Tempo morto no processo judicial brasileiro

Tempo morto no processo judicial brasileiro

Discute a questão do tempo no processo judicial, em especial o conceito de tempo morto. Apresenta as inovações trazidas pela Lei 11.419 de 2006, de modernização e informatização do processo.

Introdução

A Emenda 45 da Constituição Federal de 1988 introduziu no artigo 5, o direito de razoável duração do processo e de meios que garantam a celeridade da sua tramitação. Esse dispositivo surgiu como forma de assegurar os direitos através do judiciário e da administração, não só de forma justa, mas de forma rápida. Isso porque uma decisão justa, mas demorada pode não ter os efeitos pretendidos por aqueles que demandam seus direitos.

A demora das ações no judiciário e no âmbito administrativo é fato notório e reconhecido por seus membros. A demanda de ações é muito grande em um país de tamanho continental, e a burocracia estatal enfrenta grandes dificuldades para processar uma quantidade grande de ações em tempo que seja razoável.

O inciso LXXVIII do artigo 5 assegura que o processo tenha uma duração razoável, o que não quer dizer que seja necessário todos os atos para que se cumpra o devido processo legal. O processo não pode ser atropelado para que somente seja rápido, pois deve ser ao mesmo tempo eficaz na solução da prestação da tutela jurisdicional.

Os meios utilizados para assegurar a celeridade do processo é que se encontra em evidente transformação. A lei 11419 assegura outra forma para os processos judiciários, introduzindo o meio eletrônico como forma de processamento dos autos do processo. Reduz-se com isso o tempo morto no processo judiciário, assegurando maior agilidade nos atos processuais e uma conseqüente diminuição do tempo geral de tramitação dos processos judiciais.

Este trabalho tem como objetivo apresentar uma discussão inicial a respeito do tempo morto no processo e a tentativa de redução desse tempo, propiciada pela lei 11419/06, que introduziu a informatização do processo judicial. Entende-se que a uma busca por outra forma de gerir o processo judicial que visa ser mais célere, sem que isso afete os procedimentos legais já garantidos no direito processual. A mudança proporcionada pela nova legislação vem a introduzir outro tipo de relação com o tempo, que não é mais medida pelos atos humanos, mas sim pelos computadores e inovações tecnológicas.


1. Burocracia Estatal e racionalização do tempo

O Estado moderno se formou junto com uma burocracia estatal, que visava dar apoio às funções desse Estado, através de um corpo de funcionários e empregados, para cuidar de assuntos dos poderes legislativo, administrativo e judiciário. Max Weber se refere a esse domínio presente no Estado moderno, como domínio legal-burocrático1.

Nessa espécie há um corpo de funcionários estatais, que seguem normas legais visando a manutenção do sistema. Há necessidade de uma crescente normatização dos atos desses funcionários, para que haja uma uniformidade no sistema estatal, crescendo com isso a quantidade de normas legais que regem esses atos até os mínimos detalhes. Através desse mecanismo de normatização dos atos, é possível que haja um aumento na burocracia e que essa, passe a exercer tarefas cada vez mais complexas.

Para a formação dessa burocracia também é necessário uma racionalização legal, que irá se estender a diversos setores da sociedade a medida em que o capitalismo se torna mais complexo. Na análise de Marcuse a racionalização se torna componente central da sociedade, pois é através da técnica e da ciência que a sociedade passa a se estruturar. Técnica e ciência passam a ser formas de dominação política oculta. Essa racionalidade torna-se então natural e não se enxerga a dominação. Assim a dominação não ocorre pela tecnologia, mas como tecnologia, e com isso é aparentemente visto como um fenômeno neutro e não político2.

O agigantamento da máquina estatal foi retratado pela sociologia do direito, mas também pela literatura através das obras de Kafka ‘O processo’, ‘Colônia Penal’, e no conto ‘Diante da Lei’. No livro ‘O processo’ há uma burocracia presente, um processo, um sujeito do processo, mas não há uma acusação formal ou um procedimento previamente sabido para o procedimento. Não há um tempo definido para o processo, nem ao menos uma formulação da acusação, gerando a grande angústia do romance.

