Dispositivos antifurto nos caixas eletrônicos e seus reflexos penais

Dispositivos antifurto nos caixas eletrônicos e seus reflexos penais

Reflexão jurídico-penal sobre este modus operandi de furto qualificado, e os dispositivos antifurto.

Há aproximadamente um ano no Brasil, criminosos passaram a se dedicar a uma nova modalidade de conduta criminosa, consistente em causar a explosão de terminais eletrônicos de autoatendimento, disponibilizados pelas mais variadas instituições bancárias, destinados à comodidade de seus clientes, com a finalidade de subtraírem cédulas de papel moeda que os abastecem.

Dados não oficiais apontam que o mencionado modus operandi está em franca ascensão. No Estado de São Paulo, foram contabilizados, até o mês de maio de 2011, ao menos 57 (cinquenta e sete) “ataques a caixas eletrônicos”. Esta modalidade criminosa, que pode ser tipificada no artigo 155, parágrafo quarto, inciso I, do Código Penal (furto qualificado), passou a acarretar considerável prejuízo econômico às instituições bancárias e aos empresários, que contam com a presença de terminais eletrônicos de autoatendimento na sede de seus estabelecimentos comerciais (postos de abastecimento de combustíveis, mercados varejistas, drogarias etc.), uma vez que as explosões por vezes danificam diversos bens além dos equipamentos bancários.

Diante deste cenário criminoso, as instituições bancárias passaram a fazer uso de ofendículos com vistas a inibir essas ações delitivas, que em regra são praticadas por grupo de pessoas, fato que pode configurar o delito de quadrilha ou bando (artigo 288, do Código Penal) ou a qualificadora prevista no inciso IV, do parágrafo quarto, do artigo 155, do Código Penal, a depender da hipótese.

Conforme amplamente veiculado pela imprensa nacional estão sendo adotados dois tipos distintos de equipamentos que buscam impedir o acesso dos criminosos às cédulas de papel moeda acondicionadas no interior dos terminais eletrônicos de autoatendimento.

Primeiramente, destaca-se o invento de um brasileiro, que uma vez associado ao caixa eletrônico, é acionado para destruir as cédulas de papel moeda, no caso de qualquer tentativa de violação do equipamento bancário. Outro tipo de dispositivo, que vem sendo utilizado com maior frequência, mancha as cédulas de papel moeda com um pigmento de coloração rósea.

Esta segunda modalidade de ofendículo vem sendo utilizada em larga escala. Até o início do mês de junho de 2011, dos 175.000 (cento e setenta e cinco mil) terminais eletrônicos de autoatendimento espalhados por todo Brasil, cerca de 12.000 (doze mil) já contam com este dispositivo, fato que acarretou a danificação de mais de 75.000 (setenta e cinco mil) cédulas de papel moeda.

As instituições bancárias começaram a fazer o emprego destes dispositivos sem amparo legislativo ou regulamentar. Somente em 1º de junho de 2011, o Banco Central do Brasil, por intermédio da Resolução n. 3.981, regulamentou minimamente a questão ao dizer em seu artigo 1º que: “as instituições financeiras detentoras de conta Reservas Bancárias ou Conta de Liquidação, ao receberem cédulas inadequadas à circulação com suspeita de dano provocado por dispositivo antifurto, deverão retê-las e recolhê-las ao Banco Central do Brasil”.

A partir disto, a conduta do agente que coloca em circulação cédula de papel moeda danificada por dispositivo antifurto poderá ser tipificada no crime de moeda falsa (artigo 289, parágrafo segundo, do Código Penal), uma vez que a norma determina que a cédula que apresenta esta condição deve ser retida e recolhida ao Banco Central. Não se pode olvidar de que a crescente escalada do furto qualificado aos caixas eletrônicos refletirá no aumento de incidência do crime de moeda falsa, uma vez que na atualidade criminosos detém conhecimento de técnicas avançadas de lavagem química de papel moeda, fato há muito constatado por profissionais dedicados à documentoscopia: “o novo padrão monetário nacional, o Real, lançado em julho de 1994, devido a sua estabilidade e cotação principalmente frente ao dólar norte-americano, despertou grande interesse nos falsificadores por essas novas cédulas o que, combinado com a evolução das técnicas de impressão, fez com que aumentasse o número de ocorrências de papel moeda falso, concomitante ao emprego, por nós observados, de novas e modernas técnicas gráficas nas falsificações” (SIENA, Olga Maria Pimentel Barbosa de. Falsificação em papel moeda em cédulas de real no Estado de São Paulo. 2002. 68 f. XVIII Curso Superior de Polícia. Academia Nacional de Polícia, São Paulo. 2002, p. 6).

