Resolução de acordo de acionistas por quebra da affectio societatis
Análise sobre o conceito da Affectio Societatis, sua aplicação e utlização pela doutrina e pela jurisprudência pátrias, especificamente no tema da resolução dos acordos de acionistas.
INTRODUÇÃO
Na sociedade anônima, os direitos e obrigações dos sócios são delineados de acordo com a fonte da qual emanam. Destarte, podem ser consideradas como de origem legal, estatutária ou parassocial.
O Acordo de Acionistas se insere na última das fontes citadas, ou seja, como derivado de fonte parassocial. O Acordo é, assim, fonte de geradora de obrigações para seus signatários. Como afirma Carvalhosa e Barbi[1], o Acordo de Acionistas é “o principal instrumento que o direito societário brasileiro reservou para a estabilização de posições acionárias.”
No Acordo podem ser objeto de composição o exercício do direito de voto e a alienação de ações; pode haver composição quanto à maneira como será votada determinada matéria; contratação quanto à alienação de suas ações a determinados investidores, concessão de direito de preferência, etc. Em suma, a única matéria proibida no Acordo é a venda do voto.
1 – Acordo de Acionistas
Quanto às obrigações contidas no Acordo de Acionistas, a Lei 6.404/76, no seu artigo 118[2] estipula algumas hipóteses de obrigações que são por ela reguladas, desde que arquivado o Acordo na sede da companhia. São estas: a) compra e venda de ações; b) preferência para as adquirir; c) exercício do direito de voto; d) exercício do poder de controle.
Nestes casos, os acionistas têm, por lei, a garantia da proibição da companhia de praticar atos contrários ao acordado entre as partes, além da possibilidade do prejudicado requerer a execução judicial específica das obrigações contratadas. Portanto, as próprias companhias estão obrigadas por lei a cumprir o estipulado no Acordo, desde que cumpridos os requisitos acima.
Na verdade o próprio presidente da assembléia geral, o presidente do conselho de administração ou da diretoria com competência para deliberar não poderá computar voto de acionista em desacordo com qualquer cláusula do Acordo. Para que seja suprida a declaração de vontade do titular do direito ao voto será necessária execução específica. Nos casos em que ocorre voto em branco, abstenção ou ausência à reunião o direito de voto poderá ser exercido por outro acionista ou administrador com base no Acordo.
Nas demais obrigações contratadas entre os sócios que não aquelas descritas na Lei 6.404/76, ao sócio prejudicado só lhe resta buscar o ressarcimento em perdas e danos.
Os acionistas vinculados ao Acordo poderão ainda estabelecer um Representante do Acordo, que servirá de interlocutor entre aqueles e a companhia no que se refere a dúvidas e questionamentos, servindo também como garantia de eficácia do instrumento societário.
Estabelecidos os pressupostos básicos e linhas gerais relativos ao Acordo de Acionistas, passamos a tratar da Affectio Societatis.
2. Affectio Societatis
O termo Affectio Societatis pode ser considerado como um elemento subjetivo que necessita estar presente nos contratos de sociedade exprimindo uma relação fraterna entre os sócios, ou seja, a própria vontade de ser sócio, como diria Bonfante[3]. Este termo se definiria como uma vontade de colaboração mútua e de mútua estima entre os sócios, vontade de cooperação ou dever de cooperação. Esta a definição clássica de Affectio Societatis.
2.1 – Origem no Direito Estrangeiro
Esta expressão teve origem, como nos conta Novaes França[4], no direito romano, em famoso texto de Ulpiano (Dig., L. 17, Tít. II, 31), onde aparece como traço distintivo da sociedade em relação à comunhão ou condomínio (affectione societatis), no entanto, embora não tenha sido utilizada a expressão, a noção de affectio já se encontrava na jurisprudentia (Gaio, Institutas, III, 151), assim como nos escritos imperiais (Diocleciano, Codex 4, 37, 2).[5]
De acordo com Arangio Luiz[6], a affectio é um “consensus, mas não instantâneo e sim prolongado, um estado de ânimo continuativo, a perseverança no mesmo acordo de vontades”. Sendo assim, a expressão surgiu como pretenso elemento constitutivo ou genético do contrato de sociedade implicando numa intenção comum, cuja cessação acarretaria a imediata extinção do contrato.
