Da entrevista reservada no interrogatório policial

Da entrevista reservada no interrogatório policial

A conversa que o advogado mantém com o preso na Delegacia de Polícia é corolário não da entrevista prévia e reservada do §5.º, art. 185 do CPP, mas sim da comunicação que é prerrogativa garantida pelo art. 7.º, inciso III da Lei 8.906/94.

Longe de se afigurar apenas em discussão meramente acadêmica, o tema entrevista reservada durante a primeira fase da persecução penal é sobremaneira tormentosa, sobretudo para os Delegados de Polícia, os quais, entendendo pela não aplicação do instituto, estarão sujeitos a suportarem a condição de autoridade coatora em mandado de segurança, e bem assim, incompreensivelmente, serem representados criminalmente por abuso de autoridade, e administrativamente em sua respectiva Corregedoria.

A dificuldade torna-se concreta quando é necessário fundamentar a decisão de não atendimento de referenciada entrevista reservada, uma vez que tanto a doutrina quanto a jurisprudência são exíguas e vacilantes a esse respeito, destinando parcas linhas de forma perfunctória ou apenas tangencialmente ao interrogatório judicial.

Inicialmente, trago à baila o art. 7.º, inciso III da Lei 8.906/94 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), o qual geralmente é invocado pelos advogados para fazer jus à pretendida entrevista reservada no interrogatório policial, complementando-se com o disposto no § 5.º, art. 185 e socorrendo-se do art. 6 º. , inciso V, ambos do CPP, em interpretação divorciada da natureza processual penal adotada pelo ordenamento pátrio.

Pois bem, aludido art. 7.º, inciso III existe desde 1994, mas somente no ano de 2009, portanto, quinze anos passados, o §5.º do art. 185 do CPP foi incluído pela Lei 11.900/09.

Citado dispositivo disciplina que, verbis:

“Em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantirá ao réu o direito de entrevista prévia e reservada com o seu defensor; se realizado por videoconferência, fica também garantido o acesso a canais telefônicos reservados para comunicação entre o defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiência do Fórum, e entre este e o preso”.

Cabe questionar, acaso antes da existência do §5º, art. 185 do CPP o juiz era obrigado a garantir entrevista prévia e reservada entre réu e defensor? E o art. 7º, inciso III da Lei 8.906/94 era simplesmente desconsiderado?

A resposta tem um fundamento técnico, ou seja, antes da Lei 10.792/03 que mudou a redação do art. 188 do CPP, mesmo o interrogatório judicial era inquisitivo, em que pese nosso sistema de persecução penal ser inquisitivo em sua primeira fase, que é a da investigação, e acusatório em sua segunda fase, aqui com a observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Não é por outro motivo que o art. 188 do CPP, com redação dada pela Lei 10.792/03, aduz que:

“Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante”.

Verifica-se claramente que esta redação tornou o interrogatório judicial integralmente contraditório, com a possibilidade de intervenção imediata do defensor e a possibilidade de reperguntas.

Com o início da entrada em vigor desse artigo muitos se arvoraram em sustentar que igual postura deveria ser estendida também no interrogatório policial, por força do art. 6º, inciso V do CPP, uma vez que a fase inquisitorial teria mudado sua natureza e deveria albergar o princípio do contraditório.

Mas é óbvio que tudo não passou de arroubos e pressa em se criar doutrina, a primeira fase da persecução penal continua inquisitiva, uma vez que essa é a dinâmica processual brasileira.

Para ter aplicabilidade os dispositivos que asseguram direitos têm de ter uma consequência caso não respeitados, e é por isso que processualmente haverá a possibilidade de sobrevir nulidade absoluta, salvo se for afastada pelo art. 563 do CPP (pás de nullitè sans grief).

Igual consequência não pode ser prevista para o interrogatório policial ante a feição do Inquérito Policial que não tem o condão de contaminar o processo, e que, por isso mesmo, não há se falar em nulidade.

De qualquer forma, embora seja direito do investigado constituir advogado ou mesmo a defensoria pública fazer as vezes (o que ainda é uma utopia no Brasil), inexiste o princípio da ampla defesa em esfera inquisitorial, à qual é constituída pela defesa técnica e autodefesa.

No entanto, resta claro que se o investigado tiver advogado, esse poderá se fazer presente e desempenhar todas as suas funções, desde que não intervenha no ato de interrogatório, isso porque não há o contraditório em sede inquisitiva (salvo o diferido), e nesse tanto incompatível falar em defesa técnica nos moldes da fase processual, e na mesma esteira, em entrevista reservada antesdo interrogatório, já que essa é própria do interrogatório judicial.

Doutrinadores conceituados entendem que na fase investigatória também há que se observar a entrevista prévia e reservada, mas os que assim lecionam enxergam o princípio do contraditório na instrução de Inquérito Policial, como a própria professora Ada Pellegrini Grinover, presidente da comissão que levou o seu nome e que apresentou sete projetos de lei (posteriormente transformados em lei) e que mudou a sistemática do interrogatório judicial, inclusive o citado § 5º, art. 185 do CPP. (disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=70407).

