Tortura

Tortura

Síntese sobre a história da tortura no Brasil, seus efeitos e seu tratamento pela legislação vigente.

Histórico - Brasil

Apesar de o descobrimento de nosso país ter-se dado em 1500, as Ordenações Afonsinas não tiveram aplicação no Brasil colonial, vez que os primeiros núcleos colonizadores se iniciaram em 1532, com Martim Afonso de Souza, que fundou a cidade de São Vicente, sobrevindo após as desastrosas capitanias hereditárias, cujos donatários receberam, por delegação, poderes praticamente absolutos para velarem pelo cumprimento das leis e pela manutenção da ordem em seus territórios.

Assim, embora as Ordenações Manuelinas se encontrassem em vigência na época, eram de fato os donatários que impunham com seu arbítrio, as normas que deveriam reger os homens que habitavam seus territórios.

No Brasil colônia edificou-se uma sociedade estamental com mentalidade escravista, onde a crueldade perpetrada, principalmente em relação aos negros, era enfocada como algo natural, porquanto estes eram considerados seres sub-humanos. Aliás, eram pura mercadoria adquirida e resguardada no patrimônio do seu senhor.

O livro V das Ordenações Filipinas determinava que, no caso de fuga de escravos, por ocasião da recaptura, o Juiz do lugar onde foi apresentado o escravo deveria infligir-lhe tormento, através de açoites, para que este nominasse o seu proprietário.

No Brasil Império, mesmo com a elaboração da Constituição Política de 1824, onde foram abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e as demais penas cruéis (art. 179, XIX) se continuou a suplicar os escravos. Assim, o Código Criminal do Império de 1830, esculpido sob o espírito liberal, dispunha, no seu artigo 60, que quando se tratasse de acusado escravo e que incorresse em pena que não fosse a de morte ou galés, deveria receber a reprimenda de açoites e, após entregue ao seu proprietário, para que este inserisse um ferro em seu pescoço pelo tempo que o juiz determinasse.

Assim, apesar da extirpação da tortura, em 1824, para os cidadãos brasileiros, os negros só vieram legalmente a se libertar da inflição de tormentos em 1888, com a extinção jurídica da escravidão, o que motivou, inclusive, a necessidade de se alterar parte dos dispositivos do Código Criminal de 1830, culminando com a elaboração do Código de 1890.

Já no Brasil República, apesar dos inegáveis avanços formais das liberdades públicas, os movimentos de oposição à elite governante foram combatidos com violência, sendo que seus simpatizantes foram submetidos às práticas de tortura e a tratamentos degradantes, como o Movimento de Canudos ou a Revolta da Chibata.

Frise-se, ainda, que com o advento do Estado Novo, no denominado período Getuliano, iniciado em 1937, o Brasil vivenciou uma ditadura que espargiu o terror e edificou a barbárie em todo o seu território, suprimindo todas as garantias individuais, fechando o parlamento federal, estadual e municipal. Também estabeleceu acentuada censura aos órgãos de imprensa e fortaleceu, sobremaneira, os departamentos policiais destinados à repressão política e social.

Com o advento da Revolução de 1964 e a ascensão dos militares ao poder, a tortura institucional passou a ser um poderoso instrumento a serviço dos detentores do poder, a fim de que pudessem obter das vítimas supliciadas informações relevantes, para a total extirpação dos opositores políticos.

Paulo Juricic, em sua obro “Crime de Tortura” p.47, afirma que:

Na sistemática de tortura no Brasil, foram surgindo muitos abusos cometidos pelos interrogadores, que oprimiam os presos para arrancar-lhes a verdade. Com o regime militar, a tortura transformou-se em método cientifico, passando a pertencer aos currículos de formação de militares.”

Entendiam os militares que a praga a ser exterminada se chamava comunismo e, portanto, tão nobre fim justificava não só o extermínio daqueles denominados subversivos como também a prática sistemática da tortura que atingia estudantes, jornalistas, políticos, advogados, enfim, qualquer cidadão que ousasse discordar do regime de força então vigente.


O Bem jurídico protegido e sujeitos do delito

Além de os instrumentos internacionais destinados a reprimir o uso da tortura sobrelevarem a dignidade da pessoa humana como estandarte dos Estados partes, a Constituição da República Federativa do Brasil, além de ter erigido como uma das garantias fundamentais do cidadão a não inflição da tortura, de tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), também traz a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República (art. 1º, III).

Assim, na tortura sedimenta-se, portanto, um atentado à dignidade humana, à medida que se nega ao torturado a sua condição de pessoa, transmudando-o em mero objeto. É inegavelmente, em tal fato, uma degradação da vítima de sua condição humana, privando-a da liberdade, de forma que esta se transfigura num objeto, ficando à mercê do torturador, comportando-se como este ordena e deseja.

