Embriaguez do motorista, de forma isolada, não caracteriza dolo eventual em acidente com morte

Embriaguez do motorista, de forma isolada, não caracteriza dolo eventual em acidente com morte

A embriaguez do motorista, sem o acréscimo de outras peculiaridades que ultrapassem a violação do dever de cuidado objetivo, inerente ao tipo culposo, não pode servir como única premissa para a afirmação de dolo eventual.

Com esse entendimento, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria, desclassificou para crime culposo a conduta de uma motorista que foi mandada ao tribunal do júri após acidente de trânsito que resultou em morte.

A sentença de pronúncia (que submeteu a ré ao júri popular, onde responderia por homicídio com dolo eventual) foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), mas o julgamento não chegou a acontecer.

Ao analisar recurso especial da defesa, a Sexta Turma decidiu reformar o acórdão do TJSC e remeter os autos para o juízo singular julgar o processo com base no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, que trata de homicídio culposo.

Segundo o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, nos casos de acidente de trânsito com morte é possível o reconhecimento de dolo eventual desde que justificado por circunstâncias que, implícitas ao comportamento delitivo, indiquem que o motorista previu e anuiu ao possível resultado.

“Conquanto tal circunstância contribua para a análise do elemento anímico que move o agente, não se ajusta ao melhor direito presumir o consentimento do agente com o resultado danoso apenas porque, sem outra peculiaridade excedente ao seu agir ilícito, estaria sob efeito de bebida alcoólica ao colidir seu veículo contra o automóvel conduzido pela vítima”, frisou o relator.

Presunção impossível

Na concepção do ministro, quando o próprio motorista é uma das pessoas afetadas pelo crime praticado na condução de veículo, a tendência natural é concluir-se pela mera ausência do dever de cuidado objetivo.

Para Schietti, salvo exceções, “normalmente as pessoas não se utilizam desse meio para cometer homicídios e, mesmo quando embriagadas, na maioria das vezes, agem sob a sincera crença de que têm capacidade de conduzir o seu veículo sem provocar acidentes”.

O relator destacou que somente com a análise do contexto em que ocorreu o acidente, apreciação das provas e indicadores objetivos apurados no inquérito e no curso do processo seria possível aferir o elemento subjetivo do motorista.

No caso em análise, o ministro destacou que, apesar de a primeira instância e o TJSC apontarem, em tese, para o dolo eventual, devido ao possível estado de embriaguez da recorrente, não é admissível a presunção – quando não existem outros elementos delineados nos autos – de que ela estivesse dirigindo de forma a assumir o risco de provocar acidente sem se importar com eventual resultado fatal de seu comportamento.

Segundo o relator, as instâncias ordinárias partiram da premissa de que a embriaguez ao volante, por si só, já justificaria considerar a existência de dolo eventual.

“Equivale isso a admitir que todo e qualquer indivíduo que venha a conduzir veículo automotor em via pública com a capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool responderá por homicídio doloso ao causar, por violação a regra de trânsito, a morte de alguém”, disse o ministro.

Tendência perigosa

Rogerio Schietti lembrou que o procedimento do tribunal do júri tem duas etapas, a primeira destinada a “avaliar a suficiência ou não de razões (justa causa) para levar o acusado ao seu juízo natural”. O juízo da acusação, afirmou o ministro, “funciona como um filtro pelo qual somente passam as acusações fundadas, viáveis, plausíveis e idôneas a serem objeto de decisão pelo juízo da causa”.

Por outro lado, segundo Schietti, vê-se nos tribunais “uma profusão de processos relativos a delitos ocorridos no trânsito em que, trivialmente, se imputa o crime de homicídio doloso ao causador do acidente, quando se tem constatada a ingestão de bebida alcoólica, em qualquer quantidade, associada ao excesso de velocidade” – algo que, disse ele, nem mesmo ocorreu no caso em julgamento.

“Aparentemente em razão da insuficiência da resposta punitiva para os crimes de trânsito, que, invariavelmente, não importam em supressão da liberdade de seus autores, tem-se notado perigosa tendência de, mediante insólita interpretação de institutos que compõem a teoria do crime, forçar uma conclusão desajustada à realidade dos fatos”, alertou o ministro.

“Seguramente”, acrescentou, “é possível identificar hipóteses em que as circunstâncias do caso analisado permitem concluir pela ocorrência de dolo eventual em delitos viários. Entretanto, não se há de aceitar a matematização do direito penal, sugerindo a presença de excepcional elemento subjetivo do tipo pela simples verificação de um fato isolado, qual seja, a embriaguez do agente causador do resultado.”

Schietti concluiu afirmando que “a jurisdição criminal não pode, ante a deficiência legislativa na tipificação das condutas humanas, impor responsabilidade penal além da que esteja em conformidade com os dados constantes dos autos e com a teoria do crime, sob pena de render-se ao punitivismo inconsequente, de cariz meramente simbólico, contrário à racionalidade pós-iluminista que inaugurou o direito penal moderno”.

