O ISS em relação aos serviços cartorários, notariais e de registros públicos

O ISS em relação aos serviços cartorários, notariais e de registros públicos

Analisa a impossibilidade de tributação, por meio do ISSQN, dos serviços cartorários. Conclui pela inconstitucionalidade dos itens 21 e 21.1 da lista anexa da LC nº 116/2003.

1. Introdução

Recentemente, em acórdão publicado no dia 17 de outubro de 2005, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, entendeu, nos termos do voto do Relator Ministro Francisco Falcão, que os serviços cartorários, notariais e de registro público não sofrem a incidência do Imposto sobre Serviços (Resp 612.780/RO, DJ 17.10.2005, p. 180).

A questão vem sendo discutida desde o advento da Lei Complementar n.º 116, de 31 de julho de 2003, que previu expressamente, nos itens 21 e 21.1 da lista de serviços anexa, a incidência do ISS sobre os aludidos serviços. Em Ação Direta de Inconstitucionalidade (n.º 3.089, Ministro Relator Carlos Ayres de Britto), a ANOREG (Associação dos Notários e Registradores do Brasil) pretende a inconstitucionalidade desses dispositivos, já possuindo, a seu favor, o parecer do Ministério Público Federal.

Pretendemos, com o presente estudo, analisar a constitucionalidade de tais dispositivos da Lei Complementar n.º 116/2003, passando por questionamentos a respeito da natureza jurídica do serviço cartorário dos emolumentos cobrados pela prestação de tais serviços.


2. Imposto sobre Serviços (ISSQN)

Na partilha de competências tributárias da Constituição Federal, coube aos Municípios e ao Distrito Federal a instituição do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN ou ISS). O ISS vem disciplinado na Constituição Federal, em seu art. 156, nos seguintes termos:

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

(...)

III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.”

Da leitura deste dispositivo constitucional depreende-se que os serviços previstos no art. 155, II, da Constituição Federal, quais sejam, a prestação de serviço de transporte intermunicipal e interestadual e serviço de telecomunicações, não podem ser tributados pelo ISS, eis que são fatos geradores do ICMS.

Do magistério de Aires F. Barreto [1], colhemos algumas premissas do ISS, de fundamental importância para o presente estudo:

...já se pode conceituar serviço tributável pelo Município como sendo “o desempenho de atividade economicamente apreciável, sem subordinação, produtiva de utilidade para outrem, sob regime de direito privado, com fito de remuneração, não compreendido na competência de outra esfera de governo.

Decompondo as cláusulas desse conceito, tem-se:

a) desempenho de atividade: trata-se de um comportamento humano; do desenvolvimento de um esforço pessoal traduzido num ato ou conjunto de atos;

b) economicamente apreciável: de alguma forma, a atividade configuradora do serviço tributável há de ser apreciável economicamente. Deve ter um conteúdo ou significação econômica. Se se tratar de uma atividade sem valor, sem nenhum conteúdo econômico, sem nenhuma expressão mensurável, embora corresponda ao conceito de serviço, não será serviço tributável;

c) produtiva de utilidade: o resultado ou objeto da atividade é útil e, por isso, desejável, querido pelo destinatário. O comportamento do prestador tende a suprir ou preencher uma carência, deficiência, lacuna ou falta sentida pelo destinatário. O comportamento vem produzir a utilidade carente. Tal utilidade pode ser material ou não. A circunstância do resultado do comportamento ser material ou imaterial é irrelevante. O que importa é ter sido obtido como fruto do esforço humano de alguém;

d) para outrem: o tomador do serviço é sujeito essencial à figura da prestação de serviços. Não se pode cogitar de prestação de serviços sem que haja destinatário. Sempre que houver “prestação”, alguém “prestará” a outro. Um sujeito será prestador e outro será tomador ou destinatário. Para que se cogite de prestação de serviço, é forçoso que alguém seja o produtor e outrem, o consumidor;

e) sem subordinação: quando houver subordinação do prestador ao tomador do serviço, configura-se relação de emprego, contrato de trabalho (ou relação institucional de serviço público). Essa situação está excluída do conceito de serviço tributável, embora se integre no conceito amplo e genérico de serviço. A prestação do serviço tributável é só aquela objeto de contrato não trabalhista ou estatutário. Só quando o desempenho do prestador se faz em caráter autônomo, há prestação de serviço tributável;

