Acre e município de Rio Branco devem pagar indenização por desapropriação de áreas invadidas na capital
A Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a condenação do estado do Acre e do município de Rio Branco a indenizar o espólio de uma particular pela desapropriação judicial de duas áreas invadidas em 1990, atualmente correspondentes a quatro bairros na capital acreana. A indenização foi determinada judicialmente em virtude da impossibilidade de reintegração do imóvel ao patrimônio da autora da ação.
Por unanimidade, o colegiado afastou a alegação de ilegitimidade dos entes públicos para figurarem no polo passivo do processo e concluiu, em consonância com o julgamento do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC), que o estado e o município contribuíram para o desenvolvimento e a consolidação das invasões no local, onde hoje moram milhares de famílias.
“Não há como negar, diante dos fatos delineados no acórdão recorrido, que os danos causados à proprietária do imóvel decorreram de atos omissivos e comissivos da administração pública, tanto na esfera estadual quanto na municipal, respeitadas as atribuições específicas de cada ente da federação, tendo em conta que deixou de fornecer a força policial necessária para o cumprimento do mandado reintegratório, permanecendo omissa quanto ao surgimento de novas habitações irregulares”, afirmou no julgamento o relator dos recursos especiais, ministro Gurgel de Faria.
A ação de reintegração de posse foi proposta em 1991. A autora, já falecida, alegou que várias pessoas invadiram uma fazenda e um seringal de sua propriedade, localizados em Rio Branco. Em 1993, o estado do Acre desapropriou parte da fazenda para abrigar os invasores em cerca de 800 lotes.
Em 1997, em virtude da impossibilidade de cumprimento da ordem judicial de reintegração – primeiro pela ausência de força policial e, depois, porque a proprietária já não detinha a posse do imóvel –, a ação foi convertida em processo de indenização (desapropriação indireta). No mesmo ano, o município de Rio Branco ajuizou ação de desapropriação de outra parte da área em litígio.
Longa tramitação
Em primeira instância, o magistrado condenou o município de Rio Branco a indenizar a proprietária em virtude das desapropriações e julgou o processo extinto em relação ao estado do Acre por ilegitimidade passiva. Posteriormente, o estado foi incluído no polo passivo da condenação pelo TJAC.
Por meio de recurso especial, o estado e o município discutiam pontos como a impossibilidade de conversão da ação possessória e a ilegitimidade da inclusão dos entes públicos na ação, que inicialmente havia sido proposta contra particulares.
Já o espólio discutia os critérios de avaliação do imóvel e pleiteava que a indenização fosse calculada sobre o valor atual de mercado do bem desapropriado.
O ministro Gurgel de Faria destacou inicialmente a particularidade do caso analisado, que sofreu diversas interrupções processuais e declinações judiciais de competência, em quadro apto a justificar a decisão de conversão da ação de reintegração de posse em indenização.
“Não se pode penalizar a parte autora, que, a despeito de ter conseguido a ordem judicial de reintegração desde 1991, encontra-se privada de suas terras até hoje, ou seja, há mais de duas décadas, aguardando todo o andamento do processo sem que tenha sido adotada qualquer medida concreta para obstar a constante invasão do seu imóvel, seja por falta de força policial, seja pelos inúmeros incidentes processuais ocorridos nos autos e em decorrência da ocupação coletiva consolidada na área”, apontou o relator.
O ministro também lembrou que, nas oportunidades em que analisou o tema, o STJ já se manifestou no sentido da possibilidade da conversão da ação possessória em indenizatória, em respeito aos princípios da celeridade e economia processuais, a fim de assegurar ao particular tutela alternativa àquela pleiteada inicialmente – a restituição do bem.
Função social
Em relação ao pedido de adequação do valor de indenização, o relator destacou que a Constituição Federal, ao mesmo tempo em que assegura o direito de propriedade (artigo 5º, inciso XXII), também determina que o bem deverá atender à sua função social (artigo 5º, inciso XXIII).