Quanto ao sujeito ativo, impõe-se a observação de que a tortura sempre se constituiu num aparato utilizado pelo poder estatal, para obter confissão ou informação relevante de algum indivíduo suspeito da prática de algum delito, ou que se suponha que saiba quem foi o autor do crime investigado. A única diferença é que, outrora, tal intrumento era utilizado pelo próprio Estado-juiz, enquanto, atualmente, embora usado na ilegalidade, conta com o beneplácito de autoridades estatais, podendo ser denominada, portanto, de oficiosa.

O legislador brasileiro enfocou a tortura como crime comum, de forma que, em princípio, qualquer pessoa pode praticar o mencionado delito.

A Constituição de 1988, sensível aos postulados do Direito Internacional, erigiu como um dos princípios reitores nas suas relações internacionais, a prevalência dos direito humanos (art. 4º, II), enfocando, ainda, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.

Ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, inseriu, no art. 5º, § 2º, o permissivo de que outros direitos e garantias constantes de tratados internacionais, subscritos pelo Estado brasileiro, integrem as normas protetivas do mencionado preceito constitucional.

Não subsiste dúvida, pelo texto normativo do preceito em exame, de que o Brasil confere aos direitos fundamentais do homem, decorrentes de tratados internacionais por ele subscritos, a natureza de norma constitucional.

Verifica-se portanto, que os conceitos ditados pelos artigos 1º e 2º das Convenções contra a tortura de 1984 (ONU) e 1985 (OEA), respectivamente, devem ser enfocados pelo ordenamento jurídico brasileiro como normas materialmente constitucionais, não podendo ser contrariadas, por conseguinte, pela legislação ordinária.

A leitura dos textos normativos dos aludidos tratados não deixa dúvida, portanto, de que o crime de tortura é especial, já que somente pode ser praticado por funcionário público ou por pessoa no exercício de função pública, alcançado o particular tão somente na hipótese de concurso de agentes.

Por tal motivo muitos doutrinadores têm afirmado a inconstitucionalidade da lei ordinária na parte em que enfoca o crime de tortura como crime comum, necessitando, assim, adequar a lei à tipologia instituída pelas citadas convenções.

Quanto ao sujeito passivo, temos o cidadão a quem é aplicada a tortura. Aponta-se, ainda, o Estado como sujeito passivo secundário nas demais figuras, enquanto sujeito interessado no respeito às garantias nos procedimentos públicos investigatórios e punitivos.


Lei 9.455/97

A lei nº 9.455 de 07 de abril de 1997 definiu os crimes de tortura. O art. 1º prevê os crimes e sua forma qualificada, com as respectivas penas. Estabelece, ainda, as causas de aumento da pena; as conseqüências em relação ao cargo, função ou emprego público; a inafiançabilidade e a impossibilidade de graça ou anistia; o regime fechado para o início do cumprimento da pena, salvo a hipótese do § 2º.

No parágrafo 2º do art. 1º da lei 9.455/97, segundo entendimento de alguns autores, existe um erro: esse parágrafo prescreve somente uma pena de detenção de um a quatro anos àquele que se omite em face da tortura de terceiro, quando tinha o dever de evitá-la; nesta situação, configura-se o chamado crime de tortura imprópria. O art. 5º, XLIII da Constituição Federal prevê que devem responder pelo crime de tortura os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-lo, omitiram-se. No entanto, entendeu o legislador ordinário que aquele que assiste o crime deverá receber pena muito mais benéfica do que aquela estabelecida para punir o executor ou o mandante da tortura; tal dispositivo da lei especial se confronta não só com a teoria geral do crime, no sentido doutrinário, como também, com a sua própria disciplina na Parte Geral do Código Penal.

Importante frisar que o tipo penal exige o dolo para a sua configuração, não havendo responsabilidade criminal na omissão culposa, não se podendo imputar ao omitente o crime definido no art. 1º , § 2º, da Lei 9.455/97, em caso de mera negligência.

O § 2º, da lei 9.455/97 prevê uma espécie de crime comissivo próprio, nos seguintes termos: aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

O § 3º , do art. 1º, da referida lei também recebeu críticas no que diz respeito à tortura qualificada pelo resultado, por cominar a pena de reclusão de oito a dezesseis anos quando há a tortura seguida de morte, com sanção inferior quanto aos limites daquela prevista para o homicídio qualificado pela tortura, que estabelece a pena de doze a trinta anos de reclusão, nos termos do artigo 121, § 2º , III, do Código Penal.

