O juiz de garantias e o processo acusatório: reexame das condições da ação após resposta da defesa

O juiz de garantias e o processo acusatório: reexame das condições da ação após resposta da defesa

Com a vigência da Lei 13.964/19 (Lei anticrime), foi inserido no sistema brasileiro o juiz das garantias. De acordo com o novo sistema, o recebimento da denúncia deverá ser reexaminado pelo juiz da instrução em face das manifestações da defesa em resposta à acusação.

Na expectativa de uma decisão do STF sobre a vigência dos novos dispositivos do CPP, inseridos por meio da Lei 13.964/19, especialmente os que tratam do juiz das garantias, algumas questões devem ser levantadas no prognóstico da inserção de garantias efetivas e da expressa consolidação do sistema acusatório no processo penal brasileiro. 

Uma dessas questões é a possibilidade de reexame das condições da ação após manifestação da defesa em resposta à acusação. Na leitura corrente do Código de Processo Penal há a tendência de se acreditar que após a resposta à acusação o juiz instrutor não mais poderia revisitar as condições para o recebimento da ação, apreciadas em seguida à citação do acusado. Com as novas regras do CPP, caberá ao juiz das garantias realizar o juízo de admissibilidade, verificando a existência das condições do art. 395 do CPP e proferindo a decisão, recebendo ou rejeitando a denúncia, atribuição conferida pelo art. 3º-B, XIV.

A questão que se coloca é a de que, sendo provisória a decisão do juiz das garantias quanto às medidas cautelares, no contexto do § 2º do art. 3º-B, poderia o juiz da instrução e julgamento, após manifestação da defesa, fazer nova apreciação das condições da ação e rejeitar a denúncia? Defendemos que sim. Uma análise percuciente, à luz dos novos dispositivos legais, demonstra que, ao revés do entendimento comum, o juiz competente para os atos de instrução pode e deve realizar novo juízo de admissibilidade da ação penal após o oferecimento das preliminares de defesa porque não há, nesse caso, preclusão pro judicato: As decisões do juiz das garantias não vinculam o juiz de instrução e julgamento que, após o recebimento da denúncia, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias (CPP Art. 3º-B § 2º).

A dúvida poderia recair sobre se o efeito não vinculatório diz respeito apenas às medidas cautelares em curso ou se a lei abre a possibilidade de se revisar as condições da ação, em decisão revogatória do recebimento da denúncia. Antes mesmo da inserção (tardia) do juiz das garantias e do sistema acusatório na lei processual penal, a doutrina destacava que essa interpretação decorre da hermenêutica teleológica da reforma de 2008, que deu novo tratamento à fase postulatória na ação penal, como se lê em Aury Lopes Jr.: Após a reforma processual de 2008, pensamos que a solução deve tomar um novo rumo: poderá o juiz rever a decisão de recebimento à luz dos argumentos trazidos na resposta à acusação e rejeitá-la... Sustentamos que o juiz poderá desconstituir o ato de recebimento, anulando-o, para a seguir, proferir uma nova decisão, agora de rejeição liminar. Não existe preclusão pro judicato e nada impede que o juiz desconstitua seu ato e a seguir pratique aquele juridicamente mais adequado, até porque, se o ato for feito com defeito, pode e deve ser refeito, regra básica do sistema de invalidades processuais (Direito Processual Penal. 13ª Edição, p. 244).

Sob este paradigma, a generalidade dos fundamentos do art. 397, III, que dispõe sobre a absolvição sumária do acusado, dentre outras circunstâncias, quando o fato narrado na denúncia não constitui crime, estaria abrangendo a justa causa, permitindo novo juízo de prelibação e consequente revisão da pretérita decisão de recebimento realizada pelo juiz das garantias. Assim como não há justa causa se o fato narrado na denúncia não se adequa a tipo legal de crime, também o fato narrado não constitui crime se o Ministério Público não apresenta justa causa para a propositura da ação. Não haveria pois, como dissociar o juízo da tipicidade da justa causa, ao fundamento de que sem tipicidade, não há justa causa; inexistindo justa causa, o fato é atípico, não há crime.

Nesse aspecto, a primeira manifestação da defesa tem por finalidade revelar uma possível impertinência lógica entre os fatos narrados na denúncia e as exigências legais para o prosseguimento do processo acusatório, revisitando, se for o caso, as condições da ação, de cuja análise o juiz instrutor não poderá se omitir sem o custo de violar o princípio do contraditório.