Esta a diferença entre o termo affectio e o consensus observado na origem dos contratos em geral. Enquanto neste (consensus) o animus não precisaria ser continuamente renovado uma vez estabelecida a relação jurídica, na societas, deveria prevalecer um estado de ânimo prolongado, manifestando os contratantes da sociedade o seu consentimento continuamente, sob pena de rompimento do vínculo contratual, em caso de ausência da affectio.
Portanto, do sistema jurídico romano temos o registro de Ulpiano de que a sociedade se dissolveria por causas relativas às pessoas, às coisas e à vontade e ações dos sócios. Com relação às pessoas por perda da liberdade ou da cidadania; quanto às coisas, quando os bens coletivos se perdessem; à vontade dos sócios, através da renúncia e do distrato; e às ações dos sócios quando mudassem as condições de execução da sociedade, afetando o ânimo continuativo.[7]
Destarte, o desaparecimento entre os sócios da affectio societatis, como consequência de desavenças entre estes que impossibilitavam a sociedade de cumprir seu fim social eram causas de dissolução da sociedade.
2.2 – Origem no Direito Brasileiro
No direito brasileiro, o Código Comercial, hoje parcialmente revogado, em seu artigo 336 abriu a possibilidade de qualquer sócio requerer a dissolução da sociedade antes do período determinado no contrato, restando comprovada a impossibilidade da sociedade cumprir seu fim social, seja pela perda ou insuficiência de seu capital social ou falta da affectio societatis em virtude de divergência grave entre os sócios:
“Art. 336 - As mesmas sociedades podem ser dissolvidas judicialmente, antes do período marcado no contrato, a requerimento de qualquer dos sócios:
1 - mostrando-se que é impossível a continuação da sociedade por não poder preencher o intuito e fim social, como nos casos de perda inteira do capital social, ou deste não ser suficiente;
2 - por inabilidade de alguns dos sócios, ou incapacidade moral ou civil, julgada por sentença;
3 - por abuso, prevaricação, violação ou falta de cumprimento das obrigações sociais, ou fuga de algum dos sócios.”
2.3 – Substituição da Affectio Societatis pelo conceito de “fim social”
Na nossa doutrina é Novaes França[8] quem defende a substituição do conceito de affectio societatis pelo conceito de “fim comum”, julgando aquele ultrapassado, citando, inclusive, sua ausência entre a legislação dos países mais tradicionais como Alemanha, Itália, Portugal, Suíça e Espanha, cujas ordens jurídicas nada tratam a respeito, com única exceção à França onde a jurisprudência faz diversas referências ao instituto, embora a doutrina alhures saliente a ambiguidade do termo e “propugnem por uma teoria objetiva”.
Segue abaixo o raciocínio deste autor a respeito dos efeitos da affectio societatis em comparação com o de fim comum[9]:
“...a noção de affectio societatis é imprecisa e equívoca, pois: (i) a intenção ou desejo da parte contratante é elemento que, frente à declaração de vontade externada pelo agente (CC, art. 112), se traduz em dado juridicamente irrelevante; (ii) a intenção ou desejo de o agente associar-se em sociedade não determina nem a conclusão do contrato nem sua extinção, pois o que pode ter esses efeitos, é somente a sua declaração de vontade; (iii) a declaração de vontade na celebração do contrato de sociedade em nada difere da declaração de vontade exigida na conclusão de qualquer contrato, sem uma conformação especial; (iv) as diferenças que existem entre o contrato de sociedade e outras figuras contratuais , assemelhadas ou não, não estão na conformação do elemento volitivo dos agentes, mas sim na causa do contrato e, de maneira mais específica, na existência de escopo comum, que permite enquadrar a sociedade entre as organizações finalísticas; e (v) o que permite diferenciar, em cada caso, a existência de contrato de sociedade ou de outras figuras não é o consenso, mas o negócio jurídico plurilateral de fim comum ao qual se tenha dirigido o consenso.”
No Brasil, esta alegada substituição de um termo por outro parece se evidenciar pelos comandos normativos prescritos pelo artigo 1.034, do Código Civil de 2002 e pelo artigo 206, II, “b” da Lei das Sociedades Anônimas:
“Art. 1.034. A sociedade pode ser dissolvida judicialmente, a requerimento de qualquer dos sócios, quando:
(...)
