Reconhecimento da excludente de ilicitude na fase inquisitorial

Reconhecimento da excludente de ilicitude na fase inquisitorial

Análise da atuação da autoridade policial diante das excludentes de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular do direito).

E stabelece o art. 23 do Código Penal que não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Ressalva apropriadamente o parágrafo único que o agente, em qualquer das hipóteses, responderá pelo excesso doloso ou culposo.

Tal dispositivo engloba as justificativas de caráter genérico, também chamadas excludentes de antijuridicidade, excludentes de ilicitude ou descriminantes. Há excludentes específicas, encontradas na parte especial do código, que são, dentre outras, as previstas no art. 128, inciso I (aborto necessário), 142 (ofensa irrogada em juízo), 146, § 3º (intervenção cirúrgica não autorizada em iminente perigo de vida; coação para evitar suicídio), 150, § 3º, inciso II (violação de domicílio para reprimir crime em seu interior).

Ensina o brocardo que na lei não há palavras inúteis. Em outra vertente, indo além das normas de caráter constitucional que garantem as liberdades individuais, requer a hermenêutica jurídica que, na interpretação da lei, sejam observadas, dentre outras, as seguintes regras:

- aplicação da parêmia favorabilia amplianda, odiosa restringenda, significando restrição em detrimento do Estado e ampliação em favor do cidadão;

- diante de antinomias, a lei penal e a processual penal de natureza material devem ser integradas sob a égide do princípio do favor rei, isto é, in dubio pro reo;

- em matéria de direito penal não se deve aplicar a analogia, senão em favor do réu. [1]

A fase inquisitorial inicia-se, formalmente, com a instauração do inquérito policial, que se dá por meio de portaria ou auto de prisão em flagrante. Nessa última modalidade, ao se imputar a conduta ao autuado, invariavelmente a autoridade policial o indicia em alguma figura típica, o que dá legitimidade ao prosseguimento da persecução criminal. Facultativamente e a contrário senso do art. 304, caput e § 1º do Código de Processo Penal, deixará a autoridade policial de indiciar o autuado, se considerar insuficientes os elementos probatórios apresentados. Nesse caso a peça terá efeito meramente de instauração do inquérito, para continuação da apuração do fato tido como criminoso, visando a colheita de outras provas que dêem embasamento a eventual responsabilização criminal do autuado ou de outrem. Essa situação equivale àquela em que se instaura o procedimento por portaria sem indiciação de plano.

Embora seja a indiciação um ato procedimental privativo da autoridade policial, sua natureza tem um quê de caráter penal, ainda que não vincule a capitulação da denúncia e, por conseqüência, da pronúncia nos crimes sujeitos a júri. Ocorre que na avaliação dos antecedentes, obrigatoriamente feita pelo juiz por ocasião da dosimetria da pena, o banco de dados consultado é o do Instituto Nacional de Identificação, órgão vinculado ao Departamento de Polícia Federal, por intermédio da juntada aos autos da folha de antecedentes penais do acusado. Nesse documento estão inseridos os dados relativos a processos em curso, condenações, execução penal e respectivos incidentes, mas, principalmente, as indiciações de que o interessado é objeto.

Infere-se daí que a autoridade policial profere decisão importantíssima no momento da indiciação, sendo-lhe temerário alegar que atua conforme a norma ao indiciar a esmo, por mera comodidade. Incontestável que a autoridade policial, se não faz um verdadeiro juízo de valor no momento em que o caso lhe é apresentado, certamente aí faz um juízo do fato, sem o qual não poderia sequer lavrar o auto de prisão em flagrante. Ao se autuar alguém em flagrante, portanto, às vezes se lhe assegura a custódia permanente até a extinção do processo ou da punibilidade, quando se trata, por exemplo, de crime hediondo, absolutamente inafiançável, portanto. Ponderação e bom senso nessa ocasião devem secundar a análise acurada da subsunção do fato ao preceito legal.

Evidente que o ato da autoridade policial está sujeito ao controle de legalidade, sendo judicial sua declaração, de ofício ou mediante provocação do Ministério Público, no exercício do controle externo da atividade policial. Assim, pode o juiz invalidar a constrição do autuado decretando o relaxamento da prisão. Esse controle se restringe, portanto, às hipóteses de inexistência de justa causa para a execução do ato ou quando for praticado com excesso de poder – abuso ou desvio – isto é, quando eivado de ilegalidade.

