Reflexões sobre o cenário político brasileiro em tempos de Covid-19
O cenário carrega, dentre tantas outras conjunturas, incertezas e agravamento de crises econômico-político-sanitário-sociais já outrora instaladas, sugerindo que o modelo atual de gestão do Estado não seja capaz de atender as demandas, tampouco de oferecer segurança ao seu povo.
O momento em que transita a humanidade gira em torno da pandemia causada pela Covid-19 e, em virtude da contaminação pelo indigitado vírus em nível global que impinge à população isolamento social, temos como uma de suas consequências a desaceleração ou até frenagem em alguns casos, da cadeia de produção e ciclo econômico de modo geral.
Logo, golpeada a capacidade de compra de bens e serviços, sejam eles oriundos do mercado formal ou informal e da linha de produção de pequenas e grandes indústrias, sendo mantidas as portas abertas apenas daqueles estabelecimentos cuja atividade é considerada essencial. Não há, portanto, como evitar um cenário de escassez, especialmente junto àqueles que compõem as mais remotas camadas da pirâmide social.
No Brasil as atividades essenciais e serviços públicos que poderão manter suas atividades regulares estão relacionadas no texto do Decreto n. 10.282 de março de 2020. Em que pesem as discussões acerca do rol ali inserto, o normativo federal coloca uma pá de cal, pelo menos momentânea, para que se tenha um ponto de partida no que tange ao que pode ou não funcionar
O cenário carrega, dentre tantas outras conjunturas, incertezas e agravamento de crises econômico-político-sanitário-sociais já outrora instaladas, sugerindo que o modelo atual de gestão do Estado não seja capaz de atender as demandas, tampouco de oferecer segurança ao seu povo (salus populi)
Diante da circunstância imprevisível e (até então) imensurável, o Estado se vê desguarnecido e alquebrado, ao passo que não possui ferramentas para suportar o majorado desarranjo econômico combinado com um sistema de saúde pública fragilizado em virtude da falta de investimentos. A consequência é a exposição dos já mencionados integrantes da base da pirâmide social à penúria, classe esta que está sempre nos primeiros lugares das filas do desamparo.
A organização de Estado que se tem atualmente é alicerçada em princípios democráticos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 que, dentre outras sem número de implicações, objetiva, em suma, defender e proteger com toda a força comum a pessoa e sua propriedade.
Outrossim, é oportuno relembrar que este mesmo Estado foi instituído visando “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”, tal qual consta no preâmbulo da Carta Constitucional.
No campo filosófico e não longe da realidade, é pertinente relembrar que Rousseau em “Do Contrato Social”, assentou que: “(...) em lugar de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima a desigualdade que a natureza poderia ter imposto aos homens, os quais, podendo ser desiguais em força ou gênio, tornam-se todos iguais por convenção e direito”.
E continua, traçando um conceito de igualdade em termos de sociedade que é atual desde 1762, o que demonstra estagnação da atual política frente à discrepância que se tem em todas as frentes ligadas aos direitos básicos: “sob os maus governos, essa desigualdade é somente aparente e ilusória; apenas serve para manter o pobre na miséria e o rico em sua usurpação. As leis são, de fato, sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que nada têm. Segue-se, portanto, que o estado social somente é vantajoso aos homens se eles tiverem alguma coisa e alguns entre eles não tiverem demasiado”.
Isto posto, à junção do nível de suporte dado pelo Estado e seus conceitos teóricos, sobretudo aqueles presentes na concepção dos valores que conceberam o que se conhece como o atual Pacto, basta o conhecimento de um homem médio para se ter a certeza de que o Leviatã colapsou e que, definitivamente, não funciona. A pandemia causada pela Covid-19 escancara a bancarrota da liderança pública, cujo nível técnico para a condução e estabilização do caos se mostra pífio.
Um singelo exemplo é a distribuição de renda que vem sendo feita entre os populares, mormente por artistas, atletas e grandes empresários, sem contar as ações individuais por meio de distribuição de itens de sobrevivência por qualquer que o possa fazer. Ações como vaquinhas virtuais, doações, arrecadação de alimentos e medicamentos se proliferam pelas redes sociais com o fim de sacar do pauperismo e situação de extrema necessidade nossos concidadãos.