A questão do tempo é fundamental, pois é ele que dita a narrativa de espera do sujeito do romance pelo seu direito. Assim inicia o conto citado: “Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. -"É possível" - diz o guarda. -"Mas não agora!".

O transcorrer do tempo e a espera de uma solução judicial só se justifica na esperança de um procedimento que tem seu fim breve, para a realização de um direito. Kafka leva a questão do tempo no processo judicial ao limite, quando apresenta um caso em que só há esperança, mas não se consegue atingir o direito.

Há uma racionalização do tempo do processo judiciário, na mesma medida que o tempo se racionaliza em outros sistemas sociais. O tempo tem de ser controlado, através de procedimentos previamente descritos na legislação e em normas administrativas, para que o próprio andamento do processo seja controlado pela máquina estatal judiciária. Com isso se tem o ganho de um mesmo procedimento para todos, cumprindo-se assim regras que asseguram que não haverá privilégio temporal na decisão judicial, privilegiando-se o sujeito de direito como jurisdicionado e não na sua qualidade de pessoa (que poderia levar em consideração seu status social, profissão, grau econômico, etc..).

A racionalização do tempo esconde em um fenômeno natural, uma lógica do capitalismo que é eminentemente política. Há uma escolha do modo como o tempo é tratado em nossa sociedade, pois essa medição é humana e não natural. Se o tempo hoje nos foge é porque se calcula diversas atividades para um tempo que se divide muito. O tempo não pode ser ‘desperdiçado’. Essa é uma expressão que só tem sentido na sociedade capitalista complexa em que atividades não produtivas, são consideradas como tempo morto. Se o foco está na produção, o tempo dedicado ao lazer e atividades diretamente não produtivas, passam a ser um tempo de segunda categoria, que só pode ser fruído por aqueles que já cumpriram ou não precisam cumprir o tempo produtivo.

O tempo no processo necessita ser utilizado nos seus minutos e segundos através de uma máquina estatal mais complexa e rápida, pois as lides de um mundo pós-moderno atuam também nessa rapidez. Por trás do conceito de tempo está uma forma de entender e gerir o mundo, com grande foco nas questões econômicas.


2. Tempo do processo e a questão dos prazos

A legislação que regra o processo civil brasileiro tem diversas normas de como regrar o tempo no processo, através de diferentes prazos e contagens. Os prazos se diferenciam: a) pelo tempo (dependendo de cada instrumento processual), b) pelo sujeito do prazo, c) pela forma de contagem do prazo, d) pela sua forma (estipulados em lei ou não, prazos próprios e prazos impróprios), e) pelo rito do processo, etc..

Porém não há na legislação nenhuma menção ao tempo do processo que não estão inseridos nesses prazos. Assim o processo dependendo da sua complexidade e de seus atos, deveria durar um prazo relativamente curto, dado que a somatória dos prazos dos atos no mais longo dos processos não deveria ultrapassar cerca de 90 dias. Sabe-se que na prática o tempo de duração dos processos em alguns casos excede em muito esse tempo.

Há alguns processos que devido à complexidade (seja pelo número de partes, pela quantidade das provas ou dificuldades de produzi-las, pelo rito do processo, etc..) são mais demorados. Porém os processos complexos deveriam ser exceção frente ao grande número de processos que deveria ser ágil, devido à alta demanda do judiciário. Há processos relativamente simples que não conseguem seguir o tempo dos prazos. Muitas vezes isso não decorre de problemas com o processo em si, mas sim com a máquina estatal que controla o procedimento dos processos.

O tempo do processo que é gasto com questões burocráticas não é computado em prazos, pela legislação que cuida do processo civil. Assim os prazos do cartório, do juiz e de outros membros da burocracia estatal são estimados, mas não há sanção direta pelo não cumprimento desses prazos. Há sanções imputadas pela administração pública caso o funcionário não haja de acordo com os princípios constitucionais, mas isso para casos que fogem a regra da demora já habitual.

