A prescrição ânua da falta disciplinar de natureza grave na execução penal
Análise sobre a prescrição da falta disciplinar de natureza grave na execução penal, buscando nos critérios de fixação da prescrição em matéria penal, fundamentos que atendam à lógica jurídica, bem como aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
O presente artigo se propõe a analisar a prescrição da falta disciplinar de natureza grave na execução penal, sobretudo, mas não exclusivamente, após o advento da Lei nº 12.234/10, que promoveu alteração no art. 109 do Código Penal, fixando em três anos o lapso de prescrição mínimo naquele dispositivo.
O que se pretende é buscar nos critérios de fixação da prescrição em matéria penal, fundamentos que atendam à lógica jurídica, bem como aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
Como se sabe, a Lei de Execução Penal é omissa quanto ao prazo prescricional das faltas disciplinares.
A lacuna, entretanto, não implica imprescritibilidade.
Ao contrário, no ordenamento jurídico pátrio a prescrição constitui a regra, enquanto a imprescritibilidade é a exceção, cujas hipóteses encontram-se previstas expressamente na Constituição da República.
Assim, se não inclusas no rol de exceções da Lei Maior, as faltas disciplinares previstas na Lei de Execução Penal estão sujeitas à prescrição.
Restando incontestável sua existência, a questão que se apresenta subsequentemente é a de se estabelecer o prazo de prescrição da falta disciplinar.
Para tanto, impende analisar, preliminarmente, o critério utilizado pelo legislador para estabelecer os prazos prescricionais em matéria criminal.
Dispõe o art. 109, caput, do Código Penal que “a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1º do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime.”
Depreende-se do texto legal que a linha mestra na construção do instituto no Direito Penal positivado é o princípio da proporcionalidade entre o lapso prescricional e a pena abstratamente cominada para o delito.
De fato, quanto maior a pena cominada in abstrato para a infração penal, mais dilatado é o lapso prescricional.
Portanto, a mens legis é: nas condutas mais repreensíveis, seja por conta da complexidade na apuração, seja pela necessidade de reduzir a possibilidade de se deixar a conduta sem a resposta da Justiça Pública, o Estado dispõe de mais tempo para apurar, processar, julgar e punir.
Além da proporcionalidade, outro princípio igualmente importante na fixação dos prazos prescricionais é o da razoabilidade.
E, esclareça-se, não se trata de razoabilidade na acepção comum da palavra, ou seja, em seu sentido leigo, mas antes, do conceito jurídico que “atua como critério de aferição da legitimidade material dos atos praticados pelos poderes públicos, sendo que a extensão e a intensidade do controle exercido irão variar de acordo com o tipo de ato analisado. (NOVELINO, Marcelo. “Direito constitucional”. São Paulo: Método, 2011, p.196).
Qualquer que seja, portanto, o critério para se fixar o prazo prescricional da falta grave na execução penal, este deve estar em conformidade com a lei e com a Constituição da República, sob pena de invalidade.
Ressalte-se que os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade constituem máxima aplicável ao inteiro ordenamento jurídico, inclusive à execução penal. (MARCÃO, Renato. Curso de execução penal. São Paulo: Saraiva, 2012, p.32)
Em suma, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem nortear a aplicação do instituto da prescrição também na execução penal.
Ocorre que, na falta de disposição legal expressa, desenvolveu-se na doutrina e jurisprudência pátrias, entendimento no sentido de que o prazo seria de dois anos, por aplicação analógica do menor prazo previsto no art. 109 do Código Penal.
Com o advento da Lei nº 12.234/10, o referido prazo, constante do inciso VI do art. 109, passou a ser de três anos.
Há que se considerar, porém, pelo anteriormente exposto em relação aos critérios que norteiam a fixação dos lapsos prescricionais, que não é conforme o Direito a fixação do prazo de prescrição de falta disciplinar por analogia ao indigitado dispositivo do Código Penal.
Frise-se, desde logo, que não se está aqui a reputar incabível, abstratamente, o uso da analogia na espécie, até porque prevista no ordenamento jurídico penal pátrio, ou mais especificamente, no art. 3º do CPP c/c art. 2ª da LEP.
A analogia é juridicamente possível e, mais do que isso, necessária, ante o silêncio da lei, mas não a analogia proposta para aplicação dos prazos prescricionais do Código Penal.
Há entendimento, entretanto, que atende aos ditames da máxima da razoabilidade, para se servir da expressão consagrada por Alexy[1], bem como da proporcionalidade.
Trata-se da aplicação, também por analogia, do prazo prescricional do Decreto do Indulto/Comutação (por exemplo, os Decretos n.ºs 7.046/2009, 7.420/2010 e 7.648/2011).
Considere-se, v.g., o que preconiza o art. 4º do Decreto 7.648/2011:
“Art. 4º A concessão dos benefícios previstos neste Decreto fica condicionada à inexistência de aplicação de sanção, homologada pelo juízo competente, garantido o direito ao contraditório e à ampla defesa, por falta disciplinar de natureza grave, prevista na Lei de Execução Penal, cometida nos doze meses de cumprimento da pena, contados retroativamente à publicação deste Decreto.”
