União homoafetiva - A Justiça sem olhos vendados

União homoafetiva - A Justiça sem olhos vendados

A união homoafetiva vista de maneira real, não como uma anormalidade, mas como uma nova modalidade de instituição familiar.

Eles ou elas já foram considerados criminosos pela Justiça. Pela medicina o diagnóstico mereceu o sufixo “ismo” (homossexualismo), pois eram considerados seres doentes. Pelos psicólogos já foram considerados insanos, carentes de pai ou mãe ou, até mesmo, portadores de distúrbios psicológicos ou emocionais. Assim, desenvolveu-se a caminhada de definições para “espécie” homossexual, sempre delineada por uma característica comum: a “anormalidade”.
A homossexualidade ocorre desde os primórdios da evolução humana. É salutar a lembrança da elucidação da Desembargadora Maria Berenice Dias:
Encaravam a homossexualidade como privilégio dos bem nascidos, onde estes faziam parte do cotidiano dos deuses, reis e heróis, tanto que em sua mitologia, estes retrataram casais homossexuais como Zeus e Gamimede, Aquiles e Patroclo. Isto ocorria pois, a heterossexualidade era um ato reservado à procriação, sendo assim considerada como uma mera opção, pois se fazia como necessidade natural à relação homossexual, digna de ambientes cultos, e considerada como a legítima manifestação de libido.
A união homoafetiva se tornou uma realidade muito próxima da humanidade. Por conseqüência, a sociedade e a Justiça não podem agir como se tal realidade não existisse. É chegado o momento, talvez tardio pelas conseqüências já geradas, de serem renovados os paradigmas e excluídos os preconceitos que envolvem o tema analisado. O Direito além de ser uma ciência, é um instrumento de Justiça, assim, deve atender a realidade social, acompanhando às evoluções e atendendo às necessidades da sociedade.
A união homoafetiva não pode mais ser observada como uma anormalidade. Ao contrário, a união de pessoas do mesmo sexo, tornou-se uma nova forma de entidade familiar e de afetividade. Algumas relações homoafetivas são explícitas e assumidas perante a sociedade, outras são ocultas, pois, muitas vezes é melhor silenciar para não sofrer discriminação. A assertiva é exposta pela Desembargadora Maria Berenice:
Psss... Por favor, não fale, cale. Deixe o silêncio encobrir tudo, penetrar até a alma. Afinal, é mais fácil acreditar que aquilo que não se ouve, que não se vê, não existe.
O ser humano, de uma forma geral, que é submetido a viver de maneira oculta, sem poder usufruir suas escolhas, torna-se indignado, sua auto-estima é reduzida, o que pode gerar distúrbios emocionais ou, até mesmo, a criminalidade. A exclusão social acarreta uma “pressão mental” insuportável.
A discriminação leva a maioria dos homossexuais a viver na escuridão, fato que pode trazer muitos outros aspectos negativos e conflitantes. Muitos, em função desta “não-aceitação”, condenam-se por suas tendências sexuais e passam a não aceitar a sua própria natureza, sendo alguns casos levados ao extremo: o suicídio.
As posições religiosas influenciam de maneira determinante nesta realidade, pois, na maioria das crenças, os homossexuais não encontram aceitação. Para algumas crenças, os homossexuais irão seguir para o “inferno” ao morrerem, pois, são pecadores. Ainda, pelo fato de não ser possível à procriação neste tipo de relacionamento, para alguns, torna-se impossível à constituição familiar, o que alimenta, ainda mais, os preconceitos sobre o tema.
Muitos protestos públicos estão sendo realizados por grupos homossexuais e bissexuais que clamam por seus direitos. A regulamentação da união homoafetiva já ocorreu em alguns países. Em certos estados americanos, tais uniões passaram a ser autorizadas, como por exemplo, no Distrito de Colúmbia a partir de março de 2010.
No Brasil, apesar da lentidão, existem avanços sobre a possibilidade da legalização da união homoafetiva. A mudança de visão sobre o tema começou pela justiça gaúcha em 1999, que definiu os juizados especializados como competentes na apreciação das uniões homoafetivas. Ou seja, a competência deixa de ser das varas cíveis e passa a ser das varas de família. Afinal, a união afetiva entre duas pessoas do mesmo sexo, não representa uma obrigação contratual e sim uma entidade familiar.