f) sob regime de direito privado: é evidente que, se a prestação de um serviço se der sob regime de direito público, o próprio serviço passa a se qualificar como público, incidindo, sobre ele pois, o regime da imunidade a impostos. Há de prevalecer o princípio da autonomia de vontade, com a conseqüente autonomia contratual: isto exclui da definição toda prestação de serviço público. Deveras, o serviço há de ser objeto de um contrato a que livremente aderiram prestador e tomador. A isonomia entre ambos, na relação contratual, é essencial à denotação do serviço tributável. O contrato engendra obrigação de fazer, em oposição à obrigação de dar. O prestador do serviço ao assumir obrigação de fazer torna-se devedor, pelo contrato de prestação de serviço, de um determinado comportamento, consistente em praticar um ato ou uma série de atos (atividade), ou realizar uma tarefa da qual pode resultar uma vantagem para o tomador do serviço;

g) com fito de remuneração: o serviço tributável é prestado com o fito de obtenção de contrapartida equilibrada ou vantajosa, direta ou indireta. Seja atual ou futura, a remuneração é o móvel do prestador. É à sua vista que o prestador se dispõe à atividade em que o serviço se consubstancia. Tal remuneração, que pode ser direta ou não, é o correspectivo do cunho econômico do próprio serviço prestado;

h) não compreendido na competência de outra esfera de governo: o campo de incidência do ISS está balizado pela outorga de competência para tributar certos serviços ao Estado e ao Distrito Federal.”

É importante observar que o legislador constitucional determinou que a matéria disciplinada nas legislações municipais instituidoras do ISS deve estar circunscrita ao âmbito definido em lei complementar. Ou seja, a lei complementar prevista no inciso III, do art. 156, da Constituição, serve para delimitar a amplitude da competência tributária municipal, não sendo possível a incidência do ISS em serviços nela não previstos.

Neste raciocínio, a jurisprudência [2] considera a “lista de serviços” prevista na lei complementar com caráter taxativo. Em outras palavras, são os serviços arrolados em lei complementar as hipóteses de incidência do ISS, devendo a lista da legislação municipal ater-se ao rol da legislação nacional. Contudo, a despeito de taxativas tais hipóteses, não necessariamente todos os serviços elencados constituem hipótese de incidência possível do ISS. Não se pode admitir que o ISS recaia sobre situações em que não há o “desempenho de atividade economicamente apreciável, sem subordinação, produtiva de utilidade para outrem, sob o regime de direito privado, com o fito de remuneração, não compreendido na competência de outra esfera de governo”. Vale dizer, é vedado ao legislador complementar contrariar a regra-matriz de incidência do ISS prevista na Constituição, sob pena de inconstitucionalidade.

Conforme aludido, o atual regramento do ISS é previsto pela Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003. Entre outras modificações em relação aos diplomas anteriores, referida lei majorou substancialmente o rol do serviços tributáveis, autorizando os Municípios a instituírem o ISSQN sobre os “serviços de registros públicos, cartorários e notariais” (item 21 da lista anexa).

Diante disso, resta-nos saber se a referida lei complementar poderia ou não ter estabelecido que os Municípios possam tributar por meio de ISSQN as atividades dos cartórios extrajudiciais. Para tanto, é necessário desvendar qual é a natureza dos serviços prestados pelos cartórios, bem como a da remuneração paga pelos serviços cartorários.

3. Serviços Notariais e de Registro – Natureza Jurídica

A atuação dos notários, registradores e cartorários encontra-se prevista no art. 236 da Constituição Federal, nos seguintes termos:

Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

§ 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

§ 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

§ 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.

Com a redação dada a esse dispositivo, muitos doutrinadores passaram a sustentar que os serviços notariais e de registro deixaram sua natureza pública, adquirindo a natureza de direito privado. Contudo, a Constituição Federal não transmudou a natureza dos aludidos serviços, apenas determinou que o exercício dessas atividades se dê em caráter privado. A melhor interpretação, portanto, é a de que os serviços notariais e de registro são atividades do serviço público. [3] Senão vejamos.

J. Cretella Jr. [4] leciona que “os serviços públicos têm esse caráter, não em si e por si, em essência – serviço público material –, mas ‘em razão de quem o fornece’. Se o Estado titulariza certo serviço – ensino, transporte –, a atividade é, formalmente, serviço público. Os serviços notariais e de registros cabem, por sua relevância, ao Estado, mas os Poderes Públicos, por delegação, permitem que sejam exercidos em caráter privado”.

Como é cediço, os serviços públicos podem ser prestados de forma direta, quando o próprio ente estatal se utiliza de seus bens e agentes, ou de forma indireta, quando é conferido, por meio de delegação, concessão ou permissão, a prestação de serviço a outras pessoas, seja de natureza pública ou privada.