As razões, expostas a seguir, para a aplicação da analogia ao Decreto de Indulto/Comutação merecem ser sopesadas.
Passa-se, pois, a sua consideração.
A uma, a analogia proposta está em conformidade com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade anteriormente analisados.
A proporcionalidade e razoabilidade delimitam o âmbito de extensão do prazo prescricional que, nesta linha de análise lógica, deve ser inferior ao estabelecido para condutas tipificadas pela lei penal.
Como reconhecido até mesmo pelos defensores da prescrição bienal, as faltas disciplinares constituem “um minus em relação às infrações penais”. (MIRABETE, Julio Fabbrini. “Execução penal”. São Paulo: Atlas, 2000, p. 136)
Com efeito, usar um prazo de prescrição para uma conduta tipificada como crime, ou seja, para uma ação ou omissão a qual o ordenamento jurídico atribui caráter de alta lesividade e, concomitantemente, usar o mesmo prazo para um ‘não-crime’, isto é, uma falta disciplinar sem tipicidade formal ou material, atenta contra a proporcionalidade e razoabilidade eleitas pelo legislador como critério fundamental para o estabelecimento dos prazos prescricionais em matéria penal.
Ademais, se afigura ilógico que uma falta disciplinar de natureza grave não reconhecida pelo Judiciário no prazo prescricional de um ano não constitua óbice à concessão do indulto, que extingue a punibilidade, mas possa impedir a progressão de regime, pela interrupção do lapso temporal para obtenção do direito.
E se mesmo antes da alteração legislativa que elevou o prazo prescricional mínimo do art. 109 do Código Penal de dois para três anos, a aplicação de tal prazo à falta disciplinar se mostrava inadequada e descomedida, com muito mais propriedade assim se pode reputá-la agora.
A duas, respeita-se neste caso, o princípio da especialidade sobre o qual discorre Bobbio na mais clássica de suas obras:
Compreende-se, então, porque a lei especial deve prevalecer sobre a lei geral: ela representa um momento ineliminável do desenvolvimento de um ordenamento. Criar obstáculo à lei especial ante a lei geral significaria refrear esse desenvolvimento. (BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Martins Fontes, 2010, p.253).
A norma especial, cunhada pelo legislador especificamente para uma situação, sempre deve preponderar sobre aquela em que a subsunção ocorre apenas de forma genérica, ou até mesmo reflexa, sem a coincidência exata de contornos.
No caso em exame, o Decreto Presidencial de Indulto/Comutação trata exatamente do regramento do prazo prescricional para apreciação judicial de prática de falta disciplinar de natureza grave por sentenciado em execução de pena.
A três, inexiste óbice, do ponto de vista jurídico, à aplicação desta analogia.
De fato, não subsiste a tese de que a prescrição é matéria de ordem pública que deveria ser tratada por lei em sentido estrito e não por meio de um ato normativo infralegal.
Mesmo porque o Decreto de Indulto/Comutação ora analisado trata especificamente da matéria prescrição.
E nem se alegue que o Código Penal, por possuir natureza de lei ordinária, deve prevalecer por ser norma hierarquicamente superior em relação ao Decreto Presidencial, tendo em vista que não há hierarquia normativa para a aplicação da analogia, devendo a questão ser resolvida, mediante o estabelecimento de parâmetro consentâneo com os ditames da proporcionalidade e razoabilidade.
A quatro, respeita-se com a indigitada analogia, o espírito de um dos mais caros preceitos do Direto Penal, uma máxima principiológica que, respeitado o entendimento contrário, permeia todo o conteúdo de natureza penal, inclusive a execução: o in dubio pro reu.
No dizer de autorizada doutrina:
“Se a vontade da lei não se torna nítida, se não chegar o juiz a saber se a lei quis isso ou aquilo, ou se nem ao menos consegue determinar o que ela pretendeu, deverá seguir a interpretação mais favorável ao réu.” (JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 44)
Assim, ainda que nenhum outro fundamento fosse aceito em favor da prescrição ânua, a dúvida deveria conduzir o magistrado a decidir da forma mais favorável ao sentenciado.
A cinco, há pertinência entre a natureza jurídica do instituto e a da norma aplicada.
Como bem se manifesta a atualíssima jurisprudência do TJMG:
“Em se tratando a falta disciplinar de instituto de natureza administrativa, não se mostra viável a aplicação analógica de dispositivo de natureza penal, ainda mais com o advento da Lei 12.234/10 que aumentou o prazo prescricional inserto no art. 109, VI, do CP, de 02 para 03 anos. Assim, a analogia realizada pelo magistrado de origem, que teve como parâmetro o Decreto n.º 7.420/10, é medida que se impõe, haja vista que regula instituto igualmente de natureza administrativa, qual seja o indulto.” (TJMG -Agravo em Execução nº 1.0079.10.015172-3/001 – Rel. Des. Nelson Missias de Morais – J. 23.02.2012.)
