Existe aborto de anencéfalos?

Existe aborto de anencéfalos?

Enfoque médico-jurídico, baseado em resolucões do Conselho Federal de Medicina (CFM) e pareceres do STF, de maneira a oferecer uma alternativa jurídica para a interrupcão da gestacão de fetos anencefálicos.

A polêmica da interrupção da gestação de fetos ancencéfalos encontrará solução aceitável após a unificação dos critérios e conceitos médicos e jurídicos para a definição do momento morte. Atualmente a falta deste consenso gera controvérsia nas interpretações jurídicas. Conforme a Lei 9434/97 nos casos de transplante de órgãos o critério utilizado é a morte cerebral, enquanto nos casos de crimes contra a vida o critério é a morte clínica.

A anencefalia é uma malformação que faz parte dos defeitos de fechamento do tubo neural (DFTN). Quando o defeito se dá na extensão do tubo neural, acontece a espinha bífida. Quando o defeito ocorre na extremidade distal do tubo neural, tem-se a anencefalia, levando a ausência completa ou parcial do cérebro e do crânio. O defeito, na maioria das vezes, é recoberto por uma membrana espessa de estroma angiomatoso, mas nunca por osso ou pele normal. A anencefalia é uma malformação incompatível com a vida. Apenas 25% dos anencéfalos apresentam sinais vitais na 1ª semana após o parto. A incidência é de cerca de 2 a cada 1.000 nascidos vivos. O seu diagnóstico pode ser estabelecido mediante ultra-sonografia entre a 12ª e a 15ª semana de gestação e pelo exame da alfa-fetoproteína no soro materno e no líquido amniótico, que está aumentada em 100% dos casos em torno da 11ª a 16ª semana de gestação. A gravidez do feto anencéfalo resulta em inúmeros problemas maternos durante a gestação. A FEBRASGO – Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia enumera tais complicações maternas, dentre elas: eclâmpsia, embolia pulmonar, aumento do volume do líquido amniótico e até a morte materna.

Complicações maternas durante a gestação de fetos anencéfalos:

A) Prolongamento da gestação além de 40 semanas;

B) Associação com polihidrâmnio, com desconforto respiratório, estase venosa, edema de membros inferiores;

C) Associação com DHEG (Doença Hipertensiva Específica da Gestação);

D) Associação com vasculopatia periférica de estase;

E) Alterações comportamentais e psicológicas;

F) Dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de anencéfalos de termo (parto entre 38 e 42 semanas de gestação, tempo considerado normal);

G) Necessidade de apoio psicoterápico no pós-parto e no puerpério;

H) Necessidade de registro de nascimento e sepultamento desses recém-nascidos;

I) Necessidade de bloqueio da lactação;

J) Puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratilidade uterina

K) Maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstétricas do parto de termo.

Acrescente-se ainda que cerca de 15-33% dos anencéfalos apresentam outras malformações congênitas graves, incluindo defeitos cardíacos como hipoplasia de ventrículo esquerdo, coarctação da aorta, persistência do canal arterial, atresia pulmonar e ventrículo único.

Para a Medicina, existem dois processos que evidenciam o momento morte: a morte cerebral e a morte clínica. A morte cerebral é a parada total e irreversível das funções encefálicas, em conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente funcionante. A morte clínica (ou biológica) é a parada irreversível das funções cardio-respiratórias, com parada cardíaca e conseqüente morte cerebral, por falta de irrigação sanguínea, levando a posterior necrose celular. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: ausência de atividade elétrica cerebral, ou ausência de atividade metabólica cerebral, ou ausência de perfusão sanguínea cerebral. (Conselho Federal de Medicina. Resolução Nº 1.480, de 08 de Agosto de 1997). Segundo o CFM, em sua Resolução Nº 1.752/04, os anencéfalos são natimortos cerebrais, e por não possuirem o córtex, mas apenas o tronco encefálico, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica.

E sendo o anencéfalo o resultado de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro, é considerado desde o útero um feto morto cerebral.

Partindo destes critérios diagnósticos, não há que se falar em aborto, pois o aborto é a morte do feto causada pela interrupção da gravidez. Se o feto já estava morto não é lesado o interesse protegido pela lei penal. Resta, portanto, atípica a conduta da interrupção da gravidez do anencéfalo.

Atualmente tem-se buscado diversas interpretações da lei penal para se possibilitar a antecipação terapêutica do parto do anencéfalo. Fala-se em adicionar ao Art. 128 uma nova regra de exclusão da ilicitude, mas, por não haver tipicidade não haverá comportamento ilícito. Outros interpretam a interrupção da gravidez de anencéfalos como crime impossível ou crime putativo, entretanto como não existe dolo no ato médico de extração do feto retido não existe crime. Recentemente o STF derrubou liminar concedida pelo Min. Marco Aurélio de Mello ao pedido de ADPF para a antecipação terapêutica da gravidez de anencéfalos, baseado nos princípios constitucionais da liberdade e preservação da autonomia da vontade, da legalidade, do direito a saúde e da dignidade da pessoa humana. Entendemos que essas condutas não são necessárias, já que o ato é atípico. E se a conduta não é típica, não há que se cogitar de ilícito penal.

O direito civil utiliza o critério do reconhecimento da vida para se adquirir personalidade. O bem jurídico principal a ser tutelado é a vida. O nascituro possui expectativa de direitos. Em se diagnosticando a morte cerebral do feto, não existe bem jurídico a ser tutelado. Conforme o Min. Marco Aurélio de Mello [1], a interrupção da gravidez no caso de feto anencefálico não caracteriza aborto, porque não há expectativa de vida fora do útero. De acordo com o Min. Joaquim Barbosa, do STF [2], ˝o feto anencefálico, mesmo estando biologicamente vivo (porque feito de células e tecidos), não tem proteção jurídica″. Segundo o Prof. Claus Roxin [3], ˝a vida vegetativa não é suficiente para fazer de algo um homem e com a morte encefálica termina a proteção à vida″. A própria lei de transplante de órgãos (Lei 9.434/97), ao fixar como momento da morte do ser humano o da morte encefálica, reforça este argumento.

Portanto, entendemos que o feto, desde sua concepção até o momento em que se constatou clinicamente a anencefalia, era merecedor de tutela penal, pelo pressuposto da existência de vida. Mas, a partir do momento em que se comprovou a morte encefálica, deixou de ser amparado pelo art. 124 do CP.

Concluímos, então, pela inexistência de vida, e que se constate a atipicidade da interrupção da gestação de fetos anencéfalos, por não haver bem jurídico a ser tutelado, desde que comprovada e registrada por no mínimo 02 laudos médicos; possibilitando-se, assim, à gestante, a opção de antecipação terapêutica do parto do anencéfalo.



[1] Cai liminar que liberava aborto de feto sem cérebro. Zero Hora, Porto Alegre, 21 Set. 2004

[2] HC prejudicado. Consultor Jurídico. Disponível em: <http://conjur.uol.com.br/static/textos/25241,2.shtml>. Acesso em 8 Set. 2004.

[3] ROXIN, Claus. A Proteção da Vida Humana Através do Direito Penal. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto_Roxim.htm> Acesso em 8 Set. 2004.

Sobre o(a) autor(a)
Ana Clelia de Freitas
Médica, com Especializacão (Residência Médica) em Cirurgia Geral, Cirurgia Pediátrica e Dermatologia. Acadêmica de Direito da ULBRA - RS.
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