No caso dos serviços cartorários, pela redação do art. 236, da Constituição Federal, resta cristalino que o Poder Público somente transfere a execução do serviço aos particulares e não sua titularidade. Trata-se de delegação do serviço público, outorgado ao particular através de concurso público de provas e títulos, sob permanente fiscalização do poder delegante, por meio do Poder Judiciário. [5]

A Lei n.º 8.935/94 (Lei dos Cartórios), que regulamenta o art. 236, da Constituição Federal, bem demonstra o regime específico de direito público dos serviços notariais e de registro delegados. Assim dispõe o seu art. 1.º:

Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”.

Por seu turno, dispõe o art. 3.º do mesmo diploma legal:

Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro”.

Dessa forma, não resta dúvida de que a titularidade desses serviços pertence ao Poder Público, que apenas delega sua execução aos particulares.

Walter Ceneviva [6] nos ensina que “o serventuário do chamado foro extrajudicial é servidor público, sem mais autonomia administrativa que um chefe de repartição, do qual se distingue por não ser remunerado diretamente pelo Estado, mas pelos interessados no registro, segundo critérios que o Estado impõe, delimita, sistematiza e sujeita a fiscalização, disciplina e punição.”

Por seu turno, Maria Helena Diniz [7] doutrina que “o serventuário é um servidor público, que exerce uma função pública sui generis, exercida no interesse da sociedade. De modo que, se o cartório não prestar a contento o serviço, o Poder Público poderá delegá-lo a outrem”.

Nessa senda, já se manifestaram os tribunais superiores, firmando-se no entendimento de que os serviços cartorários são de natureza pública, apresentando, portanto, disciplina própria (de direito público).

O Superior Tribunal de Justiça assim se manifestou:

i) O fato, por si só, de no art. 236, caput, da CF, estar inserida a expressão de que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, não conduz ao entendimento posto no recurso, pois, logo a seguir, está a determinação nuclear de que tais serviços, por continuarem a ser públicos, necessitam de delegação do Poder Público para quem vai exercê-los, pelo que deverão executá-los de acordo como a lei determinar e só poderão receber tal delegação os que forem, pelo próprio Poder Público, julgados aptos pela via do concurso público.

j) A natureza pública dos serviços notariais e de registro não sofreu qualquer desconfiguração com a CF/88. Em razão de tais serviços estarem situados em tal patamar, isto é, como públicos, a eles são aplicados o entendimento de que cabe ao Estado o poder indeclinável e regulamentá-los e controlá-los, exigindo sempre a sua atualização e eficiência de par com o exato cumprimento das condições impostas para sua prestação ao público.” [8]

Por seu turno, o Supremo Tribunal Federal, assim entendeu:

Constitucional. Declaração de constitucionalidade dos arts. Da Lei 9.534/97. Registros Públicos. Nascimento. Óbito. Assento. Certidões. Competência da União para legislar sobre a matéria. Arts. 22, XXV e 236, §2º. Direito intrínseco ao exercício da cidadania. Gratuidade constitucionalmente garantida. Inexistência de óbito a que o Estado preste serviço público a título gratuito. A atividade que desenvolvem os titulares das serventias, mediante delegação, e a relação que estabelecem com o particular são de ordem pública.” [9]

A atividade notarial e registral, ainda que executada no âmbito de serventias extrajudiciais não oficializadas, constitui, em decorrência de sua própria natureza, função revestida de estatalidade, sujeitando-se, por isso mesmo a um regime estrito de direito público.

A possibilidade constitucional de a execução dos serviços notariais e de registro ser efetivada ‘em caráter privado, por delegação do poder público’ (CF, art. 236), não descaracteriza a natureza essencialmente estatal dessas atividades de índole administrativa.

As serventias extrajudiciais, instituídas pelo Pode Público para o desempenho de funções técnico-administrativas destinadas a ‘garantir a publicidade, a autenticidade, a segurança, e eficácia dos atos jurídicos’ (Lei 8.935/94, art. 1º), constituem órgãos públicos titularizados por agentes que se qualificam, na perspectiva das relações que mantêm com o Estado, como típicos servidores públicos. Doutrina e Jurisprudência.” [10]

Assim, com lastro no entendimento doutrinário e jurisprudencial, pode-se afirmar que os serviços notariais e registrais caracterizam-se como serviços públicos, delegados pelo Estado-Membro.


4. Natureza da remuneração – taxa

Questão relevante ao estudo proposto é a natureza jurídica dos emolumentos cobrados em contraprestação ao serviço público [11] notarial e de registro: se se tratam de taxa ou preço público (tarifa).

