Considerações sobre o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar pelo Supremo Tribunal Federal
A decisão que equiparou uniões homoafetivas às uniões estáveis, não apenas firmou esse entendimento, como também assegurou que em um Estado Democrático de Direito não há espaço para a marginalização de cidadãos, quaisquer que sejam os motivos.
O julgamento realizado nos dias 04 e 05 de maio no Supremo Tribunal Federal entrará para a história de nosso País como um marco na luta contra a discriminação e o preconceito aos cidadãos homossexuais. Os Ministros do referido Tribunal mostraram conhecimento técnico e sabedoria na análise do pedido, demonstrando que o Judiciário não pode se afastar do exame da questão, e que a vinculação entre Estado e Religião é inconcebível em um Estado de Direito.
De fato, a decisão que equiparou uniões homoafetivas às uniões estáveis, não apenas firmou esse entendimento, como também assegurou que em um Estado Democrático de Direito não há espaço para a marginalização de cidadãos, quaisquer que sejam os motivos. O constitucionalismo brasileiro demonstrou ser inclusivo, evidenciando que não há categorias de cidadãos, de modo que todos devem ser respeitados e seus direitos reconhecidos, dando plena aplicabilidade ao princípio da igualdade, que, nas palavras de Luiza Cristina Fonseca Frischeisen1,
implica invocar valores e um desses valores é o reconhecimento da igual dignidade de todas as pessoas, o que implicará, por seu turno, a proibição de práticas discriminatórias, que neguem direitos a quem quer que seja por alguma de suas características, quer seja o gênero, a etnia, a religião, a orientação sexual ou quaisquer outras. (Grifou-se)
Considerar que as uniões homoafetivas não merecem guarida jurídica em virtude da orientação sexual do casal envolvido, colocando-os em posição inferior às uniões entre heterossexuais, consistiria em dar tratamento distinto a semelhantes, contrariando não apenas o princípio da igualdade, mas também o da dignidade da pessoa humana e o da liberdade. A esse respeito manifestou-se o ilustre Ministro Relator Ayres Brito em seu voto:
Prossigo para ajuizar que esse primeiro trato normativo da matéria já antecipa que o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como dizer: o que se tem no dispositivo constitucional aqui reproduzido em nota de rodapé (inciso IV do art 3º) é a explícita vedação de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos” (este o explícito objetivo que se lê no inciso em foco). (Grifos do original) 2
O julgado traz grandes benefícios à sociedade brasileira, que ganha a certeza de que o Estado brasileiro não admitirá lesões a direitos ou o alijamento jurídico e social, e, ainda, fortalece o instituto da família.
Fala-se, com freqüência, na crise da família brasileira, e, de fato, a família nos moldes tradicionais sofreu grandes mudanças estruturais. A família, a partir do momento que passou a ser constituída em razão do afeto, permitiu alargamento de seu conceito, incluindo no bojo de sua definição famílias formadas apenas por um dos pais e o (a) filho (a), ou por irmãos, e, como assentou a decisão em comento, formadas por pessoas do mesmo sexo. A entidade familiar esteve em crise. Hoje, pode-se dizer que ela foi reforçada e sua importância frisada. A nova família se constrói com o afeto, sempre quando o relacionamento for duradouro, público e tiver intuito de constituir uma família, independente de orientação sexual.
Diante disso, verifica-se que o cerne essencial para a nova família, a família hodierna, foi proclamado: amor. Como, então, poderia estar em declínio? Como podemos dizer que é uma afronta e que a entidade familiar está falida?
O julgamento e a decisão que dele se obteve trouxeram todos os argumentos jurídicos e sociais que diversos doutrinadores já haviam desenvolvido em obras sobre o tema. Todos ganharam, já que se primou, uma vez mais, pelo respeito aos direitos fundamentais e pela formação da família. Afirmou-se o quão importante é a participação do indivíduo no seio familiar para o desenvolvimento humano, e, por tabela, incentivou-se a sua formação, reconhecendo que todos os cidadãos, sejam hetero ou homossexuais, podem, sim, constituir família.
