Tráfico de drogas: um exame sobre a (in)aplicabilidade do princípio da insignificância
Análise acerca da falta de incidência do princípio da insignificância no delito de tráfico de drogas em pequenas quantidades.
O princípio da insignificância não conta com nenhuma passagem normativa direta no atual ordenamento jurídico, seu reconhecimento e admissibilidade advém de correntes doutrinárias e de entendimento jurisprudencial. O julgador realiza uma análise a respeito das particularidades do delito cometido, examinando o grau de lesividade da ação e suas consequências, para posteriormente determinar a aplicação da benesse.
Em resumo, a insignificância ataca a tipicidade material do delito, onde se observa os resultados da ação, averiguado se houve prejuízo relevante para o corpo social. Insta salientar que a tipicidade deve ser subdividida em dois aspectos: formal, que trata da relação entre um fato concreto e um tipo penal, e material que analisa a lesão ao bem penalmente tutelado.
O reconhecimento da insignificância resulta na exclusão da tipicidade da ação, portanto, inexiste fato típico e, como disposto no artigo 386, III, do Código de Processo Penal, o réu deve ser absolvido.
Ainda que a incidência da insignificância dependa da interpretação do julgador, a jurisprudência dispõe de requisitos basilares já pacificados pelo Supremo Tribunal Federal para a devida aplicação do princípio. São eles:
(1) a mínima ofensividade da conduta do agente,
(2) a nenhuma periculosidade social da ação,
(3) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento,
(4) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
A matéria conta com divergências doutrinárias e jurisprudências quanto à sua aplicação em determinados crimes. Uma das maiores discussões trata do crime de tráfico de drogas.
O artigo 33 da lei 11.343 traz diversos verbos em sua redação e dispõe que, para incidir no crime de tráfico, basta enquadramento em apenas uma das mais de quinze condutas descritas.
Majoritariamente, os julgadores brasileiros deixam de aplicar o princípio da insignificância no crime de tráfico, sob o fundamento de que a conduta apresenta perigo presumido (ou abstrato), ou seja, não exige materialidade ou lesão concreta ao bem jurídico, sendo irrelevante a quantidade de droga apreendida em poder do agente. Além disso, os tribunais insistem em manter a narrativa de que a sociedade é afetada pelo efeito destrutivo e desagregador do tráfico de drogas, e isso justifica tratamento jurídico mais rigoroso em relação aos agentes envolvidos na sua prática, porém, deixa de expor de forma clara quais são esses efeitos, e como a conduta em questão é lesiva a ponto de merecer um tratamento mais severo.
Os crimes de perigo abstrato fazem parte de outra discussão na seara criminal, vez que ofendem o princípio da alteridade. Criado por Roxin, o princípio da transcendentalidade (ou alteridade) proíbe a incriminação de atitude meramente interna, ou seja, para que a conduta seja criminalizada, o dano deverá lesar o direito de terceiros.
De lado oposto, há doutrinadores, como Luiz Flávio Gomes e Cezar Roberto Bitencourt, que relacionam a insignificância com o grau de lesividade da conduta, levando em consideração a quantidade de droga apreendida, evitando uma desproporção entre lesão sofrida e sanção a ser aplicada.
Cabe colacionar o entendimento de Cezar Roberto Bitencourt:
O tipo penal deve ser valorado, no seu aspecto material, como instituto concebido com conteúdo valorativo, distinto de seu aspecto puramente formal, de cunho puramente diretivo. Por isso se deve considerar materialmente atípicas as condutas de inegável irrelevância (insignificância) para a sociedade como um todo.
O judiciário deve inovar em seus julgamentos conforme os anseios sociais, tendo em vista que o direito se modifica de acordo com as necessidades apresentadas pela população, e tal premissa reflete em decisões recentes das cortes superiores, onde é possível encontrar um posicionamento distinto do pregresso.
Vejamos o Recurso Especial nº 1675709, de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, onde deixou-se de condenar um agente em decorrência de ínfima quantidade de sementes de maconha apreendida (16 unidades), aplicando o princípio da insignificância e afastando a tipicidade da ação.
RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL. RECEBIMENTO DE DENÚNCIA. IMPORTAÇÃO DE SEMENTES DE CANNABIS SATIVA LINEU. MATÉRIA-PRIMA PARA PRODUÇÃO DE DROGA. PEQUENA QUANTIDADE DE MATÉRIA PRIMA DESTINADA À PREPARAÇÃO DE DROGA PARA CONSUMO PESSOAL. FATO ATÍPICO.1. O fruto da planta cannabis sativa lineu, conquanto não apresente a substância tetrahidrocannabinol (THC), destina-se à produção da planta, e esta à substância entorpecente, sendo, pois, matéria prima para a produção de droga, cuja importação clandestina amolda-se ao tipo penal insculpido no artigo 33, § 1º, da Lei n. 11.343/2006.2. Todavia, tratando-se de pequena quantidade de sementes e inexistindo expressa previsão normativa que criminaliza, entre as condutas do artigo 28 da Lei de Drogas, a importação de pequena quantidade de matéria prima ou insumo destinado à preparação de droga para consumo pessoal, forçoso reconhecer a atipicidade do fato.3. Recurso provido.
Neste mesmo sentido, cabe colacionar a decisão do Habeas Corpus nº 127573, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, onde a paciente foi flagrada vendendo 1 g (um grama de maconha) e sofreu condenação de 6 (seis) anos, 9 (nove) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, em regime inicial fechado.
Habeas corpus. 2. Posse de 1 (um grama) de maconha. 3. Condenação à pena de 6 (seis) anos, 9 (nove) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, em regime inicial fechado. 4. Pedido de absolvição. Atipicidade material. 5. Violação aos princípios da ofensividade, proporcionalidade e insignificância. 6. Parecer da Procuradoria- Geral da República pela concessão da ordem. 7. Ordem concedida para reconhecer a atipicidade material.
Cabe evidenciar uma passagem extremamente relevante do voto do relator:
“Entendo que a razão para a recusa da aplicação do princípio da insignificância em crimes de tráfico de entorpecentes está muito mais ligada a uma decisão político-criminal arbitrária do que propriamente a uma impossibilidade dogmática. O principal argumento levantado por aqueles que sustentam tal inaplicabilidade é o de que o tráfico ilícito de entorpecentes se revela um crime de perigo abstrato, que tutela bens jurídicos difusos (segurança publica e paz social), e que, portanto, repele o emprego do princípio da insignificância. No entanto, entendo que tal equação dogmática (crime de perigo abstrato + bem jurídico difuso = inaplicabilidade automática do princípio da insignificância) não se revela exatamente precisa em sua essência.”
O voto do Ministro Gilmar Mendes contou com a concordância dos Ministros Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, vencendo os votos dos Ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia.
Em suma, o princípio da insignificância não pode ser considerado incompatível com os tipos penais da Lei de Drogas, apenas pela natureza abstrata do delito. A completa repelência do princípio traz consigo mais embaraços do que vantagens ao ordenamento. Embora a maioria dos magistrados ainda apresentem notável resistência sobre o assunto, a tendência é que se aplique de forma mais flexível, como visto nos julgados anteriores.
Após explanar e analisar o cabimento da aplicação do princípio da insignificância no delito de tráfico de drogas, acredito que caiba comparar e criticar a sua aplicação nos crimes contra a ordem tributária, uma vez que, de acordo com as Portarias nº 75 e 130 do Ministério Público da Fazenda, incide o princípio da insignificância em débitos tributários inferiores ao valor de R$20.000,00 (vinte mil reais).
Qual ação merece maior repressão? A traficância de ínfima quantidade de droga (um comprimido de ecstazy, um cigarro de maconha, ou 2g de cocaína), ou a sonegação de R$ 20.000,00 em impostos?
A ferrenha negativa jurisprudencial decorre do caráter abstrato do delito de tráfico, ou da seletividade penal que se evidencia diariamente nas tribunas brasileiras?
A discussão vai muito além da esfera jurisdicional, adentrando em temas sociais de repercussão. Espera-se dos julgadores uma postura uníssona, sem preconceitos fantasiados de normas jurídicas.
Referências
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral, p. 83. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1675709, Relatora: Min. Maria Thereza de Assis. Julgado em 09/03/2017. Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente= ATC&sequencial=74863665&num_registro=201700482226&data=20171013&ti po=91&formato=PDF
BRASIL, Supremo Tribunal Federal HC nº 84412, Relator: Min. Celso de Mello. Julgado em 19/10/2004, Disponível em https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur95855/false
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. HC nº 127573, Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgado em 11/11/2019. Disponível em https://redir.stf.jus.br/pagina dorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=751457286