A taxa é um tributo, objeto de uma obrigação ex lege, e, portanto, compulsória (imposta pela lei). Por sua vez, o preço, por ser contratual, depende da adesão do indivíduo. De plano, percebe-se que a remuneração pelo serviço cartorário trata-se de taxa, uma vez que o administrado não pode se valer de outros serviços para alcançar a mesma finalidade. Em outras palavras, a remuneração (taxa) é imposta pela lei a todos aqueles indivíduos que se encontrem na situação de usuários (efetivos ou potenciais) do serviço estatal. Verifica-se, assim, que o serviço notarial é um serviço essencial, de modo que a recusa da fruição desse serviço enseja o não reconhecimento jurídico de inúmeros atos praticados. Por se tratar de serviço específico e divisível, essencial e compulsório [12] , destinado a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos é cobrado mediante taxa e não tarifa.

Nessa esteira é o entendimento dos tribunais:

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que as custas judiciais e os emolumentos concernentes aos serviços notariais e registrais possuem natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias de serviços públicos, sujeitando-se, em conseqüência, quer no que concerne à sua instituição ou majoração, que no que se refere à sua exigibilidade, ao regime jurídico-constitucional pertinente a essa especial modalidade de tributo vinculado, notadamente aos princípios fundamentais que proclamam, dentre outras, as garantias essenciais (a) da reserva de competência impositiva, (b) da legalidade, (c) da isonomia, (d) da anterioridade. Precedentes. Doutrina.” [13]

Destarte, constata-se que tais emolumentos têm clara natureza de taxa, devendo obedecer os preceitos constitucionais da anterioridade, da legalidade, da isonomia e da reserva de competência impositiva. Ademais, vinculam-se à prestação de serviço estatal assistido aos contribuintes, dotado de especificidade e divisibilidade.


5. Impossibilidade de tributação dos serviços cartorários, notariais e de registro por meio de ISSQN

Demonstrado que os serviços notariais e de registro são serviços públicos e, por conseguinte, remunerados por taxa, é forçoso concluir que tal tipo de serviço não pode ser tributado pelo ISS.

Isso porque referido imposto só pode incidir sobre fatos decorrentes de contratos de cunho eminentemente privado. O serviço sobre o qual ele pode recair é, exclusivamente, o regido pelo direito privado, caracterizado pela igualdade entre os contratantes. Nesse sentido, assevera Aires F. Barreto [14] que “a previsão do art. 156, III, da Constituição Federal esgota-se nas prestações de serviço consumadas no âmbito e sob regime privado. Não colhe a prestação de serviço público. (...) Será, pois, logicamente aberrante (e inconstitucional) a previsão de imposto recaindo sobre o patrimônio, as rendas e serviços das pessoas públicas – por isso, inclusive, referidos pela regra imunitória do art. 150, VI, a, da Constituição Federal”.

Com efeito, os Municípios não podem pretender a tributação dos serviços cartorários, que desenvolvem atividades públicas delegadas pelos Estados-Membros, eis que, assim agindo, estariam ofendendo o Princípio da Imunidade Recíproca, previsto no art. 150, VI, a, da Constituição Federal, nos seguintes termos:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

VI – instituir impostos sobre:

a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;

(...).”

A regra da Imunidade Recíproca, decorrente do Princípio Federativo, é limitação constitucional, imposta à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal, de tributar o patrimônio, a renda, ou os serviços uns dos outros.

Nesse raciocínio, assevera Roque Antônio Carraza [15] que a imunidade recíproca “decorre do princípio federativo porque, se uma pessoa política pudesse exigir impostos de outra, ela fatalmente acabaria por interferir em sua autonomia. Ora, isto a Constituição absolutamente não tolera, tanto que se fez inscrever, nas cláusulas pétreas, que não será sequer objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir a ‘forma federativa de Estado (art. 60, § 4.º, I)’”.

Não há que se falar em aplicação da exceção à imunidade recíproca, prevista no § 3.º, do art. 150, da Constituição Federal [16], uma vez que, conforme visto, tratam-se de serviços públicos remunerados por taxa e não por tarifa (preço público). É equivocada, portanto, a interpretação de que os serviços cartorários não gozariam da imunidade por serem remunerados por tarifa. Conforme visto, jamais poderia configurar preço público os emolumentos pagos aos cartórios em razão da essencialidade dos serviços prestados.

Não bastasse a agressão ao princípio da imunidade recíproca, com instituição de um imposto sobre um serviço eminentemente público, há ainda a impossibilidade jurídico-positiva de uma taxa e um imposto possuírem a mesma base de cálculo. É o que dispõe o art. 145, §2.º, da Constituição Federal, segundo o qual: “as taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos”.