O fato de a decisão jurídica da autoridade policial alinhar-se a corrente minoritária não é motivo para que seja atacada, desde que a decisão tomada esteja em consonância com a interpretação razoável da lei, até porque o ato procedimental inquisitório não é passível de nulidade, sendo quiçá motivo de imprestabilidade da prova a que se associe. Nesses casos, apenas os remédios processuais são manejáveis, pela via judicial. Exceção se faz quanto à manifestação da parte pleiteando a instauração do procedimento, que não atendida pela autoridade policial, enseja recurso dirigido ao chefe de polícia.

Retomando o raciocínio quanto às excludentes de ilicitude, verifica-se a clareza com que a lei trata a espécie, quando textualmente estabelece que não há crime naquelas situações referidas. A instauração de inquérito, portanto, é desnecessária nesses casos, visto que a doutrina reputa indevida tal providência até quando a lei penal isenta o autor de pena. Isto significa que a lei, ao estipular “é isento de pena”, admite que houve o fato típico e antijurídico, mas por uma questão de política criminal, concede o favor ao autor do ilícito. Ora, quando se diz “não há crime”, menos ainda se cuidaria de reprovabilidade na conduta do agente. Ainda que presente o desvalor do resultado, não há que se falar em desvalor da conduta. Não havendo culpabilidade, não pode haver punibilidade, conceitos que integram a noção de antijuridicidade. Não se pode, portanto, prender o autor do fato, que é típico, mas não antijurídico, pela incidência da excludente.

Disso resulta que poderá haver o auto de prisão em flagrante impropriamente chamado de “flagrante negativo”, sem indiciação do conduzido, que passaria a ser mero objeto de investigação. Nesse caso, o conduzido seria posto em liberdade, não para livrar-se solto, mas porque, não havendo cometido crime algum, tem direito subjetivo à liberdade plena, garantia individual de caráter constitucional. Se até aos criminosos contumazes, facínoras confessos, se concede o benefício da dúvida e se aplica o princípio da inocência presumida, tanto mais se deve conceder a quem perpetra um ilícito, em tese, amparado pela excludente de antijuridicidade. E até ao perigoso bandido que esteja amparado pela lei, nesse particular, é garantido o mesmo tratamento, já que a lei não excepciona.

De ver-se que, ao não autuar alguém em flagrante delito, invocando a existência de excludente de ilicitude, a autoridade policial não dá decisão final ao caso. Apenas deixa de determinar a constrição máxima, por entender, num primeiro momento, que não houve crime. Analogamente, em alguns casos pode ocorrer que uma prisão em flagrante não redunde em condenação. Isso é perfeitamente possível quando o autuado por flagrante presumido, não querendo se manifestar na esfera policial, assume a autoria por outrem, deixando para esclarecer a situação em juízo. De sorte que fica a critério da autoridade policial, ao invés de tomar aquela decisão de lavrar o flagrante apenas como vestíbulo do inquérito policial, determinar o registro do fato para apuração posterior, por não lhe ficar claro até se houve o fato típico. Mesmo raciocínio se impõe quando da instauração de inquérito policial para apuração de circunstâncias envolvendo fato potencialmente criminoso.

Não faz sentido é a autoridade policial lavrar o auto de prisão em flagrante, indiciar o autuado imputando-lhe a conduta típica, quiçá impondo-lhe a prisão, simplesmente por presumir que as circunstâncias do fato impõem o deslinde da questão em juízo. Assim operando, a autoridade policial estaria cometendo um constrangimento, senão um verdadeiro abuso de autoridade em prejuízo do autor do fato, ficando sujeito, destarte, a suportar o ônus de sua conduta imponderada.

A faculdade deferida ao juiz pelo art. 310 do CPP, no sentido de conceder liberdade provisória ao autor de ilícito cometido em circunstância descriminante, evidentemente se refere ao caso de a autoridade policial, mesmo diante daquela situação, haver lavrado o auto de prisão em flagrante e mantido preso o indiciado.

Por uma questão de cautela, entretanto, conclui-se que, em caso de prisão em flagrante, vislumbrando a ocorrência de causa excludente de antijuridicidade, é salutar que a autoridade policial lavre o auto, sem indiciação do conduzido. O auto de prisão em flagrante, então, servirá de peça instauradora do inquérito policial que apurará se existiu outro crime e, ainda, se houve excesso doloso ou culposo na conduta do agente.



[1] Réu aqui deve ser entendido em seu sentido amplo, como suspeito, indiciado, acusado e réu propriamente dito, ou condenado.

Sobre o(a) autor(a)
Claudionor Rocha
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