O artigo 20, da Constituição Federal, não elencou, de forma expressa, a moeda como um dos bens pertencentes à União. Por outro lado, em seu artigo 21, inciso VII, estabelece ser de competência da União a emissão de moeda, e em seu artigo 22, inciso VI, definiu como competência privativa da União legislar sobre sistema monetário e de medidas, títulos e garantias dos metais. Afinal, a quem pertence as cédulas de papel moeda? Pertenceriam às instituições bancárias, enquanto detentoras do numerário em seus caixas eletrônicos, ou à União Federal? Apesar do eloquente silêncio constitucional e legislativo, vozes autorizadas da doutrina afirmam que a cédula de papel moeda é um bem pertencente à União. BOTELHO brilhantemente concluiu que: “a moeda pertence à União e o seu valor intrínseco ao particular, nos exatos termos dos artigos 98 e 99 do Novo Código Civil. Assim, se a própria pessoa rasga, suja, destrói, inutiliza, papel-moeda ou metálica, ainda que seja de sua propriedade estará configurado o crime de dano qualificado, previsto no artigo 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal Brasileiro” (BOTELHO, Jéferson. Rasgar papel moeda é crime ou apenas um ato de loucura. Revista Consultor Jurídico, 22 de outubro de 2008. Disponível em http://www.conjur.com.br/2008-out22/rasgar_papel_moeda_crime_ou_apenas_ato_loucura. Acesso em: 1º de junho de 2011).

Partindo-se da premissa de que a cédula de papel moeda é um bem pertencente à União surge o principal questionamento. Os representantes das instituições bancárias ao empregarem os dispositivos antifurto, que danificam as cédulas, praticariam o crime de dano qualificado (artigo 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal) ou estariam amparados por alguma causa excludente de antijuridicidade?

Possivelmente, a doutrina tradicional solucionaria o caso em tela identificando para a hipótese a presença de uma causa excludente de antijuridicidade. E ainda, se dividiria sobre qual causa excludente deveria incidir para justificar a ação dos representantes dos estabelecimentos bancários – legítima defesa preordenada (predisposta) ou exercício regular de direito. Sobre este particular aspecto GARCIA ensinava que: “muito se tem questionado sobre a legitimidade dos processos de defesa predispostos à preservação dos bens materiais: engenhos mecânicos, correntes elétricas de alta voltagem, detonadores automáticos em cofres, etc., que produzem lesões ou a morte do larápio eventual. Há quem ponha em dúvida a ocorrência, aí, do requisito da atualidade da agressão e também se discute o assunto sob os aspectos da necessidade e da moderação. Mas prevalece o entendimento favorável à licitude, em princípio, do uso de tais métodos acauteladores, sob o amparo da justificativa que estudamos, tendo sido, em alguns casos concretos, proclamado o excesso culposo. Já se alvitrou, ainda, aplicar-se à hipótese outra justificativa, a do exercício regular de direito” (GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, tomo I p. 435).

Contudo, a questão proposta é solucionada pela atipicidade formal e material da conduta dos representantes das instituições bancárias.

A tipicidade formal deve ser desde logo afastada por absoluta ausência do elemento subjetivo da conduta. O crime de dano é punido somente a título de dolo, traduzido como “a consciência e vontade de destruir, inutilizar, ou deteriorar a coisa alheia, especificando-se pelo animus nocendi, isto é, pelo fim de causar um prejuízo patrimonial ao dono” (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955, vol. VII, p. 104). Assim, o tipo penal em questão exige o especial fim de prejudicar o dono (dolo específico, segundo a doutrina clássica), finalidade estranha à conduta dos representantes das instituições bancárias, pelo que buscam tão só inibir a prática do furto qualificado com a instalação de dispositivos antifurto.

Como decorrência da titularidade do papel moeda e da natureza da prestação de serviço, as instituições bancárias tem o dever, e não direito, de cuidar devidamente do numerário de que dispõe.

Se o papel moeda é considerado bem da União Federal, emitido com exclusividade pelo Banco Central (artigo 164, da Constituição Federal), no momento em que as instituições bancárias passam a deter o referido bem, surge o dever legal de cuidado, proteção ou vigilância, sob pena de que seus representantes possam responder pela omissão (artigo 13, parágrafo segundo, alínea “a”, do Código Penal).