“Sob esses prismas, as instâncias ordinárias excluíram do cálculo da indenização as benfeitorias realizadas pelos posseiros no imóvel, bem como as melhorias urbanas efetivadas pelo poder público, a fim de evitar o enriquecimento ilícito do proprietário, que não cumpriu com a função social da propriedade”, concluiu o ministro ao manter o acórdão do TJAC.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.442.440 - AC (2014/0058286-4)
RELATOR : MINISTRO GURGEL DE FARIA
RECORRENTE : ELOYSA LEVY DE BARBOSA - ESPÓLIO
REPR. POR : JIMMY BARBOSA LEVY - INVENTARIANTE
ADVOGADOS : RODRIGO DE BITTENCOURT MUDROVITSCH E OUTRO(S) - DF026966
RODRIGO AIACHE CORDEIRO - AC002780
RECORRENTE : MUNICÍPIO DE RIO BRANCO
PROCURADOR : JAMES ANTUNES RIBEIRO AGUIAR E OUTRO(S) - AC002546
RECORRENTE : ESTADO DO ACRE
PROCURADOR : MAYLCO FIGALE MAIA E OUTRO(S)
RECORRIDO : OS MESMOS
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. REINTEGRAÇÃO
DE POSSE. CASO CONCRETO. IMPOSSIBILIDADE. INVASÃO
DO IMÓVEL POR MILHARES DE FAMÍLIAS DE BAIXA
RENDA. OMISSÃO DO ESTADO EM FORNECER FORÇA
POLICIAL PARA O CUMPRIMENTO DO MANDADO JUDICIAL.
APOSSAMENTO ADMINISTRATIVO E OCUPAÇÃO
CONSOLIDADA. AÇÃO REINTEGRATÓRIA. CONVERSÃO EM
INDENIZATÓRIA. POSTERIOR EXAME COMO
DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL. SUPREMACIA DO INTERESSE
PÚBLICO E SOCIAL SOBRE O PARTICULAR. INDENIZAÇÃO.
RESPONSABILIDADE DO ESTADO E DO MUNICÍPIO.
JULGAMENTO EXTRA PETITA E REFORMATIO IN PEJUS . NÃO
OCORRÊNCIA. LEGITIMIDADE AD CAUSAM. JUSTO PREÇO.
PARÂMETROS PARA A AVALIAÇÃO. SUPRESSÃO DE
INSTÂNCIA. CÁLCULO DO VALOR. LIQUIDAÇÃO DE
SENTENÇA.
1. O Plenário do STJ decidiu que “aos recursos interpostos com
fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de
março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade
na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça” (Enunciado
Administrativo n. 2).
2. Hipótese em que a parte autora, a despeito de ter conseguido ordem
judicial de reintegração de posse desde 1991, encontra-se privada de
suas terras até hoje, ou seja, há mais de 2 (duas) décadas, sem que
tenha sido adotada qualquer medida concreta para obstar a constante
invasão do seu imóvel, seja por ausência de força policial para o
cumprimento do mandado reintegratório, seja em decorrência dos
inúmeros incidentes processuais ocorridos nos autos ou em face da
constante ocupação coletiva ocorrida na área, por milhares de famílias
de baixa renda.
3. Constatada, no caso concreto, a impossibilidade de devolução da
posse à proprietária, o Juiz de primeiro grau converteu, de ofício, a
ação reintegratória em indenizatória (desapropriação indireta),
determinando a emenda da inicial, a fim de promover a citação do
Estado e do Município para apresentar contestação e, em
consequência, incluí-los no polo passivo da demanda.
4. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido da
possibilidade de conversão da ação possessória em indenizatória, em
respeito aos princípios da celeridade e economia processuais, a fim de
assegurar ao particular a obtenção de resultado prático correspondente
à restituição do bem, quando situação fática consolidada no curso da
ação exigir a devida proteção jurisdicional, com fulcro nos arts. 461, §
1º, do CPC/1973.
5. A conversão operada na espécie não configura julgamento ultra
petita ou extra petita, ainda que não haja pedido explícito nesse
sentido, diante da impossibilidade de devolução da posse à autora,
sendo descabido o ajuizamento de outra ação quando uma parte do
imóvel já foi afetada ao domínio público, mediante apossamento
administrativo, sendo a outra restante ocupada de forma precária por
inúmeras famílias de baixa renda com a intervenção do Município e
do Estado, que implantaram toda a infraestrutura básica no local,
tornando-se a área bairros urbanos.