Maria Berenice Dias (2007), um dos doutrinadores citados durante o emblemático julgamento, ensina que a norma contida no artigo 226 de nossa Carta Magna é uma cláusula geral de inclusão e que se um relacionamento, embora entre pessoas do mesmo sexo, atende aos requisitos de afetividade, estabilidade e ostensividade, deve ser reconhecido como entidade familiar, merecendo, assim, o amparo legal e a proteção do Estado. E continua: “Como cabe ao direito regular a vida – sendo ela uma eterna busca da felicidade –, impossível não reconhecer que o afeto é um valor jurídico merecedor de tutela (...)”.3
Por sua vez, Bertoldo Mateus de Oliveira Filho (2011) sustenta que o artigo 226 da Constituição Federal incluiu a união estável de forma não exclusivista no rol de entidades familiares, vislumbrando, então, ser juridicamente possível a aplicação dos requisitos do companheirato heterossexual às uniões entre pessoas do mesmo sexo, tendo em vista ser a orientação sexual uma prerrogativa da dignidade humana.4
Perfilhando o mesmo entendimento, Paulo Lôbo (2008), esclarece que a Constituição não veda o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, devendo haver o reconhecimento de uniões homoafetivas quando preencherem os requisitos exigidos para a união estável.5
De ver-se, portanto, que a discussão não é nova e que a sociedade brasileira já ansiava por uma definição sobre os diversos pedidos para o reconhecimento das uniões entre duas pessoas do mesmo sexo.
Contudo, apesar de ter equiparado as uniões homoafetivas às uniões estáveis entre homem e mulher, o Supremo não quis se debruçar sobre os desdobramentos de sua decisão. Por conseguinte, ainda não há um entendimento pacificado acerca de diversas questões relacionadas a esse assunto, como, por exemplo, a possibilidade ou não de adoção pelos companheiros homoafetivos. E mais: os Ministros do insigne Tribunal ressaltaram a necessidade de o Poder Legislativo trazer à ordem do dia discussões e projetos que busquem regulamentar não somente de forma explícita a união homoafetiva, bem como todos os direitos dela decorrentes.
Certamente, o Legislativo deverá, em algum momento, enfrentar a discussão, normatizando a união entre duas pessoas do mesmo sexo e estabelecendo os seus contornos jurídicos. Infelizmente, ao que parece, o Congresso Nacional está reticente e evita o tema por razões religiosas, como ocorreu com o Projeto de Lei 674/07, conhecido como Estatuto das Famílias, que foi aprovado em 15/12/2010 pela Câmara dos Deputados6, com a exclusão das famílias homoafetivas de seu texto, previstas inicialmente no Projeto de Lei 2.285/2007, de autoria do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, apensado ao primeiro7.
O reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal das uniões homoafetivas como entidade familiar colocou o Brasil no rumo certo para o efetivo combate à discriminação e ao preconceito em virtude da orientação sexual, enfatizando que a dignidade da pessoa humana começa com a família e que nenhum tipo de desigualação infundada pode ser tolerado.
Ainda assim, o papel do Legislativo é de extrema importância para o deslinde da matéria, de modo que até lá, estaremos navegando em mares revoltos, aguardando o farol que nos guiará para um porto justo e seguro.
Referências
1. FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. A construção da igualdade e o Sistema de Justiça no Brasil: Alguns caminhos e possibilidades. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.
2. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277.pdf
3. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. 3. tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 183 e 188
4. FILHO, Bertoldo Mateus de Oliveira. Direito de Família: Aspectos sociojurídicos do casamento, união estável e entidades familiares. São Paulo: Atlas, 2011. p. 139-141.
5. LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008.
6. Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=347575
7. Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=373935