Cláusula de 180 dias das construtoras é ilegal
As construtoras colocam nos contratos as chamadas cláusulas de tolerância, que inicialmente eram de 90 dias, passaram para 120 e hoje a maioria já trabalha com 180 dias. Cabe a pergunta: é legal esta cláusula, à luz do direito do consumidor?
Graças às políticas
de facilitação do crédito, especialmente as voltadas para a
aquisição da casa própria, milhões de brasileiros, nos últimos
anos, tem firmado contratos de promessas de compra e venda com
construtoras por todo o Brasil. Boa parte desses ajustes dizem
respeito à aquisição de imóveis “na planta”, onde o
consumidor adquire uma expectativa de direitos, qual seja a de vir a
ser dono de uma ou mais unidades imobiliárias a serem construídas
naquele empreendimento.
Esses contratos, que são de adesão, prevêem um plano de pagamento do imóvel, pelo consumidor, com datas certas e pré-determinadas, sob pena de sanções contratuais, como multa, juros e até a rescisão do contrato com perda de parte do que tenha sido pago. Do outro lado, prevê a obrigação da incorporadora/construtora construir o imóvel e entregá-lo em prazo igualmente pré-determinado. Não obstante essa pré-determinação, porém, as construtoras colocam nos contratos as chamadas cláusulas de tolerância, que inicialmente eram de 90 dias, passaram para 120 e hoje a maioria já trabalha com 180 dias. Cabe a pergunta, é legal esta cláusula, à luz do direito do consumidor?
A resposta é não! O
direito do consumidor tem entre os seus princípios o do equilíbrio
das relações de consumo, da equidade, a se refletir na
bilateralidade dos contratos de consumo. Ou seja, isso quer dizer que
a relação de consumo tem que ser equilibrada, na sua balança de
prestações e contra-prestações, não podendo pender com a
desigualdade de benefícios para uma das partes. Neste sentido o art.
51, IV do CDC:
Art.
51 - São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas
contratuais relativas ao fornecimento de produtos ou serviços que:
I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou implique em renúncia ou disposição de direitos. (...);
III – transfiram a responsabilidade a terceiros;
IV – estabeleçam prestações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;
Vale também a lição de Felipe Peixoto Braga Netto:
“Serão inválidas as disposições que ponham em desequilíbrio a equivalência entre as partes. Se o contrato situa o consumidor em situação inferior, com nítidas desvantagens, tal contrato poderá ter a sua validade judicialmente questionada, ou, em sendo possível, ter apenas a cláusula que fere o equilíbrio afastada”. (Felipe Peixoto Braga Netto, in Manual de Direito do Consumidor, Salvador: Edições Juspodivm, 2009)
Por outro lado o
Superior Tribunal de Justiça recentemente
reconheceu a:
“imposição
de um novo paradigma de boa-fé objetiva, equidade contratual e
proibição da vantagem excessiva nos contratos de consumo (art. 51,
IV)” (STJ, REsp.437.607, rel. Min. Hélio Quáglia Barbosa, 4ª T.,
j. 15/05/07, DJ 04/06/07).
Qualquer cláusula em
contrato de consumo igualmente não pode ofender os princípios
constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade:
“NÃO
PODE A ESTIPULAÇÃO CONTRATUAL OFENDER O PRINCÍPIO DA
RAZOABILIDADE, E SE O FAZ, COMETE A ABUSIVIDADE VEDADA PELO ART. 51,
IV, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ANOTE-SE QUE A REGRA
PROTETIVA, EXPRESSAMENTE, REFERE-SE A UMA DESVANTAGEM EXAGERADA DO
CONSUMIDOR, E AINDA, COM OBRIGAÇÕES INCOMPATÍVEIS COM A BOA-FÉ E
A EQUIDADE” (STJ, RESP 158,728, REL. MIN. CARLOS ALBERTO MENEZES
DIREITO, 3ª T., J. 16/03/99, P.DJ 17/05/99)
Assim, a maioria das
entidades de proteção dos consumidores entende que na medida em que
o contrato confere à construtora o direito de atrasar o cumprimento
de sua obrigação (entregar a unidade imobiliária), o mesmo direito
deve ser conferido ao adquirente, de modo a ter um “prazo de
carência” para o cumprimento de suas obrigações – realização
dos pagamentos. Assim, se o contrato concede esse direito à
construtora, e não o defere ao adquirente, pode-se concluir que
houve desrespeito à exigência do CDC no que se refere ao equilíbrio
contratual.