Escrevendo sobre a temática, consagrada processualista dissertou:

“(...) Cumpre, agora, examinar a questão de saber se a presença do defensor no interrogatório, com a entrevista prévia e reservada com o acusado, também se aplica ao interrogatório policial. A resposta só pode ser positiva (...) já escrevi, em diversas oportunidades, que a norma constitucional, garantindo o contraditório e a ampla defesa não só aos acusados em geral, mas também no processo administrativo em que haja litigantes (entendidos como titulares de conflitos de interesses), se aplica ao inquérito policial, após o indiciamento do acusado”. (Ada Pellegrini Grinover. O interrogatório como meio de defesa (Lei 10.792/03). Revista Opinião Jurídica, ano II, n.º 4. p. 14, Fortaleza, 2004).

Ora, a própria doutrinadora que cuidou de perto da minirreforma do Código de Processo Penal, argumenta que tal entrevista é pertinente também na primeira fase da persecução penal, mas a defende por meio de premissas, embora absolutamente respeitáveis, bastante particularizadas, sem contar que, repise-se, teve oportunidade de fazer valer referenciado entendimento expressamente, mas não o fez.

De volta ao art. 7º, inciso III da Lei 8.906/94, é desenganada a sua vigência e franca aplicabilidade, no entanto, a finalidade aqui é salvaguardar o direito do advogado de comunicar-se com o indivíduo (cliente) pessoal e reservadamente quando este já estiver desvestido de sua liberdade, ainda que de forma precária, mas inserto em instalação destinada a restringir sua liberdade, ou seja, numa unidade prisional civil ou militar.

Note-se que esse direito subsiste mesmo que o indivíduo esteja sob a tutela da Polícia Civil, aliás, era comum até recentemente, e em alguns lugares isso é realidade, pessoas permanecerem segregadas em celas de Delegacia de Polícia em vez de seguirem para instituição adequada como prevê a Lei de Execução Penal.

No entanto, não há se confundir o art. 7.º, inciso III da Lei 8.906/94 com o §5.º, art. 185 do CPP, pois como se depreende claramente da própria inteligência dos dispositivos, este trata do direito doréuem processo penal regulado pelo contraditório e ampla defesa, e aquele é direito do advogado.

A leitura do art. 7.º, inciso III de mencionado diploma que se encontra no capítulo que ostenta a epígrafe “Dos Direitos do Advogado” é esclarecedora:

Art. 7º São direitos do advogado:

(…)

III - Comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis

Aventada prerrogativa do advogado pode ser exercida mesmo antes do processo, como por exemplo, na fase investigativa, desde que o indivíduo por questões estruturais administrativas permaneça em cela de Unidade Policial, ou ainda por razões de logística, vencidas as três fases da prisão em flagrante (captura, lavratura do auto e recolhimento ao cárcere) deva ficar por curto lapso de tempo em cela da Delegacia até que possa ser conduzido para a Cadeia Pública.

Não se pode olvidar do disposto no art. 41 da Lei 7.210/84, in verbis:

Art. 41 - Constituem direitos do preso:

(…)

X - entrevista pessoal e reservada com o advogado.

Conduto, em face de se tratar da Lei de Execução Penal, não há dúvida de que o indivíduo se encontra formalmente encarcerado, provisória ou definitivamente, e, portanto, submetido às regras do sistema penitenciário brasileiro, sendo que a garantia aí prevista não tem a mesma teleologia da contida no § 5.º do art. 185 do CPP.

Noutro giro, chama a atenção o fato de que na redação do §5.º, art. 185 do CPP há descrição de que o réu tem direito a entrevista prévia e reservada com o seu defensor, ou seja, prévia significa antes de seu interrogatório.

De outro lado, o art. 7.º, inciso III do Estatuto da OAB não traz a expressão prévia, isso porque já não se trata de entrevista para efeito de interrogatório, mas comunicação, não sendo por outro motivo que a parte final do dispositivo sentencia: “ainda que considerados incomunicáveis”.

Por esse motivo e consoante com o que se expendeu, a rigor, a conversa que o advogado mantém com o preso na Delegacia de Polícia é corolário não da entrevista prévia e reservada do §5.º, art. 185 do CPP, mas sim da comunicação que é prerrogativa garantida pelo art. 7.º, inciso III da Lei 8.906/94.

Particularmente, entendo que a autoridade policial até possa autorizar entrevista reservada entre o advogado e o capturado em flagrante delito ou por força de cumprimento de mandado de prisão antes de sua oitiva, mas nunca como imposição legal, já que inexiste essa imperatividade, senão como ato discricionário condicionado à natureza da infração, complexidade do fato e demais circunstâncias próprias de uma cognição sumária a que está submetido o Delegado de Polícia.

Sobre o(a) autor(a)
João Romano da Silva Junior
Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá, Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura de Maringá/Paraná, Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade de Direito da FMP-RS...
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