Vê-se um cenário em que a população se investe da autotutela, caridade, filantropia e solidariedade para salvaguardar a dignidade, saúde e vida de seu semelhante uma vez que a instituição legitimada para tal não o faz na medida que se necessita. Não se trata aqui de desestímulo à cooperação entre os pares, mas sim apontamentos que reforçam a ideia de que o modelo atual de governo está caduco e suas obrigações primárias, há anos, estão tácita e paulatinamente sendo transferidos à iniciativa privada.
Pontual situação, a exemplo de São Paulo, é a construção a toque de caixa de leitos hospitalares, ampliação do atendimento dos restaurantes populares, instalação de banheiros em ambientes públicos para que aqueles que na rua vivem possam se higienizar. Novamente, não é uma crítica destrutiva, já que foram providências cruciais para mitigação dos danos oriundos da circunstância posta. O que chama a atenção é que os problemas de grave calibre existiam anteriormente à dita pandemia, sendo que questões como a fome, o desabrigo, o desemprego, a falta de saneamento básico e de saúde se tornaram cotidiano, invisíveis e foram incorporadas à normalidade.
Ou seja, o Estado tem uma postura reiterada de abandono para com os vulnerabilizados (aqueles cujos acessos não são garantidos) e diante da pandemia ora enfrentada, nota-se que a desigualdade está assinalando uma proximidade maior com a morte; na prática, a condição econômica determina quem vive e quem morre, uma vez que o isolamento social e o acesso à hospitais, máscaras, álcool em gel, à água e sabão para higienização não são acessíveis a todos os brasileiros. A medida do poder de compra corresponde ao acesso aos insumos básicos de sobrevivência.
Noutra ponta, oposto ao sentimento quase que natalino de solidariedade, quando anunciada a pandemia e decretada a quarentena, se viu de maneira corriqueira carrinhos de supermercados lotados e prateleiras vazias. Preços de máscaras e álcool em gel superfaturados, produtos estes que também se esgotaram rapidamente. Nos deparamos com cenário análogo àquele mostrado brilhantemente no filme espanhol “O Poço”, o qual evidencia o egoísmo, uma vez que os que estão nos andares superiores têm acesso a comida e bebida frescos e em quantidade abundante e na medida em que os níveis decrescem, a quantidade e qualidade do alimento também acompanham.
Estas duras reflexões não servem apenas para evidenciar uma situação de anarquia no que tange aos direitos e garantias fundamentais dos populares, mas trazer à tona a discussão, cujo interesse é notadamente coletivo.
O desencontro é notado quando atitudes filantropas da iniciativa privada se sobrepõe aos meios governamentais para gerenciar a crise a contrassenso dos ditames constitucionais, quando a solidariedade e filantropia são o fim e não o meio.
Nota-se, por outro lado, uma tomada de consciência por parcelas da população, o que se vê quando debates políticos e sociais se proliferam nas mídias e no cotidiano, seja em decorrência do dissenso que aflorou nas últimas eleições presidenciais, seja ainda pelo crescente descontentamento com a estrutura governamental e a direção em que caminha a sociedade de modo geral. Não há melhor momento que não este para que se reflexione sobre todo esse contexto ora vivido, o que inclui ponderar sobre as possíveis origens da Covid-19 e a causa da (des)estrutura para fazer a gestão dos riscos e danos dela decorrentes; nas sábias palavras de Marx, “deixar o erro sem refutação é estimular a imoralidade intelectual.
Se espera, nesse sentido, que sejamos mais exigentes com os dirigentes da nação (em todos os níveis), que sejamos mais altruístas e empáticos e especialmente, mais ricos e melhores enquanto seres humanos. Se espera uma sociedade de olhos abertos, que mirem de forma inquisitiva para aqueles que chamamos de líderes e de forma generosa para o semelhante. Se espera que a pandemia não nos mostre tão somente uma curva crescente de diagnóstico de infectados ou mortos (ou mesmo, felizmente, de curados do vírus); sejamos mais que os números dela oriundos, sejamos sim transformação, mesmo que tímida, porém que não obste a irresignação diante da incongruência social na qual estamos insertos, pois se deseja, em maioria avassaladora a retração da desigualdade e, no mínimo, o cumprimento dos princípios norteadores do Estado tal qual consta da Carta Política