A jurisprudência já
vem re conhecendo essa realidade:
“PROMESSA
DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL – ATRASO NA ENTREGA DA OBRA –
INDENIZAÇÃO POR LUCROS CESSANTES – TEORIA DA IMPREVISÃO –
INAPLICABILIDADE PRORROGAÇÃO DO PRAZO DE TOLERÂNCIA – CLÁUSULA
ABUSIVA – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
(...)
3. A cláusula que faculta à construtora o adiamento da entrega da obra por doze meses após o prazo previsto, sem qualquer justificativa para tanto, é abusiva e nula de pleno direito, por configurar nítido desequilíbrio contratual, rechaçado pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
4. Recurso do autor provido parcialmente. Recurso da ré improvido. Decisão unânime.”
(TJ/DF – 5ª T. Cív., Ap.Cív. nº48245/1998, Rel. Des. Adelith de Carvalho Lopes, julg.08.03.1999)
“EMENTA
– COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL A PRESTAÇÃO PRAZO DE
ENTREGA DO IMÓVEL COMPROMISSADO. INADIMPLÊNCIA DA COMPROMISSÁRIA
VENDEDORA. PRAZO DE TOLERÊNCIA PRVISTO NO CONTRATO.
Considera-se
inadimplente a construtora e compromissária vendedora quando não
faz entrega do bem compromissado no prazo previsto no contrato,
autorizando o acolhimento do pedido de rescisão feito pelo
compromissário comprador, com devolução de todas as parcelas
pagas, devidamente corrigidas, mais juros de mora e outras
penalidades previstas em contrato.
O prazo de tolerância previsto em contrato somente é justificativa para a prorrogação do prazo contratual de entrega do imóvel compromissado quando ocorrer caso fortuito ou força maior devidamente comprovado nos autos.”
(TJ/MJ – 7ª C. Cív., Ap. Cív. Nº361743-8, Rel. Des. José Afonso da Costa Côrtes, julg. 06.06.2002).
A exceção que
admitiria a utilização da cláusula de tolerância, mesmo assim em
patamar mais razoável (90 dias), seria na ocorrência de um caso
fortuito ou de força maior. A doutrina e a jurisprudência convergem
no entendimento de que o fortuito e a força maior são apenas as
situações imprevisíveis
e inevitáveis.
Vejamos se é possível encaixar esses conceitos nos principais
argumentos das construtoras para justificar os atrasos: a) problemas
com o terreno da construção, b) chuvas, c) greve dos trabalhadores
da construção civil e d) falta de materiais de construção e de
mão-de-obra.
Quanto a ocorrência de
problemas com o terreno da construção, é evidente que trata-se de
uma falha da construtora no estudo e avaliação prévia do terreno
pelos seus engenheiros. É um caso evidente de vício (erro, falha)
na prestação do serviço. Não se pode transferir a
responsabilidade por um erro seu aos consumidores que confiaram na
qualidade e responsabilidade da empresa. Como já mostrado acima, o
CDC possui normas que proíbem tais práticas (art. 51, I, II, e
III).
Aliás, o STJ já tem
jurisprudência refutando esse argumento
REsp 331496/MG RECURSO ESPECIAL 2001/0086594-7:
RESPONSABILIDADE
CIVIL, CONSTRUTORA, DESCUMPRIMENTO, PRAZO, ENTREGA, IMÓVEL, INDEPENDÊNCIA, ALEGAÇÃO, ATRASO, MOTIVO, CORREÇÃO, DEFEITO,
TERRENO, COMPROVAÇÃO, PROVA PERICIAL, EXISTÊNCIA, PRESUNÇÃO,
EMPRESA, CONHECIMENTO, FATO, MOMENTO, CELEBRAÇÃO, CONTRATO, NÃO
CARACTERIZAÇÃO, CASO FORTUITO, FORÇA MAIOR.TERMO FINAL,
UTILIZAÇÃO, VALOR, ALUGUEL, BASE DE CALCULO, INDENIZAÇÃO, DATA,
ENTREGA DAS CHAVES, JUÍZO, CARACTERIZAÇÃO, DATA, DISPONIBILIDADE,
POSSE, IMÓVEL, AUTOR.