6. Não há se falar em violação ao princípio da congruência, devendo
ser aplicada à espécie a teoria da substanciação, segundo a qual
apenas os fatos vinculam o julgador, que poderá atribuir-lhes a
qualificação jurídica que entender adequada ao acolhimento ou à
rejeição do pedido, como fulcro nos brocardos iura novit curia e mihi
factum dabo tibi ius e no art. 462 do CPC/1973. 7. Caso em que, ao tempo
do julgamento do primeiro grau, a lide foi
analisada à luz do disposto no art. 1.228, §§ 4º e 5º, do CC/2002, que
trata da desapropriação judicial, chamada também por alguns
doutrinadores de desapropriação por posse-trabalho ou de
desapropriação judicial indireta, cujo instituto autoriza o magistrado,
sem intervenção prévia de outros Poderes, a declarar a perda do
imóvel reivindicado pelo particular em favor de considerável número
de pessoas que, na posse ininterrupta de extensa área, por mais de
cinco anos, houverem realizado obras e serviços de interesse social e
econômico relevante.
8. Os conceitos abertos existentes no art. 1.228 do CC/2002 propiciam
ao magistrado uma margem considerável de discricionariedade ao
analisar os requisitos para a aplicação do referido instituto, de modo
que a inversão do julgado, no ponto, demandaria o reexame do
conjunto fático-probatório, providência vedada no âmbito do recurso
especial, em face do óbice da Súmula 7 do STJ.
9. Não se olvida a existência de julgados desta Corte de Justiça no
sentido de que "inexiste desapossamento por parte do ente público ao
realizar obras de infraestrutura em imóvel cuja invasão já se
consolidara, pois a simples invasão de propriedade urbana por
terceiros, mesmo sem ser repelida pelo Poder Público, não constitui
desapropriação indireta" (AgRg no REsp 1.367.002/MG, Rel.
Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em
20/06/2013, DJe 28/06/2013).
10. Situação em que tal orientação não se aplica ao caso estudado,
pois, diante dos fatos delineados no acórdão recorrido, não há dúvida
de que os danos causados à proprietária do imóvel decorreram de atos
omissivos e comissivos da administração pública, tendo em conta que
deixou de fornecer a força policial necessária para o cumprimento do
mandado reintegratório, ainda na fase inicial da invasão,
permanecendo omissa quanto ao surgimento de novas habitações
irregulares, além de ter realizado obras de infraestrutura no local, com
o objetivo de garantir a função social da propriedade, circunstâncias
que ocasionaram o desenvolvimento urbano da área e a
desapropriação direta de parte do bem..
11. O Município de Rio Branco, juntamente com o Estado do Acre,
constituem sujeitos passivos legítimos da indenização prevista no art.
1.228, § 5º, do CC/2002, visto que os possuidores, por serem
hipossuficientes, não podem arcar com o ressarcimento dos prejuízos
sofridos pelo proprietário do imóvel (ex vi do Enunciado 308
Conselho da Justiça Federal).
12. Diante da procedência parcial da ação indenizatória contra a
Fazenda Pública municipal, tem-se aplicável, além do recurso
voluntário, o reexame necessário, razão pela qual não se vislumbra a
alegada ofensa aos arts. 475 e 515 do CPC/1973, em face da
reinclusão do Estado do Acre no polo passivo da demanda, por
constituir a legitimidade ad causam matéria de ordem pública,
passível de reconhecimento de ofício, diante do efeito translativo.
13. A solução da controvérsia exige que sejam levados em
consideração os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e
da segurança jurídica, em face das situações jurídicas já consolidadas
no tempo, de modo a não piorar uma situação em relação à qual se
busca a pacificação social, visto que "é fato público e notório que a
área sob julgamento, atualmente, corresponde a pelo menos quatro
bairros dessa cidade (Rio Branco), onde vivem milhares de famílias,
as quais concedem função social às terras em litígio, exercendo seu
direito fundamental social à moradia".
14. Os critérios para a apuração do valor da justa indenização serão
analisados na fase de liquidação de sentença, não tendo sido
examinados pelo juízo da primeira instância, de modo que não podem
ser apreciados pelo Tribunal de origem, tampouco por esta Corte
Superior, sob pena de supressão de instância.
15. Recursos especiais parcialmente conhecidos e, nessa extensão,
desprovidos.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, conhecer parcialmente dos recursos especiais e, nessa extensão, negar-lhes
provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Napoleão Nunes
Maia Filho, Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina e Regina Helena Costa (Presidente) votaram
com o Sr. Ministro Relator.
Brasília, 07 de dezembro de 2017 (Data do julgamento).
MINISTRO GURGEL DE FARIA
Relator