II - exaurido o fim social, ou verificada a sua inexeqüibilidade.
“Art. 206. Dissolve-se a companhia:
(...)
II - por decisão judicial:
(...)
b) quando provado que não pode preencher o seu fim, em ação proposta por acionistas que representem 5% (cinco por cento) ou mais do capital social; (grifos nossos).
3 – Affectio Societatis e Autonomia da Vontade
Na leitura atual da affectio societatis, este conceito tem-se situado como modalidade do princípio constitucional da autonomia da vontade (art. 5º, XX, CF/88), se aplicando especificamente aos contratos associativos ou plurilaterais, entre os quais os contratos de sociedade e os acordos parassociais (acordo de acionistas):
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;
(...)”
Os contratos parassociais (acordo de acionistas,por exemplo) descrevem interesses convergentes, porém são também considerados contratos pessoais ou intuitu personae, pois as características particulares de cada sócio exercem um peso nas decisões a serem tomadas na sociedade.
Tendo em vista tal previsão constitucional do tema, a affectio societatis deixa de possuir valor em si mesma, passando a ser objeto da avaliação do ordenamento jurídico e subordinada aos seus princípios norteadores; sejam os princípios fundamentais da República (arts. 1º e 3º, CF/88), sejam aqueles afetos à atividade econômica (art. 170, CF/88). Daí a permissão de, em eventual desequilíbrio ocorrido pelo mau exercício da autonomia da vontade no seio da sociedade ensejar a revisão de cláusulas contratuais e estatutárias que estejam em desacordo com estes princípios constitucionais.
Estas prescrições dão azo à tutela de expectativas tanto de ordem pessoal, como seria o caso das correspondentes ao direito de participação nas reuniões e assembléias sociais, mesmo quando o sócio não possui direito a voto, e o direito à obtenção de informações relativas à condução dos negócios da mesma. Como expectativas de ordem patrimonial tuteladas constitucionalmente, podemos citar o recebimento de parcela no lucro auferido pela sociedade e a adequada apuração dos haveres do sócio em caso de exclusão ou liquidação da sociedade.
4. Affectio Societatis nas Sociedades Anônimas
Embora a doutrina se refira com tanta eloquência à presença da affectio apenas nas sociedades limitadas, onde prevaleceria o contrato de sociedade intuitus personae, a affectio societatis é elemento fundamental na comunhão de interesses componente do contrato de sociedade e pode estar presente em qualquer tipo societário, inclusive entre as sociedades anônimas, embora ainda se argumente que estas seriam sociedades exclusivamente de capitais (intuitus pecuniae).
Iniciamos nossa argumentação partindo da premissa de que “não é a forma societária que determina a substância do fenômeno associativo, mas sim as circunstâncias reais que lhe dizem respeito”.[10] Desta afirmação podemos chegar à conclusão de que, embora a intensidade do conceito de Affectio seja maior em algumas sociedades que em outras, a relação estabelecida pelo Acordo de Acionistas é baseada na affectio societatis, e, desaparecendo esta, como consequência, também desapareceria ou melhor, se resolveria o próprio contrato de sociedade.
Destarte, deve-se ter em mente que, a interpretação dos fatos ocorridos no seio da sociedade deve ser feita de acordo com os aspectos substanciais ou subjetivos ocorridos no fenômeno associativo, e não se limitar apenas aos aspectos formais previstos no Estatuto ou Contrato Sociais.
A este respeito vejamos o magistério de Fábio Konder Comparato: Neste sentido o precioso magistério de Fábio Konder Comparato[11]:
“A affectio societatis é, portanto, não um elemento exclusivo do contrato de sociedade, distinguido-o dos demais contratos, mas um critério interpretativo dos deveres e responsabilidades dos sócios entre si, em vista do interesse comum. Quer isto significar que a sociedade não é a única relação jurídica marcada por esse estado de ânimo continuativo, mas que ele comanda, na sociedade uma exacerbação do cuidado e diligência próprios de um contrato bona fidei. Em especial, o sócio que descumpre disposição estatutária e, sobretudo, contratual (pois a relação convencional é mais pessoal e concreta que a submissão a normas estatutárias), como é o caso de acordos de acionistas numa sociedade anônima, pratica falta particularmente grave sob o aspecto da ética societária; ele se põe em contradição com sua anterior estipulação ou declaração de vontade, revelando-se pessoa pouco confiável enquanto sócio (venire contra factum proprium)”.