O risco da atividade
econômica é do empresário, assim como o lucro, com base no
princípio capitalista insculpido na Constituição Federal de 1988.
Pela Teoria do Risco, “aquele que lucra com uma situação deve
responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes” (ubi
emolumentum, ibi onus; ubi commoda, ibi incommoda).
O que desejam as construtoras em tais casos é gozar
do bônus e transferir o ônus,
numa postura violadora da boa-fé objetiva e em nítido descompasso
com as noções modernas de empresarialidade responsável ou cidadã,
que exige que todas as suas ações sejam pautadas pela ética, sem
exceção.
Quanto à alegação de
chuvas como força maior, também só pode ser aceita em casos
excepcionais. Usemos como exemplo a capital baiana. É sabido que
todo ano Salvador passa por um forte período de chuvas de outono.
Logo, evidentemente, não se pode classificar como algo imprevisível,
a justificar a utilização da cláusula de tolerância, salvo se o
índice pluviométrico registrado for muito fora de padrão para o
período, algo não registrado “há décadas”, por exemplo.
Em relação a
ocorrência de greves dos trabalhadores da construção civil, devido
à regularidade da sua ocorrência (todo ano tem) também não se
enquadraria como imprevisível.
Menos ainda inevitável, já que o seu advento depende de negociações
com sindicatos que podem ser antecipadas, melhor negociadas,
gerenciadas, etc.
Sobre a falta de
materiais de construção e de mão de obra no mercado, a alegação
chega a ser desrespeitosa para com os consumidores. Ora, como se pode
alegar falta de mão-de-obra e materiais de construção para
concluir no prazo um empreendimento em curso, se a mesma empresa
continua a lançar no mercado novos e novos empreendimentos??? É
abusar da inteligência do consumidor, argumento pífio!
A conta é simples, se
determinada obra levaria 4 anos para ser concluída com 100
trabalhadores, com 200 esse prazo cairia pela metade. É exatamente o
que as construtoras não querem fazer, desembolsar para cumprir os
prazos dos contratos elaborados por elas próprias, deixando ao sabor
de todo tipo de transtornos e prejuízos os consumidores brasileiros,
diante do olhar complacente e inoperante das autoridades e
legisladores do nosso país.
O que realmente está
por trás dos epidêmicos atrasos nas construções particulares de
todo o Brasil são o acintoso desrespeito e despreocupação das
construtoras com as famílias que adquirem imóveis e se planejam em
cima do cronograma contratualmente firmado para a entrega do
empreendimento. É quando o sonho da casa própria vira pesadelo!
Só para registro, foi
publicado o lucro trimestral
de uma das construtoras que atuam nacionalmente, a PDG,
que alcançou, no início de 2011,
a cifra de R$239,00 milhões de reais! Crescimento
de 33%
em
relação ao primeiro trimestre de 2010.
O
dado é emblemático e reflete a realidade desse mercado e a
perversidade que vem se praticando, impunemente, contra os
consumidores nacionais. De um lado polpudos lucros nunca antes
alcançados pelo setor da construção civil, do outro, um rastro de
desrespeito e prejuízos amargados pelos clientes.
A boa notícia é o
crescimento do número de ações contra as construtoras em razão
dos atrasos, que só em São Paulo aumentou cerca de 60% nos últimos
três anos, o que indica que o consumidor está tomando consciência
dos seus direitos e está mais dispostos a exercitá-los.
Vale lembrar que o
consumidor com obra atrasada tem uma série de direitos a pleitear em
seu favor, portanto fique atento, consumidor consciente é consumidor
bem informado!
BIBLIOGRAFIA / LEITURA RECOMENDADA
ALMEIDA, João Batista de. A Proteção Jurídica do Consumidor. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
BENJAMIN. Antônio Herman.V. / MARQUES, Cláudia Lima / BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos tribunais, 2009.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: Forense Universitária, 2004.
MARQUES, Claudia Lima em seu livro, Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5ª Edição, Editora: Revista dos Tribunais, 2005.
NETTO, Felipe Peixoto Braga. Manual de Direito do Consumidor, Salvador: Edições Juspodivm, 2009
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: direito material. São Paulo: Saraiva, 2000.
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2008.