Para alguns juristas a demora no processo decorre da alta complexidade da burocracia judiciária brasileira. Essa instituiu prazos e regras que tornam o processo mais complexo e demorado. A modificação legislativa da forma de se registrar o processo, em “autos virtuais”, poderia levar a uma diminuição no tempo em que o processo judiciário se desenrola, uma vez que ocorreria uma redução no tempo morto.


3. Tempo Morto no processo judiciário

Tempo morto é definido geralmente nas ciências físicas como aquele tempo em que o sistema de aquisição não consegue adquirir dados, por estar processando um evento detectado a transmitir informação. É também definido como um tempo em que o sistema apesar de estar utilizando-se de um tempo cronológico, não produz significativas alterações no procedimento de ações. Para o âmbito dos jogos, o tempo morto é tido como uma pausa no jogo, que entra como tempo de jogo, porém sem que tenha atividades que possam ser consideradas como jogo.

Em linhas gerais pode-se dizer que o tempo morto no processo judiciário é o tempo em que o processo judiciário está em andamento, sem estar correndo o prazo dos atos processuais. O tempo morto é aquele em que não há efetivamente atos processuais que levem ao fim do processo, garantindo a paz social com a resolução dos conflitos. No período que denominamos tempo morto o processo judiciário está na mão da burocracia estatal judiciária, para que esse volte novamente a ser movimentado pelas partes ou terceiros.

É esse tempo que não é computado nos prazos processuais, porém que afetam consideravelmente a duração do processo como um todo. Não há como medir o quantum de tempo é necessário para que um processo judiciário termine, no momento em que se faz um pedido de tutela jurisdicional. Presume-se pelo rito da ação ou da complexidade da demanda que o processo irá durar certo período de tempo, porém não há como se estipular objetivamente quando um processo judicial tem seu término.

Uma duração temporal longa torna-se inviável em um mundo em que a grande parte das relações se dá de forma instantânea, muitas vezes feita à distância, com alto grau de complexidade e por meios tecnológicos sofisticados. As relações econômicas incorporaram as inovações tecnológicas, trazendo para esse âmbito uma nova medida de tempo. O mundo do trabalho não é mais pautado somente pelo tempo da máquina, nem somente pelo tempo do relógio, mas sim pelo tempo instantâneo que muitas vezes foge a capacidade de percepção humana, alijando do processo o próprio homem.

A sociedade vem apresentando outra percepção do tempo que se reflete, nos mais diferentes campos e surge a exigência de transformação daquelas áreas, instituições ou mesmo pessoas que não assimilaram essa nova concepção. O tempo é construído pelo homem, pois é ele que realiza uma delimitação dos eventos, para que estes possam servir de parâmetros de contagem do tempo. Desse modo por meio das fases da lua, das estações, dos dias em um calendário, das horas no relógio; o homem organiza seu viver e concebe o tempo em diferentes ritmos. Longe de ser natural o tempo é um construto humano e socialmente aprendido.

Quando uma alteração da contagem ou percepção do tempo ocorre, há por baixo dessa uma alteração social e na sua forma de agir frente ao mundo. A sociedade atual apresenta uma complexa forma de contagem de tempo, que não pode ser percebida pelo homem a não ser por instrumentos de contagem complexos. Os instrumentos de contagem apresentam uma representação do tempo instantânea, mas não são o tempo.


4. Processo informatizado3 e o novo conceito de tempo

A legislação brasileira de informatização do processo é uma das mais avançadas, em termos de implementação da tecnologia na área do judiciário. Em especial a Lei 11.419 estabelece um procedimento totalmente informatizado dos processos, a ser instalado em todo o território nacional e válido para todas as áreas do direito (processo civil, penal, trabalhista) em todos seus ritos e instâncias. O artigo 1 da lei citada diz que será admitido o uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais.

Os objetivos da implementação do processo judiciário, parecem ser: a) agilização do procedimento do processo judiciário, b) diminuição direta da burocracia e dos atos burocráticos judiciais, c) diminuição dos insumos com papel e estocagem de processos, d) contato mais direto entre o juiz e as partes.