4.1 – Boa-Fé nos Contratos Associativos
Outro importante aspecto a ser considerado na interpretação do instituto em tela nas sociedades é a boa-fé (bonae fidei) - que exige o respeito à palavra dada e aos entendimentos havidos para consecução e realização do acordo, a qual é aplicável a qualquer negócio jurídico, sobretudo àqueles onde é prevalecente a característica já descrita de serem intuitu personae, como é o caso das sociedades e dos pactos parassociais conforme já salientamos.
Aduzimos excerto de Antônio Junqueira de Azevedo[12]:
“Finalmente, vale salientar que os pactos parassociais levam à acentuação do elemento pessoal, inclusive nas chamadas sociedades de capitais, como a anônima. Esse ponto é importante para o caso em exame, pois acentua o papel da boa-fé.”
O acordo de acionistas, ao igual dos contratos de sociedade, portanto, poderá ser resolvido em função da quebra da affectio societatis por não observância da boa-fé entre os convenentes, visto que o elemento fundamental nesta relação contratual, qual seja, a vontade e/ou esforço conjunto para a consecução de um objetivo comum, foi perdido.
Como decorrência do que afirmou Arangio Luiz “consensus prolongado”, a quebra por uma das partes contratantes de apenas uma das obrigações acertadas, gera o rompimento do vínculo entre as partes, podendo, inclusive, abranger situações anteriores à ocorrência do descumprimento.
Nestes casos, poderá ser resolvido o acordo apenas em relação ao sócio inadimplente da obrigação, ou mesmo ocorrer a resolução de todo acordo, caso não seja possível a continuidade do negócio em virtude de desvirtuação do fim ou objetivo comum anteriormente perseguido.
É o que assevera Modesto Carvalhosa[13]:
“E essa dissolução pode ser parcial ou total, como referido. Tanto mais em se tratando o acordo de voto e de controle de típicos contratos plurilaterais. Pode, portanto, a parte requerer a dissolução parcial, permanecendo a avença íntegra quanto aos demais convenentes. No caso, porém, de se tornar inviável o acordo com retirada de parte que, v.g., compõe majoritariamente o controle comum, o efeito será o de dissolução do próprio pacto por incompatibilidade de exercício do objeto.”
5. Resolução do Acordo de Acionistas
Como todos os contratos que têm por base a comunhão de esforços para a consecução de um fim comum (affectio), para que ocorra a resolução do acordo de acionistas é necessário que vontade individual de um ou mais dos sócios entre em conflito insuperável com a dos demais de forma a inviabilizar a consecução do objetivo coletivo idealizado inicialmente.
Como aduz Leães[14]:
“No acordo de comando a resolução integral será admissível quando o desentendimento entre os acionistas é de tal ordem que compromete completamente a gestão conjunta da companhia ao longo do tempo planejado no ajuste.”
5.1 – Jurisprudência anterior ao novo Código Civil de 2002
O entendimento da doutrina e da jurisprudência em relação à dissolução da sociedade, aplicável por extensão à resolução dos acordos de acionistas, quando ainda vigoravam os Códigos Civil de 1916 e Comercial de 1850 observa que o que acarreta a dissolução da sociedade não seria a mera divergência entre os sócios, mas aquela capaz de inviabilizar a consecução do fim social objetivado pela mesma.
Veja-se no Superior Tribunal de Justiça:
"Direito Comercial. Sociedade Por Cotas De Responsabilidade Limitada. Fim Da Affectio Societatis. Dissolução Parcial. Possibilidade.”
I – A affectio societatis, elemento específico do contrato de sociedade comercial, caracteriza-se como uma vontade de união e aceitação das áleas comuns do negócio. Quando este elemento não mais existe em relação a algum dos sócios, causando a impossibilidade da consecução do fim social, plenamente possível a dissolução parcial, com fundamento no art. 336, I, do CCO., permitindo a continuação da sociedade com relação aos sócios remanescentes. II – Agravo Regimental improvido" (STJ, 3a T., Rel.Min. Cláudio Santos, AGA 90995/RS, DJ 15/04/96, p. 11531).