Já ocorreram tentativas de regulamentação da união civil entre pessoas do mesmo sexo, como por exemplo, pelo Projeto de Lei nº. 1.151/95, que não obteve êxito. A ADI 4.2774, proposta pela Procuradoria-Geral da República no final de 2009, foi proposta contra o art. 1.723 do Código Civil Brasileiro, Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, verbis:
"Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".
A ação, que trata a controvérsia sobre o ponto de vista da ofensa aos princípios da dignidade da pessoa humana, do direito à liberdade e da proteção à segurança jurídica, encontra-se em trâmite de conclusão pelo Relator e, seus pedidos sendo aceitos, será obrigatório o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e os direitos e deveres da união estável serão estendidos a este novo tipo de união.
A ADPF 1326, proposta pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, também possui o mesmo objeto da ADI 4.277. O Projeto de Lei da câmara 122/20067 que altera a Lei 7.716/99, propõe, como definição de crime, a discriminação contra homossexuais, ou seja, a homofobia.
Ainda, nesta demonstração de avanços, o Direito Tributário, especificamente em relação ao IR, passa a reconhecer o companheiro da união homoafetiva como dependente. Bem como, em relação ao Direito Previdenciário, a Justiça reconheceu que a união homoafetiva estável dá direito ao recebimento de benefícios previdenciários para trabalhadores do setor privado.
Mas, apesar dos avanços a respeito do tema, além da conscientização da sociedade, ainda, há a necessidade da “mão firme” do legislador brasileiro, que tem nos fatos sociais às fontes criadoras do direito.
Alguns chegam a pensar que pelo fato de ser proibido a união oficial homoafetiva, não há a expansão deste tipo de relação. Ledo engano, pois, pelas análises das últimas décadas houve grande aumento do número de casais com o mesmo sexo. Ao se falar em Direitos Humanos, Princípios da Dignidade Humana, da Solidariedade e da Igualdade, entre tantos outros princípios que regem a legislação brasileira, deve-se lembrar que a escolha por uma união efetiva e sexual, independente de ser entre pessoas do mesmo sexo ou não, é um direito fundamental de cada cidadão, portanto, deve ser respeitado.
Pois bem, afastam-se preconceitos, desculpas religiosas, vaidades, dogmas irreais, paradigmas infundados e, também, pseudomoralismos e, abram-se os olhos, tiram-se às vendas e a justiça encontra seu papel. O papel de adequar suas leis abstratas aos fatos concretos, ou ainda, as reais necessidades sociais, evoluindo com o povo e regulamentando as condutas que fazem parte da “vida real”.
Este é o verdadeiro poder de um Estado soberano, o poder de controle, de equilíbrio e de igualdade. Estar-se-á a falar da verdadeira democracia que visa um Estado composto de uma sociedade livre, justa, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, como obsta a Constituição Federal em seus artigos 1 e 3, incisos I e IV.
Por fim, o que se questiona é a igualdade dos cidadãos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, em consonância com a Constituição Federal do Brasil. A condição de ser ‘homo’ ou ‘hetero’ não deve afastar o fato principal: todos são seres humanos, cidadãos do mundo.


Anotações
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito e a justiça. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2001.
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito e a justiça. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2001.
<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=79604> Acesso em 10/08/2010.
<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=11872> Acesso em 06.08.210.
Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil Brasileiro.
<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2598238> Acesso em 06/08/2010.
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm> Acesso em 06/08/2010.

Sobre o(a) autor(a)
Mary Mansoldo
Mary Mansoldo. Advogada. Graduada pelo Curso de Direito da Universidade Unifenas. Pós-graduada em Processo Civil pela Universidade Gama Filho. Pós-graduanda em Ciências Penais pela PUC/MINAS. Mestranda em Direito Processual pela...
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