 a natureza discricionária da declaração de interesse social, obstando a apreciação desse juízo de conveniência e oportunidade ao Poder Judiciário, permitindo, entretanto, cognição plena no que tange às matérias de natureza vinculada e, em especial, às questões correspondentes ao laudo de vistoria administrativa em todos os seus aspectos, e seu resultado, inserindo-se nesse espectro a produtividade do imóvel.
A Administração, portanto, pode lançar mão do decreto declaratório independentemente de quaisquer ocorrências externas, tal como as que podem ocorrer no procedimento de aferição de produtividade, no laudo agronômico de fiscalização, na classificação e cadastro fundiário do imóvel, pois, como se observou, a legislação confiou ao ente administrativo a escolha e valoração subjetiva dos motivos (interesse social) e do objeto sobre o qual incidirá o ato.
Pois bem, é perceptível, assim, que – ex vi legis - o decreto que declara o imóvel de interesse social não se consubstancia necessariamente em “fase conclusiva” ou “ato final” do procedimento administrativo de verificação do cumprimento da função social da propriedade, classificação e cadastro fundiário do imóvel rural. Trata-se, portanto, de ato administrativo simples, cuja vontade unitária é voltada para afetação do imóvel à realização do interesse social, que poderá resultar na desapropriação mediante pagamento prévio e em dinheiro (art. 5º, inciso XXIV da CF), ou com títulos da dívida agrária (art. 184 da CF), conforme o caso, ou ainda, na compra do imóvel, se conveniente e oportuno à Administração (Decreto nº 433/92), ou mesmo via recepção em dação em pagamento, permuta, atendidas as exigências da Lei nº 9.636/98 etc.
Isto evidencia que, não guardando necessária relação com o procedimento administrativo, o decreto subsiste seja qual for o resultado da vistoria, as conclusões do laudo agronômico, a classificação e cadastro do imóvel rural, pois, insista-se, mesmo caracterizada a produtividade, o imóvel poderá ser objeto de desapropriação mediante pagamento prévio e em dinheiro (art. 5º, inciso XXIV, da CF), ou objeto de compra e venda na forma do Decreto nº 433/92, hipóteses evidentemente só toleradas sob o pálio da independência do interesse social face à intangibilidade do imóvel a atos de império.
Sob a mesma óptica, não há que se falar em contaminação do decreto declaratório em função de eventuais irregularidades provenientes do procedimento administrativo, ficando a impugnação do decreto junto ao Supremo Tribunal Federal, ressalte-se, circunscrita unicamente em seus elementos constitutivos, isto é, aos elementos exclusivamente ínsitos ao próprio formalismo e limites materiais do decreto em si, v.g., ausência de assinatura, assinatura por autoridade diversa, incidência sobre imóvel situado no território nacional, incidência sobre imóvel imune, etc.
Natureza do decreto presidencial: ato declaratório (não constitutivo) simples, de natureza autônoma (não complexo), a expressar a conveniência administrativa de afetar o imóvel rural à função de interesse social, independentemente das conclusões do procedimento administrativo de classificação fundiária.
Esse panorama jurídico traçado revela, enfim, a natureza simplesmente declaratória (não constitutiva) e autônoma do decreto, que a par de outros elementos, autoriza - implícita ou explicitamente - o ajuizamento da ação de desapropriação, mas não necessariamente a desapropriação-sanção em todos os casos, e nem apenas a obtenção a esse título, e de modo algum a dispensa do devido procedimento legal de aferição da condição de cumprimento da função social da propriedade. Não se trata, ressalte-se, de ato complexo, pois sua edição ou sua idoneidade para produção dos seus efeitos declaratórios independe de qualquer ato, juízo ou conteúdo do procedimento administrativo para aferição de produtividade.
Ora, em sentido distinto, o ato administrativo complexo se aperfeiçoa pela fusão ou integração de vontades de órgãos diversos, de que decorre manifestação de um só conteúdo e finalidade 3.
Se desejasse a lei conectar o decreto ao procedimento de aferição de produtividade, decerto que não exigiria o laudo de vistoria como adendo autônomo da petição inicial da desapropriação, na medida em que exigi-los em separado, longe de negar-lhes autonomia, autonomia lhes confere, pois, caso contrário, deixaria de exigir o laudo, sob pressuposto de que a exigência do decreto geraria presunção de que este traria em si incorporado o juízo valorativo derivado daquele.
Exsurgem, então, duas feições ao decreto: i) sob o ponto de vista material, meramente os efeitos de declaração manifestando a vontade da Administração de afetar o imóvel rural à função de interesse social, independentemente das conclusões do procedimento administrativo de classificação fundiária, e ii) sob ponto de vista formal, ato simples, expedido pela vontade autônoma da autoridade competente, que constitui-se em condição de procedibilidade para o processo judicial, sede em que efetivamente a declaração adquiriria materialidade. Nenhuma de suas facetas, portanto, guarda ligação com o laudo de vistoria, fase do procedimento administrativo de aferição do cumprimento da função social da propriedade e classificação do imóvel rural.
Esta exposição está a demonstrar que a expedição do decreto consubstancia ato declaratório (não constitutivo) simples, de natureza autônoma (não complexo), tanto que, como dito, pode ser editado antes, no curso, ou após o procedimento administrativo de aferição de produtividade do imóvel rural, de forma que, com ele não guarda qualquer liame.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem se firmando no sentido de que inexiste correlação entre os atos administrativos do INCRA e o decreto presidencial, acentuando que a ocorrência de impugnação (judicial, no caso) incidente sobre atos do procedimento administrativo não impede que o Presidente da República exerça sua competência constitucional de expedir o decreto declaratório (MS 20.741-DF- MS 23.312 / PR).
Mais recentemente, nos autos do MS nº 25.534, o Ministro Eros Grau deliberou em caráter liminar que a edição do decreto não estava a representar qualquer risco à garantia constitucional da propriedade. Ressaltou nesse passo a impossibilidade de contaminação do decreto em razão de irregularidades do laudo agronômico, bem como a natureza meramente declaratória e autônoma do decreto presidencial, sem potencialidade para promover por si só a perda da propriedade.
Daí concluirmos no sentido de que, ainda que de forma estreita e tímida, o Supremo Tribunal Federal vem evoluindo para reconhecer a natureza autônoma, declaratória e discricionária do decreto presidencial.
[1] In verbis: “Artigo 2º - (...) § 2º - Declarado o interesse social, para fins de reforma agrária, fica o expropriante legitimado a promover a vistoria e a avaliação do imóvel, inclusive com o auxílio de força policial, mediante prévia autorização do juiz, responsabilizando-se por eventuais perdas e danos que seus agentes vierem a causar, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.”
[2] In verbis: “Art. 9º A contestação deve ser oferecida no prazo de quinze dias se versar matéria de interesse da defesa, excluída a apreciação quanto ao interesse social declarado. § 1º Recebida a contestação, o juiz, se for o caso, determinará a realização de prova pericial, adstrita a pontos impugnados do laudo de vistoria administrativa, a que se refere o art. 5º, inciso IV e, simultaneamente:
[3] MIRANDA, Sandra Julien. Do ato administrativo complexo. Ed. Malheiros, 1998, pág. 48