Sabe-se que no ordenamento jurídico pátrio não se reconhece a figura do decreto autônomo, sendo este concebido somente para regulamentação da lei.
Não há aqui, entretanto, atividade legiferante[2], mas tão somente o aproveitamento de disposição que guarda pertinência em relação ao instituto da prescrição.
Por todos estes fundamentos, perfeitamente cabível a utilização, por analogia, da norma infralegal tal como proposta.
É certo que a jurisprudência majoritária é no sentido oposto, ou seja, da aplicação, por analogia do menor prazo do art. 109 do CP, para regular a prescrição da falta grave na execução penal.
Não se pode olvidar, entretanto, que o dinamismo do Direito não permite que o Julgador promova um cômodo engessamento das decisões que profere, ignorando a superveniência de novas circunstâncias fáticas e jurídicas sobre determinado tema.
Na esteira desse entendimento, a prescrição ânua da falta disciplinar grave em execução penal é a vereda inexorável da jurisprudência pátria, o que foi argutamente vislumbrado em recente curso ministrado para 80 juízes mineiros, em realização conjunta do Programa Novos Rumos do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que concluíram que “prescreve em 1(um) ano a pretensão punitiva da falta grave, por analogia ao Decreto de Indulto, de 2010, contado da consumação...” (Assessoria de Comunicação Institucional - Ascom TJMG - Unidade Goiás - (31) 3237-6568 - ascom@tjmg.jus.br)
Outrossim, a mais autorizada e atualizada jurisprudência é neste sentido. (TJMG - Agravo Execução Penal 1.0079.09.970180-1/001 - 0575121-23.2012.8. 13.0000, Relator(a) Des.(a) Eduardo Brum, Julgamento 30/05/2012. No mesmo sentido: TJMG – Agravo em Execução nº 0550948-66.2011.8.13.0000 - Relator: Des.(a) HERBERT CARNEIRO Data do Julgamento: 30/11/2011 - Data da Publicação: 14/12/2011; TJMG – PROC. 0709673-56.2011.8.13.0000 - RELATOR: DES. NELSON MISSIAS DE MORAIS – J. 23.-2.12; TJMG – Ag. Execução Penal – Proc. 1.0024.05.794101-5/001 – J. 02.05.2012.)
Não se pode admitir que a demora do Estado-Juiz, ainda que justificado pela falta de estrutura da máquina judiciária, implique prejuízo ao sentenciado, por exemplo, por suspensão do direito ao livramento condicional ante a notícia de falta grave não julgada.
O julgador não pode se furtar ao fato de que a execução penal, como os demais ramos do Direito, se encontra entrecortada, no Estado Democrático de Direito, pelo valor superior dos direitos fundamentais garantidores do direito à liberdade. (BARROSO, Luís Roberto. “Curso de Direito Constitucional Contemporâneo”. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 381.)
CONCLUSÃO
O Direito Penal hodierno - latu sensu, o que inclui o direito instrumental e a execução - não se coaduna com o Estado meramente punidor, fulcrado em vetustas concepções punitivas divorciadas da premissa da reintegração social, que consubstancia o próprio conceito de execução penal, nos termos do art. 1º da LEP.[3]
Seja, pois, pela natureza do instituto ou pela aplicação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, ou, ainda, por qualquer outro fundamento acima exposto, uma análise atenta ao dinamismo do Direito e embasada no rigor técnico aponta para a prescrição ânua da falta disciplinar grave em execução penal como o entendimento mais justo e equânime.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. “Teoria de los derechos fundamentales”. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993
BARROSO, Luís Roberto. “Curso de direito constitucional contemporâneo”. São Paulo: Saraiva, 2010
BOBBIO, Norberto. “Teoria geral do direito”. São Paulo: Martins Martins Fontes, 2010
JESUS, Damásio E. de. “Direito penal”. São Paulo: Saraiva, 2009
MARCÃO, Renato. “Curso de execução penal”. São Paulo: Saraiva, 2012
MIRABETE, Julio Fabbrini. “Execução penal”. São Paulo: Atlas, 2000
NOVELINO, Marcelo. “Direito constitucional”. São Paulo: Método, 2011
[1] ALEXY, Robert. “Teoria de los derechos fundamentales”. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 112.
[2] Segundo Maximiniano, citado por Damásio, “o processo analógico não cria direito novo, mas descobre o já existente e integra a norma estabelecida, o princípio fundamental, comum ao caso previsto pelo legislador”. (JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 44)
[3] “O regime disciplinar, por seu turno, tem visado a conquista da obediência pelo império da punição, sem a tônica da preocupação com o despertar do senso de responsabilidade e da capacidade de autodomínio do paciente. (Diário do Congresso Nacional, Suplemento ao nº 61, de 6-4-76, p. 6).” (in MIRABETE, Julio Fabbrini. “Execução penal”. São Paulo: Atlas, 2000, p. 135)