EMENTA
PENAL. PROCESSO PENAL. PRONÚNCIA. FILTRO
PROCESSUAL. PROCEDIMENTO DO JÚRI. HOMICÍDIO NA
DIREÇÃO DE VEÍCULO APÓS SUPOSTA INGESTÃO DE
BEBIDA ALCOÓLICA. AUSÊNCIA DE DISPOSITIVO DE LEI
FEDERAL VIOLADO. ART. 415, II, DO CPP.
FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA N. 284 DO STF.
EXCESSO DE LINGUAGEM. AUSÊNCIA. OMISSÕES E
OBSCURIDADES. INEXISTÊNCIA DE VÍCIO. DOLO
EVENTUAL. EMBRIAGUEZ. AUSÊNCIA DE
CIRCUNSTÂNCIAS EXCEDENTES AO TIPO.
DESCLASSIFICAÇÃO. HOMICÍDIO CULPOSO. RECURSO
ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA
EXTENSÃO, PROVIDO.
1. Incide a Súmula 284 do STF, a impedir o conhecimento do recurso
especial, no ponto em que alega deficiência da defesa técnica,
porquanto a recorrente deixou de indicar, expressamente, qual
dispositivo de lei federal teria sido objeto de violação. Igual conclusão
se chega para a alegada violação do art. 415, II, do CPP, pois a defesa
deixou de apresentar as razões recursais para elucidar de que modo tal
violação teria ocorrido.
2.Muito embora a decisão de pronúncia, dada a sua importância para o
réu, deva ser fundamentada, nos termos do inciso IV do art. 93 da
Carta Magna, impõe-se ao magistrado apontar elementos que
indiquem a existência do crime e indícios suficientes de autoria, em
linguagem sóbria e comedida, a fim de não exercer influência nos
jurados.
3. Não prospera a alegação de excesso de linguagem por ocasião da
decisão de pronúncia, visto que, ao contrário do alegado pela
recorrente, a ausência de cotejo de todas as provas produzidas nos
autos não configura nulidade, mormente quando o Magistrado aponta
apenas elementos probatórios que, na sua convicção, sustentam a
admissibilidade da acusação.
4. Consoante o disposto no art. 619 do Código de Processo Penal, a
oposição de embargos de declaração enseja, em síntese, o
aprimoramento da prestação jurisdicional, ante julgado que se afirme
omisso, ambíguo, contraditório ou com erro material. São
inadmissíveis, portanto, quando, a pretexto da necessidade de
esclarecimento, aprimoramento ou complemento da decisão
embargada, objetivam, em essência, o rejulgamento do caso.

5. É possível, em crimes de homicídio na direção de veículo
automotor, o reconhecimento do dolo eventual na conduta do autor,
desde que se justifique tal excepcional conclusão a partir de
circunstâncias fáticas que, subjacentes ao comportamento delitivo,
indiquem haver o agente previsto e anuído ao resultado morte.
6. A embriaguez do agente condutor do automóvel, sem o acréscimo
de outras peculiaridades que ultrapassem a violação do dever de
cuidado objetivo, inerente ao tipo culposo, não pode servir de
premissa bastante para a afirmação do dolo eventual. Conquanto tal
circunstância contribua para a análise do elemento anímico que move
o agente, não se ajusta ao melhor direito presumir o consentimento do
agente com o resultado danoso apenas porque, sem outra
peculiaridade excedente ao seu agir ilícito, estaria sob efeito de bebida
alcoólica ao colidir seu veículo contra o automóvel conduzido pela
vítima.
7. Não é consentâneo, aos objetivos a que representa na dinâmica do
procedimento bifásico do Tribunal do Júri a decisão de pronúncia,
relegar a juízes leigos, com a cômoda invocação da questionável regra
do in dubio pro societate, a tarefa de decidir sobre a ocorrência de um
estado anímico cuja verificação demanda complexo e técnico exame
de conceitos jurídico-penais.
8. A primeira etapa do procedimento bifásico do Tribunal do Júri tem
o objetivo principal de avaliar a suficiência ou não de razões (justa
causa) para levar o acusado ao seu juízo natural. O juízo da acusação
(iudicium accusationis) funciona como um filtro pelo qual somente
passam as acusações fundadas, viáveis, plausíveis e idôneas a serem
objeto de decisão pelo juízo da causa (iudicium causae). A instrução
preliminar realizada na primeira fase do procedimento do Júri,
indispensável para evitar imputações temerárias e levianas, "dá à
defesa a faculdade de dissipar as suspeitas, de combater os indícios, de
explicar os atos e de destruir a prevenção no nascedouro; propicia-lhe
meios de desvendar prontamente a mentira e de evitar a escandalosa
publicidade do julgamento" (MENDES DE ALMEIDA, J. Canuto.
Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: RT, 1973, p.
11).
9. A jurisdição criminal não pode, ante a deficiência legislativa na
tipificação das condutas humanas, impor responsabilidade penal além
da que esteja em conformidade com os dados constantes dos autos e
com a teoria do crime, sob pena de render-se ao punitivismo
inconsequente, de cariz meramente simbólico, contrário à
racionalidade pós-iluminista que inaugurou o Direito Penal moderno.

10. Recurso especial parcialmente conhecido e - identificada
violação dos arts. 419 do Código de Processo Penal e 302 do Código
de Trânsito Brasileiro, assim como reconhecida a apontada
divergência jurisprudencial - provido para reformar o acórdão
impugnado, desclassificar a conduta da recorrente para o crime
previsto no art. 302 do CTB e remeter os autos ao Juízo competente.

Esta notícia foi publicada originalmente em um site oficial (STJ - Superior Tribunal de Justiça) e não reflete, necessariamente, a opinião do DireitoNet. Permitida a reprodução total ou parcial, desde que citada a fonte. Consulte sempre um advogado.
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