A denúncia não é um mero ato formal de encaminhamento da ação. Não pode receber esse tratamento. Trata-se de um ato processual essencial para a existência do processo, a subsidiar a correta instrução do feito; e, mais importante, possibilitar o pleno exercício do direito de defesa, uma vez que o réu, embora se defenda dos fatos narrados, acha-se na contingência de suportar o ônus de uma tipificação mal formulada ou excessiva, conduta acusatória que impede o exercício de direitos processuais públicos e subjetivos.

Se a denúncia narra fato atípico, conduta que não se amolda a nenhum tipo delitivo, a ação penal torna-se insubsistente em sua própria essência, carente da condição nuclear para o exercício do ius persequendi: a justa causa. Se a tipificação da conduta implica uma sobrecarga acusatória, além dos limites impostos pela realidade provada, impedindo o réu de exercer direitos legais subscritos na lei processual, a inicial torna-se abusiva, merecendo ajuste judicial ou até mesmo a sua rejeição, com a revogação do anterior recebimento.

Isso porque não há, na atual processualística, diferenciação entre os aspectos formais e materiais da denúncia. A forma, especialmente o enquadramento típico, junge- se à essência da acusação, repercutindo concretamente em direitos materiais e, por consequência, em aspectos da liberdade individual, consectários do devido processo legal. Em outro aspecto, na atual exegese, a dicotomia fato-direito apresenta-se insuficiente para a compreensão dos fenômenos em face da imanência entre a abstração jurídica e suas consequências fáticas.

Eugênio Pacelli de Oliveira, citando Afrânio Silva Jardim, além das já conhecidas condições da ação – genéricas e específicas - já se enumerava uma outra, que seria, a seu aviso, a quarta condição da ação: a justa causa. Sustentava o ilustre processualista que o só ajuizamento da ação penal condenatória já seria suficiente para atingir o estado de dignidade do acusado, de modo a provocar graves repercussões na órbita de seu patrimônio moral, partilhado socialmente com a comunidade em que desenvolve as suas atividades. Por isso, a peça acusatória deveria vir acompanhada de suporte mínimo de prova, sem os quais a acusação careceria de admissibilidade (Curso de Processo Penal, 2009, p. 132). Desdobrando-se o argumento, verificamos que a denúncia jamais poderá ser considerada um ato meramente formal. É antes um ato essencialmente material, dependente da realidade, com o dever de encaminhar à Justiça caso criminal típico e com lastro probatório suficiente.

Por outro lado, o prospecto acusatório caminha em erro quando sujeita o acusado a uma tipificação excessiva, desvinculada do material indiciário e da silogística indutiva, impedindo o exercício de direitos processuais subjetivos e constitucionais tais como a transação penal, a suspensão condicional do processo e o acordo de não persecução penal, sob o ônus de que a mera formatação abstrata realizada na denúncia, quando mal apreciada, tem por consequência impedir o exercício desses direitos. 

Por tais razões, o art. 395 do Código de Processo Penal estabelece as condições para o exercício da ação penal, determinando que a denúncia seja rejeitada quando: I - for inepta; II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal, ou III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.

A exigência é de estofo constitucional, pois o cidadão denunciado experimenta uma aflição em seu status libertatis, vinculado que se encontra à ação persecutória do estado acusador. Além disso, prevalece, no Estado Constitucional de Direito, a presunção de inocência, que impõe aos órgãos estatais somente agir de encontro às liberdades individuais quando acercados de elementos fáticos e objetivos capazes de indicar, ainda que em sede prelibatória, a probabilidade de culpa do agente, de forma e evitar o constrangimento do processo sem a devida causa.

O recebimento de denúncias sem os critérios da objetividade, da imparcialidade e da justa causa coloca o Estado na condição de agente propagador da insegurança jurídica ao derrogar garantias constitucionais que protegem o estado de inocência. Neste sentido, o que já era proposto pela doutrina ganha subsídio legal com a instituição do juiz das garantias e a possibilidade de revisão de suas decisões pelo juiz da instrução e julgamento.

Sobre o(a) autor(a)
Fabrizio Jacynto Lara
FABRIZIO JACYNTO LARA é advogado criminalista. Graduou-se em Direito em 1998, na então Faculdade de Direito do Distrito Federal – CEUB (Uniceub). Especializou-se em Direito Penal e Processo Penal. Em 2004, iniciou carreira...
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