Essas críticas são improcedentes, uma vez que o dispositivo não se refere ao crime de homicídio doloso mas ao homicídio preterintencional; esse preceito somente se aplica quando o agente age dolosamente para a prática da tortura, sem a intenção de provocar a morte, havendo apenas dolo no antecedente e culpa no conseqüente; nesse caso, o agente estará enquadrado na lei especial e não na lei geral. No entanto, se o torturador pretender a morte da vítima, ou assumir o risco de produzi-la, responderá pelo crime de homicídio doloso qualificado pela tortura, apesar de estarem presentes as circunstâncias elementares previstas nos tipos penais da lei especial.

O § 4º, da lei de tortura estabelece as causas especiais do aumento de pena, de um sexto até um terço, se o crime for praticado por agente público (inciso I), contra criança, gestante, deficiente e adolescente (inciso II), ou mediante seqüestro (inciso III).

Quanto ao seqüestro em relação ao crime de tortura, é importante lembrar que configurado um dos crimes em que o seqüestro é o elemento do tipo, não haverá absorção de um desses ilícitos pela tortura; para a prática prevista no art. 159, do Código Penal, a pena pela infração penal que é cominada é bem mais grave do que aquela prevista para os crimes definidos na lei 9.455/97; depreende-se, pois, que, nessa linha de raciocínio, haverá um concurso de crimes: de um lado, um dos delitos previstos no art. 1º , I e II, e § 1º da lei 9.455/97 e, de outro, um dos crimes dos arts. 148, 159 e 219, todos do Código Penal, dependendo do fim último em que atua o agente.

O crime de tortura absorve as penas dos crimes de lesão corporal leve (art. 129 do CP), de maus tratos (art. 136 do CP), de constrangimento ilegal (art. 146 do CP), de ameaça (art. 147 do CP), e de abuso de autoridade (arts. 322 e 350 do CP e lei 4.898/95)

A prática do seqüestro consistirá num crime autônomo, em concurso com a tortura, denotando, também, uma causa especial de aumento de pena deste último crime.


A tortura e o Estatuto da Criança o do Adolescente

O art. 4º da lei de tortura revogou expressamente o art. 233 da lei 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente - que continha a seguinte redação: Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura: pena - reclusão de um a cinco anos, § 1º se resulta lesão corporal grave: pena - reclusão de dois a oito anos, § 2º se resultar lesão corporal gravíssima: pena - reclusão de quatro a doze anos. § 3º se resultar morte: pena - reclusão de quinze a trinta anos. Porém, não ocorreu a abolitio criminis, uma vez que o fato previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente passou a ser definido ou no incisos II, do art. 1º , da lei 9.455/97, ou em seu § 1º, conforme as circunstâncias do fato. No entanto, se a prática da tortura em criança ou adolescente ocorreu antes da lei 9.455/97 e não se enquadra nos tipos penais nela previstos, o agente não responderá pela tortura prevista no art. 233, do Estatuto da Criança e do Adolescente, diante do disposto no art. 2º , parágrafo único, do Código Penal, mas por eventual crime de lesão corporal, constrangimento ilegal e outros, com mera agravante de tortura.

Diante dos princípios da irretroatividade da lei mais rigorosa e da ultratividade da lei mais benéfica, o condenado por crime praticado antes da vigência da nova lei está sujeito à pena menor, prevista pela lei revogada ou pela lei da tortura, conforme o caso.


Crimes Hediondos e tortura

A lei 9.455/97 não revogou, expressa ou tacitamente, os dispositivos da lei 8.072/90, aplicando-se ao autor do crime de tortura o art. 2º, II, da lei 8.072/90, que proíbe, para os crimes hediondos e equiparados, a fiança e a liberdade provisória.

Em contrapartida, em caso de sentença condenatória, o juiz deve decidir fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade, de conformidade como o art. 2º, § 2º , da lei 8.072/90.

É possível haver, também, para a tortura, a prisão temporária pelo prazo de 30 dias, prorrogável por igual período, em caso de extrema e comprovada necessidade, consoante o disposto no art. 2º, § 3º da lei dos Crimes Hediondos.

Por fim, quando se tratar de tortura, a pena será de três anos a seis anos de reclusão, nos termos do art. 8º, da lei 8.072/90, para crime de quadrilha ou bando, previsto pelo art. 288, do Código Penal.

A única distinção entre crime de tortura e os demais previstos na lei 8.072/90 reside somente na possibilidade de haver progressão de regime.

Sobre o(a) autor(a)
Marina Pasquini Toffoli
Estudante de Direito
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