Por essa razão, não há como as atividades cartorárias serem tributadas pelo ISS. A uma, porque os valores pagos a título de taxa não podem integrar a base de cálculo de imposto. A duas, porque a mesma atividade não pode ser tributada duas vezes, sob pena de bitributação, prática vedada no ordenamento jurídico brasileiro.

Assim, a incidência do ISS sobre os serviços públicos cartorários, como prevê a Lei Complementar n.º 116/2003, já tributados por meio de taxa, importaria em bis in idem, afrontando o art. 145, II, §2.º, da Constituição Federal.


6. Conclusão

Por todo o exposto, é inafastável a conclusão de que os itens 21 e 21.1 da “lista de serviços”, anexa à Lei Complementar n.º 116/2003, são inconstitucionais, por violação direta aos artigos 145, II e § 2.º, art. 150, VI, a e art. 236, caput, da Constituição Federal de 1988.

A atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se coaduna com o entendimento doutrinário e dos Tribunais Superiores acerca da natureza pública do serviço cartorário prestado mediante o pagamento de taxas. Em respeito a tais pressupostos, o Supremo Tribunal Federal, muito provavelmente declarará inconstitucionais os itens 21 e 21.1, da lista anexa à Lei Complementar n.º 116/2003.


[1] ISS na Constituição e na Lei, Dialética, São Paulo: 2003, p. 35-36.


[2] Vide RE n.º 78.927/RJ, Rel. Ministro Aliomar Baleeiro, Primeira Turma, DJ 04.10.1974.


[3] Adota-se no presente estudo o conceito de serviço público proposto por Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo o qual “serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo”. (In: Curso de Direito Administrativo, 4.ª ed., Malheiros, São Paulo: 1993, p. 600)


[4] “Comentários à Constituição de 1988”, vol. IX, 1.ª ed., Forense Universitária, Rio de Janeiro: 1993, p. 4611.


[5] Lei n.º 8.935/94: Art. 37. A fiscalização judiciária dos atos notariais e de registro, mencionados nos arts. 6º a 13, será exercida pelo juízo competente, assim definido na órbita estadual e do Distrito Federal, sempre que necessário, ou mediante representação de qualquer interessado, quando da inobservância de obrigação legal por parte de notário ou de oficial de registro, ou de seus prepostos.

Parágrafo único. Quando, em autos ou papéis de que conhecer, o Juiz verificar a existência de crime de ação pública, remeterá ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia.

Art. 38. O juízo competente zelará para que os serviços notariais e de registro sejam prestados com rapidez, qualidade satisfatória e de modo eficiente, podendo sugerir à autoridade competente a elaboração de planos de adequada e melhor prestação desses serviços, observados, também, critérios populacionais e sócio-econômicos, publicados regularmente pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.


[6] Lei dos Registros Públicos Comentada, 6.ª ed., Saraiva, São Paulo: 1988, p. 51.


[7] Sistemas de Registros de Imóveis, Saraiva, São Paulo: 1992, p. 508-511.


[8] ROMS n.º 7.730/RS (97/00611180-7), Rel. Min. José Delgado, D.O.U. 27.10.1997.


[9] ADC n. 5 MC-DF, DJ 19.09.2003.


[10] ADIn n.º 1.378/ES, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 30.05.1997.


[11] Evidentemente, abordaremos aqui os serviços públicos (não-gratuitos) em que o administrado deve uma contraprestação pecuniária ante o serviço público prestado. Como é sabido, o caráter social impõe que alguns serviços públicos (como educação e saúde) não possam ser executados mediante contraprestação pecuniária.


[12] Segundo Ives Gandra da Silva (“Taxa e preço público”, in: Caderno de Pesquisas Tributárias, n.º 10, São Paulo: Centro de Estudos de Extensão Universitária/Resenha Tributária, 1985), o elemento distintivo entre a taxa e o preço estaria na circunstância de haver ou não outra opção para o indivíduo fruir a utilidade que é objeto do serviço público. Se houver, o serviço público se remuneraria por preço. Se não, o caso seria de taxa.


[13] ADIn n.º 1.378/ES, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 30.05.1997.


[14] op. cit. p. 60 e 61.


[15] “Curso de Direito Constitucional Tributário”, 14.ª ed., Malheiros, São Paulo: 2000, p. 470.


[16] “§3.º As vedações do inc. VI, a, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.”

Sobre o(a) autor(a)
Bernardo Motta Moreira
Estudante de Direito
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