Há muitas novidades na lei 11419 que precisam ser discutidas, como: segurança dos atos processuais via net, assinatura eletrônica/digital, diário de justiça on line, intimações on line e auto-intimação; cartas rogatórias, precatórias e de ordem via eletrônica; cadastro único,etc.. Grande parte dos atos processuais que estavam previstos no ordenamento jurídico processual, será modificado para o meio eletrônico tornando-se assim mais rápido.

Para se introduzir outro meio material de se formular os atos processuais é necessário toda uma mudança na forma de se sistematizar o judiciário brasileiro. Alteração que não é somente uma mudança do meio papel, para o meio digital. A alteração é também psicológica e temporal.

Psicológica, pois requer toda uma alteração da mentalidade do funcionalismo público, do juiz, do advogado e de todo os operadores do direito. O processo passa a não ter outra forma que de início parece impalpável, os atos processuais serão em tese mais rápidos uma vez que elimina-se os intermediários, passa a requer do operador do direito conhecimentos técnicos na área da informática e o conhecimento de outros ritos para pratica de atos processuais. Os autos do processo serão vistos e conhecidos por meios digitais, exigindo do operador do direito não só um conhecimento tecnológico, mas sim um novo aprendizado do conceito de tempo e de se lidar com ele.

Temporal, pois o processo adquire outro ritmo que não é mais regulado por atos humanos, mas sim por rotinas de computador. O tempo se acelera e se estabelece na contagem da tecnologia, que escapa à escala humana. O homem não consegue gerir mais os processos no tempo da burocracia feita por pessoas, pois essa não dá conta de um mundo pós-moderno em que o tempo se encontra acelerado.

A alteração da formatação dos processos judiciários é uma necessidade da mudança na alteração do modo de gerir da própria burocracia estatal e da necessidade de adequação com outros setores da sociedade. A busca de tempo acelerado no processo judiciário é reflexo da existência desse tipo de conceito de tempo na esfera do trabalho e mesmo na esfera privada.

O gerenciamento do tempo torna-se questão fundamental em todas as esferas da sociedade. As pessoas começam a buscar fazer mais coisas em menos tempo, não só no trabalho, mas em suas casas. Mais eficiência nas tarefas em um menor tempo, parece ser o grande lema da vida moderna. Esse lema irá ser complementado nos últimos anos pela necessidade desse tempo restante, possa de algum modo propiciar uma melhora na vida da pessoa.

Os operadores do direito, jurisdicionados e funcionários públicos, também buscam essa maior eficiência nas tarefas, para que um menor tempo seja gasto nos processos. Menor tempo significa muitas vezes em uma menor quantidade de dinheiro gasta no processo. Pode significar também uma resolução de um conflito mais rápida, que gera no jurisdicionado e na população um sentimento de justiça. A ‘justiça foi feita’, pois ocorreu mediação estatal em prazo razoável e colocou fim no conflito.


BIBLIOGRAFIA

ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1998.

GORZ, André. Metamorfoses do Trabalho. São Paulo: Anablume, 2003.

HARVEY, David. Condição Pós-moderna. Ed. Loyola: São Paulo, 2004.

MARCUSE, Herbert. Do pensamento negativo ao positivo: racionalidade tecnológica e a lógica da dominação. In: A ideologia da Sociedade industrial. Rio de Janeiro : Zahar, 1967.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. UNB, Brasília, 2003

PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Modernidade, Tempo e Direito. Del Rey, 2002.


[1] WEBER, Max. Economia e Sociedade. P, 139/147


[2] MARCUSE, Herbert. Do pensamento negativo ao positivo: racionalidade tecnológica e a lógica da dominação. In: A ideologia da Sociedade industrial. P, 142/162.


[3] Há diversas denominações para o processo judicial informatizado, entre as mais correntes estão: e-processo, processo digital, processo eletrônico, processo virtual, processo cibernético, processo telemático ou teleinformático.

Sobre o(a) autor(a)
Gisele Mascarelli Salgado
Pós-doutoranda em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP, Doutora e Mestre em Filosofia do Direito na PUC-SP, Especialista em Direito do Trabalho pela Faculdade Candido Mendes, Especialista em Direito Civil pela...
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