Outro exemplo:
"Processo Civil e Comercial. Recurso especial. Admissibilidade. Sociedade Anônima. Dissolução”:
Ruptura da affectio societatis constitui questão que apresenta contornos fáticos, atraindo, assim, a incidência da Súmula n.º 07. A falta de lucratividade ajusta-se à hipótese de dissolução do art. 206, II, "b", da Lei de Sociedades Anônimas, desde que reponte o malogro no intento de lucro, o que não foi reconhecido pelo acórdão, deixando o fundamento em que se estabeleceu entrever causa conjuntural. Recurso não conhecido. (STJ – Terceira Turma – Rel. Min. Costa Leite – D.J. Publ. 03 de agosto de 1998.)
Cumpre lembrar que, assim como a dissolução da sociedade, a resolução do acordo de acionistas somente se opera mediante prova do alegado, ou seja, mediante materialização do fato, ato ou conduta contrária à manutenção do pacto obtida mediante sentença judicial transitada em julgado ou sentença arbitral definitiva, não se operando, portanto, em função da exclusiva vontade ou manifestação das partes.
5.2 – Jurisprudência posterior ao Código Civil de 2002
Embora a jurisprudência relativa à dissolução de sociedade seja farta quanto à aplicação da affectio societatis não se pode dizer o mesmo quanto ao acordo de sócios e a quebra da affectio societatis.
Em sede de Superior Tribunal de Justiça, apenas uma decisão serve de referência para nossa pesquisa.
Trata-se do caso de empresa gaúcha que pleiteou a resolução do acordo de acionistas anteriormente firmado com outra empresa e que vinha sendo reiteradamente descumprido o que gerou a lavratura do acórdão no REsp 388.423-RS, da lavra do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira.
Para tanto a requerente solicitou a execução do acordo, conforme mandamento do artigo 118, §3º da Lei 6.404/76, para que o judiciário declarasse a cessação dos efeitos do acordo ex nunc. Ocorre que, tanto a sentença de primeiro grau, como o acórdão que julgou a apelação conferiram efeitos ex tunc ao pedido, o que foi corrigido em sede de recurso especial, por não retratar o objetivo do diploma legal, que não permite a restituição das partes ao seu estado anterior, ou seja, aquele da celebração do acordo.
Observou ainda categoricamente o Ministro Sálvio Teixeira que, neste caso ocorreu inequívoca quebra da affectio societatis por conduta imprópria e não condizente com o acordo firmado anteriormente.
Vejamos:
“(...)
Ora, então, aqui, a quebra da affectio societatis, por conduta rematadamente emergente de um dos partícipes outra coisa não significa senão inequívoco inadimplemento da mais básica, mais óbvia e mais relevante obrigação contratual.
(...)
É que, aqui, no contrato plurilateral, tal como está no art. 1.420, C. Civil Italiano, e que a doutrina enfatiza, as prestações dirigem-se à obtenção de um fim comum.
Quando algum dos contraentes põe-se refratário ao fim comum e chega ao ponto de impedir a atuação dos demais, como pretender que não está se inadimplindo ao contrato plurilateral?”
No julgado temos ainda a citação de eminentes juristas que se manifestam a respeito da aplicação do artigo 118;§3º:
“O acordo de acionistas é, ensina Modesto Carvalhosa ("Acordo de Acionistas", Editora Saraiva, 1984, n. 1, pág. 9), "um contrato submetido às normas comuns de validade de todo o negócio jurídico privado, concluído entre acionistas de uma mesma companhia, tendo por objeto a regulação do exercício dos direitos referentes a suas ações, tanto no que se refere ao voto como à negociabilidade das mesmas". Destaca aquele ilustre comercialista que "tais ajustes visam à composição dos interesses particulares de acionistas no seio da companhia".
Entendendo que o instituto reclama conceituação de maior amplitude, o talentoso e prematuramente falecido Celso Barbi Filho ("Acordo de Acionistas", Editora Del Rey, 1993, n. 1, pág. 42) por sua vez o define como "um contrato entre acionistas de uma mesma companhia, distinto de seus atos constitutivos, e que tem como objeto o exercício dos direitos decorrentes da titularidade das ações". A ampliação do conceito, aqui, se daria na possibilidade de que o acordo não ficasse restrito exclusivamente ao direito de voto e à negociabilidade das ações, podendo abranger outros direitos decorrentes da titularidade das ações.”