Com relação à natureza da prestação de serviços que as instituições bancárias executam, adverte-se que os contratos bancários não são considerados por muitos como sendo de depósito, conforme se depreende do preciso magistério de AGUIAR JÚNIOR “O contrato de depósito é o mais comum e consiste na entrega de valores mobiliários a um banco, que se obriga a restituir quando solicitado, pagando juros (ou interesses). É um contrato próprio, típico, e guarda similitude com o depósito irregular, mas com este não se confunde” (AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Os contratos bancários e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista dos Tribunais, ano 92, maio de 2003, vol. 811, pp. 99-141). Todavia, inegavelmente estas instituições, na medida em que celebram contratos bancários, como aqueles denominados de conta corrente, assumem perante seus clientes a obrigação contratual de zelar pelos valores que lhe são confiados.

Nota-se que as instituições bancárias são obrigadas legal ou contratualmente, a depender do enfoque, a zelar tanto pelas cédulas de papel moeda que lhe são confiadas, como pelo valor econômico que exprimem.

Há uma sensível diferença entre o exercício regular de direito e o cumprimento de um dever jurídico. No exercício regular de direito há a opção em agir ou não da forma que o ordenamento justifica a conduta. De maneira diversa, quando se está diante de um dever jurídico, não resta alternativa a não ser cumpri-lo, sob pena de responsabilidade. Esta distinção se torna ainda mais cristalina em célebre passagem de ZAFFARONI: “quem não quer agir justificadamente pode não fazê-lo, porque o direito não lhe ordena que assim o faça, mas simplesmente lhe dá uma permissão. Por outro lado, quem deixa de cumprir com um dever jurídico é punido, porque o direito lhe ordena que aja desta forma” (ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal: primeiro volume – parte geral. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 475).

Não há que se falar em direito, tampouco em exercício regular de direito. Em verdade, as instituições bancárias tem verdadeiro dever de cuidado. Assim sendo, seria inconcebível que o Estado fomentasse ou até mesmo obrigasse as instituições bancárias com algumas normas, e ao mesmo tempo punisse penalmente seus representantes. Nesse passo, verifica-se que o caso em tela, além de ser formalmente atípico, revela incontestável atipicidade conglobante, ou seja, atipicidade no campo material, fato que por si só afastaria eventual persecução penal.

Nunca é demais lembrar que o Poder Público tem o dever de reprimir o enriquecimento ilícito derivado ou não de ilícitos penais. Neste contexto, o papel das instituições bancárias se torna de grande relevo. Além de terem o dever de cuidado com os valores que lhes são confiados por seus clientes, assumem a obrigação legal de guardar com segurança as cédulas de papel moeda, e em caso de serem danificadas, devem reter e remetê-las ao Banco Central do Brasil. Ora, para toda atribuição devem ser dadas as prerrogativas com vistas a cumpri-las. É exatamente o caso da possibilidade de instalação de dispositivos antifurto nos caixas eletrônicos.

Com o crescimento estatístico de crimes praticados em caixas eletrônicos haverá inevitavelmente aumento com relação aos números de inquéritos policiais e processos criminais versando sobre fatos que se amoldam nos tipos penais analisados. O Direito Penal deve estar preparado para lidar com situações desta natureza, dando resposta adequada aos criminosos que furtam o papel moeda, e aqueles que colocam indevidamente em circulação cédulas inutilizadas. Mas não é só isso. A ciência penal deve fomentar e autorizar a conduta daqueles que tem o dever jurídico de cuidado, a exemplo das instituições bancárias que devem zelar pelas cédulas de papel moeda que lhes são confiadas, e os valores econômicos que as representam.

BIBLIOGRAFIA

BOTELHO, Jéferson. Rasgar papel moeda é crime ou apenas um ato de loucura. Revista Consultor Jurídico, 22 de outubro de 2008. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2008-out22/rasgar_papel_moeda_crime_ou_apenas_ato_loucura>. Acesso em: 1º de junho de 2011.

GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, tomo I.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955, vol. VII.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, vol. 3.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 2ª ed. Curitiba: Lumen Juris, 2007.

SIENA, Olga Maria Pimentel Barbosa de. Falsificação em papel moeda em cédulas de real no Estado de São Paulo. 2002. 68 f. XVIII Curso Superior de Polícia. Academia Nacional de Polícia, São Paulo. 2002.

ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal: primeiro volume – parte geral. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

Sobre o(a) autor(a)
David Pimentel Barbosa de Siena
Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, especialização em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, mestrado e doutorado em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do...
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