Entende o eminente Ministro que, num contrato parassocial, não há qualquer possibilidade de extinção por resilição unilateral, somente sendo possível a resolução em virtude de quebra da affectio societatis, o que aconteceu neste caso.
E conclui o magistrado asseverando a justeza da decisão recorrida que decretou a resolução do acordo:
“De concluir-se, portanto, que o acórdão que decretou a resolução do acordo de acionistas, fundando-se na quebra da affectio societatis, com alicerce na deslealdade e no conjunto de atitudes incompatíveis com o dever de cooperação, inclusive a vedação do acesso do representante da recorrida às dependências da Companhia, declarando, nessa linha, a inviabilidade da continuidade na vigência do ajuste, não pratica violação à lei federal de índole infraconstitucional, não logrando ser acolhido o apelo, no particular.”
CONCLUSÃO
Destarte, em conformidade com a doutrina e jurisprudência brasileiras, ao confirmar a solução judicial adotada pelo Tribunal recorrido — no sentido de dar procedência à pretensão resolutória — a decisão do Superior Tribunal acolheu: (i) indiretamente, a existência de affectio societatis nas sociedades anônimas, sem a necessidade discussão sobre sua discutível qualificação como “sociedades de capital”, nas quais não seria relevante a pessoalidade dos sócios; (ii) a aplicação ao acordo de acionistas dos princípios de Direito Societário e de certos elementos do contrato de sociedade, à luz de sua natureza plurilateral e de contrato associativo; (iii) a possibilidade de se resolver o acordo de acionistas, ainda que com relação a um sócio ou grupo de sócios (considerando sua plurilateralidade), por quebra da affectio, sobretudo em função da atuação do princípio constitucional de liberdade de associação.
BIBLIOGRAFIA
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COMPARATO, Fábio Konder. Novos Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial. Rio de Janeiro. Forense, 1981.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 3: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. 25 ed. reformulada. São Paulo: Saraiva, 2009.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Volume 5: Direito das Obrigações 2ª parte. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
NUNES, Rizzatto. Manual da Monografia Jurídica: Como se faz: uma monografia, uma dissertação, uma tese – 6 ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008.
RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, volume 3: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade. 30 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
[1] Apud COELHO, Fábio Ulhôa. Curso De Direito Comercial – 14 ed. – São Paulo: Saraiva, 2010, p. 326.
[2] Art. 118. Os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de suas ações, preferência para adquiri-las, exercício do direito a voto, ou do poder de controle deverão ser observados pela companhia quando arquivados na sua sede.
[3] Apud LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Resolução de Acordo de Acionistas por quebra de Affectio Societatis in Direito Societário (S/A e Mercado de Capitais).
[4] NOVAES FRANÇA. Temas de Direito Societário, Falimentar e Teoria da Empresa.
[5] LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. op. cit. p. 444.
[6] Apud LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. op. cit. passim.
[7] Op. cit. p. 445. Do correspondente em latim: “societas solviturex personae, ex rebus, exvoluntate, exactione (ideoquesive homines sive res sivevoluntassiveactiointerierit, distrahividetur societas). Intereunt autem homines quidem (máxima aut media) capitis deminutioneaut morte: res vero, cum autnullaerelinquanturautcondicionemmutaverint; nequeenimeius rei, quae iam nullasit, quisquamsocieus est, nequeeiusquaeconsecratapublicatave sit. Voluntatedistrahitur societas renuntiatione” ( Ulpiano, 31 ad ed., in D. 17, 2, 63 §10).
[8] Op. cit. p. 61.
[9] Op. cit. PP. 61, 62.
[10] MENEZES, Maurício Moreira Mendonça de. Resolução de Acordo de Acionistas com Base na Quebra da Affectio Societatis in Revista Trimestral de Direito Civil v.23 jul-set/2005, p.153.
[11] COMPARATO, Fábio Konder. Novos Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial. Rio de Janeiro. Forense, 1981, pp. 39-40.
[12] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo, Saraiva, 2009, pp. 125 e ss.
[13] CARVALHOSA. Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas: Lei 6.404, de 15.12.1976, 2º vol., São Paulo, Saraiva, 2003, pp. 555 e ss.
[14] Op. cit. p. 451.